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Lisbon Roundup #11

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Isabel Nogueira

 

O Verão entrou pelas nossas vidas. Começamos a desacelerar depois de uma temporada com muitas propostas artísticas. As exposições que escolhemos debruçam-se sobre aspectos francamente relevantes, como a ecologia ou questões relacionadas com as práticas feministas na fotografia. Ambas com um forte pendor de investigação e activismo político. São, sobretudo, exposições onde estas temáticas não cumpram apenas a agenda do momento. E, assim, encerramos esta rubrica, até à rentrée.

 

Roundup #11

Lisboa: vários locais

 

 

A certain instance of “verrition” 

                                                  @Fundação Leal Rios

 

Entramos num espaço consideravelmente escuro, o que nos obriga a adaptar o olhar. Trata-se de uma mostra colectiva — Manuela Sedmach (n. 1953), Marcelo Moscheta (n. 1976), Paulo Arraiano (n. 1977) e Pedro Vaz (n. 1977) —, com curadoria de Camila Maissune, que reflecte sobre a era do antropoceno e as desastrosas consequências da acção do homem nos ecossistemas. “Antropoceno” foi, como se sabe, um termo popularizado, entre outros, pelo cientista Paul Crutzen, nos anos 90 do século XX, e que resumidamente adverte para o resultado do aquecimento global, para a escassez de recursos naturais e para as consequências graves da intervenção do ser humano na natureza. Fragile Ecologies: Contemporary Artists' Interpretations and Solutions (The Queens Museum of Art, Nova Iorque, 1992), com curadoria de Barbara Matilsky, foi uma das primeiras exposições a colocarem em causa o capitalismo industrial e o seu perigoso trilho.

Na exposição em análise, e independentemente de a origem da palavra que incorpora o título da exposição — “Verrition” — pertencer ao poeta e activista Aimé Césaire, a possibilidade de um esgotamento ambiental sente-se próxima e ameaçadora. A bomba-relógio é imediatamente evocada pela bela peça de Marcelo Moscheta, Círculo Polar Ártico (2023), na qual pequenos ecrãs com imagens de glaciares estão ligados a delicados fios de aço, como se pudessem ser detonados a qualquer momento, num acto terrorista. O degelo pode adivinhar-se ainda, por exemplo, na pintura de pendor abstractizante de Manuela Sedmach (Em lugar algum, 2022).

O trajecto é estimulado pela curiosidade que as peças despertam. No chão, encontra-se uma caixa de vidro que permite vislumbrar um fundo marinho isolado do mundo, como uma amostra de laboratório de um tempo futuro (Diorama da paisagem #2, 2023), de Pedro Vaz. É uma das peças que mais atrai o olhar do espectador. Ao longo da exposição vai sendo proposta uma reflexão sobre o estado do planeta, associada a uma temporalidade com um fim. É este fim que determina, naturalmente, a ameaça e a consequente urgência da mudança. Tudo isto é desconfortável. Não temos outro local para viver, o que se afigura dramático, precisamente como na tragédia: a necessidade de escolha difícil — por isso trágica — entre duas situações, neste momento, incompatíveis: natureza e industrialização. No final da exposição, Paulo Arraiano apresenta uma encantantória projecção de um fundo do mar azul, com voz de Selma Uamusse (The deep, 2023). De algum modo, trata-se de uma proposta de regresso ao início, onde tudo começou, num mergulho potencialmente redentor e eterno.

 

A certain instance of "verrition". Vistas da exposição na Fundação Leal Rios, Lisboa, 2023. Fotos: Bruno Lopes. Cortesia dos artistas e Fundação Leal Rios. 

Adriana Barreto e Diogo Pimentão:

Dialogue 01 . Action Sculpture

                                                       @Dialogue Gallery

 

Tudo se inicia no gesto como coreografia do movimento e do desenho. Adriana Barreto (n. 1949) desenvolve o seu percurso entre a dança e as artes visuais; Diogo Pimentão (n. 1973) junta as artes visuais à performance. Daqui resulta o movimento do corpo, conferindo materialidade a desenhos, fotografias, filmes ou esculturas. Esta exposição, com curadoria de Sónia Taborda, compõe-se de um núcleo de obras belas, por exemplo, o painel fotográfico de grandes dimensões, a preto e branco, no qual surge o corpo de Adriana a desenhar várias posições que configuram linhas e direcções (Dancer in the Dank, 2019). A escala é um pouco mais pequena do que o tamanho natural, o que torna o conjunto numa espécie de espelho do espectador numa sala de ensaios.

Mas podemos destacar outras obras. A acção das mãos de Pimentão sobre o grafite é uma matriz do seu trabalho. A repetição obsessiva do gesto acontece até este deixar de ser perceptível, quer dizer, até desaparecer ao formar um todo opaco que cobre as superfícies de cimento ou de papel (One body/Two hands/Ten fingers (supposed), 2019; Angle, 2015). E, tal como na dança, não se acede ao trabalho intermédio, ao processo. Parece que sempre foi assim: um gesto final perfeito, ou uma peça coberta uniformemente por um grafite que, portanto, parece tinta metálica. Mas a corporalidade de Diogo Pimentão evidencia-se ainda nos vídeos em que o próprio artista se movimenta em pequenas acções (Throw, 2012). Esta organicidade emerge com especial evidência também nas peças moldadas por Adriana Barreto, a preto e branco, espalhadas pelo chão do andar superior. Toda a exposição é orgânica e ao mesmo tempo de filão minimalista, elegante e bicromático na sua escala de cinza.

Como afirmou Jacques Rancière (Les écarts du cinéma, 2011), embora referindo-se a Gilles Deleuze, a paralisia do sistema motor, isto é, a crise da imagem-movimento conduziria à revelação da imagem-tempo. Na verdade, é um pouco esta suspensão temporal e imagética, depois do movimento, que esta exposição convoca. Tudo incia no gesto e termina nele. No final, tudo pode voltar ao início.

 

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Adriana Barreto e Diogo Pimentão. Dialogue 01. Action Sculpture. Vistas da exposição na Dialogue Gallery, Lisboa, 2023. Fotos: Vasco Stocker Vilhena. Cortesia dos artistas e Dialogue Gallery. 

 

Aos Olhos Delas. Mulheres e Trabalho em Itália desde 1950

                                                         @Galeria Avenida da Índia [Galerias Municipais de Lisboa]

 

Com curadoria de Maria Chiara Di Trapani, esta exposição parte de uma iniciativa promovida pela Embaixada de Itália no âmbito das celebrações do Dia da República Italiana. Trata-se de um conjunto de imagens de fotógrafas de várias gerações que dialogam e que se debruçam sobre diversas profissões e diferentes modos de abordagem da relação entre mulheres e trabalho na Itália contemporânea. Entre mulheres no boxe — esta fotografia é das melhores e mais impactantes do conjunto —, no activismo político ou na ginástica, esta realidade é-nos trazida pelo olhar de Paola Agosti, Marcella Campagnano, Liliana Barchiesi, Letizia Battaglia, Marilisa Cosello, Agnese De Donato, Collettivo Donne Fotoreporter, Nicole Gravier, Gruppo del Mercoledì, Cristina Omenetto, Lia Pasqualino, Giada Ripa, Alessandra Spranzi, Francesca Volpi, entre outras fotógrafas.

É uma exposição com fotografias de qualidade e algumas francamente apelativas. Contudo, independentemente do valor artístico da mostra em questão, há um inegável e oportuno valor histórico, político e social. De facto, a discrepante representação das mulheres relativamente à representação masculina é um facto histórico, económico, cultural, sociopolítico e artístico. A transformação da condição da mulher foi uma das maiores conquistas do século XX e teve início, ainda no século XIX, precisamente com a reivindicação dos direitos laborais. De uma função social limitada e superficial, as mulheres conquistaram o mundo do trabalho, do conhecimento e da arte. E, desde o final dos anos 60 e pelos anos 70, emergiu uma análise com a complexidade acrescida da racialização e de outras identidades marginalizadas. Por seu lado, e precisamente na sequência das ainda insuficiências desta segunda vaga de movimentos feministas, surgiu, no final dos anos 80 e início dos anos 90, no contexto do movimento pós-moderno e de uma interpretação pós-estruturalista de género e de sexualidade, a terceira vaga feminista, destacando-se os notáveis trabalhos de L. Cottingham, Y. Ergas, A. Jones, L.  G. Perry, G. Pollock, K. Soper, W. Chadwick, ou T. Trigueros (2008), sobretudo na articulação destas movimentos com a história da arte.  

Por entre fotografias e alguns documentos, esta exposição foca-se assumidamente no trabalho — um dos inequívocos e ancestrais factores de desigualdade e até de discriminação de género — das mulheres, nas suas diversas áreas de acção e com diferentes inquietações. Infelizmente ainda há muito para fazer. A seu modo,  Aos Olhos Delas propõe um contributo neste fundamental sentido e evolução. 

 

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Aos olhos delas. Mulheres e Trabalho em Itália desde 1950. Vistas da exposição na Galeria Avenida da Índia. Fotos: Bruno Lopes. Cortesia de Galerias Municipais/EGEAC.

 

Ilda David:

Metamorfoses — Os rios transbordam e desabam

@Sociedade Nacional de Belas-Artes

 

Ilda David (n. 1955) apresenta um diálogo entre peças mais recentes e outras mais antigas, numa curadoria de Nuno Faria. A exposição desenvolve-se a partir de uma centralidade assinalada por uma evocação de uma domus romana, concretamente, do rectângulo que nos remete para o pátio central destas unidades habitacionais. A peça (Lineamenta 3, 2022-2023) encontra-se ao nível do solo e possui complexidade, nomeadamente visível pelo diverso tamanho e variada coloração das tesselas (pequenas peças de pedra) que a constituem. E a matriz da Antiguidade Clássica fica no ar.

A contrastar esta marcante horizontalidade e este espaço de referência interior — a casa — desenvolve-se uma bela orquestração de peças bidimensionais, em pintura e bordado, que transportam o espectador para uma qualquer floresta ou zona fantástica e encantatória, com o título genérico de Metamorfoses. Os nomes destas metamorfoses femininas e masculinas vão-se revelando à medida que se circula pela sala: Dafne, Egéria, Ariadne, Narciso, Adónis, Eco, Vulcano, etc. E claramente somos convidados e regressar a um universo primitivo, pleno de simbologia e de ligação à natureza. A geometrização da peça central encontra um novo diálogo com o traçado livre, ondulante e vigoroso destes painéis. Talvez como se de rios se tratasse, numa montagem elegante e bem conseguida.

De facto, a componente espacial desta mostra é implicativa: as tapeçarias caem do tecto e as pinturas elevam-se a partir do chão, através de suportes metálicos, como se fossem árvores e arbustos a pontuar o espaço. Neste momento, de algum modo, a pintura/imagem e a floresta/objecto fundem-se e transcendem-se reciprocamente numa transitividade singular e inusitada. A exposição torna-se num espaço de silêncio e portadora de um certo intimismo que se descobre nos recantos que a configuram. O espectador pode estar só com o objecto se assim o desejar. E claro, de certo modo, o jardim barroco e a sua organização geometrizante e sofisticada faz-se também notar. A pintura é apresentada como um organismo vivo e até luxuriante, tal como a natureza na variação das suas estações.

 

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Ilda David: Metamorfoses — Os rios transbordam e desabam. Vistas da exposição na Sociedade Nacional de Belas-Artes. Fotos: Cortesia da artista e Sociedade Nacional de Belas-Artes. 

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