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James Newitt: Haven

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Margarida Mendes

 

Entrevista, conduzida por Margarida Mendes, a propósito da exposição Haven, patente na Galeria da Boavista, em Lisboa, até ao próximo dia 16 de setembro.

 

Margarida Mendes (MM): A exposição Haven inclui pesquisa iniciada na exposição Off Shore apresentada na Bienal de Fotografia do Porto em 2021 e, recentemente, exposta em Oldenburg na Edith-Russ-Haus for Media Art. Como evoluiu esta investigação até ao momento presente e como se tornou o próprio meio de investigação uma ferramenta visual nesta exposição?

 

James Newitt (JN): Apresentei uma primeira iteração do projeto no Porto há dois anos e muitos dos fios narrativos e de investigação dessa iteração ainda estão evidentes na exposição na Galeria da Boavista, embora tenham sido mutações ao longo do tempo. Na verdade, iniciei a investigação inicial deste projeto há 10 anos, quando comecei a estudar a história das micronações e, especificamente, de Sealand. Alguns dos materiais de investigação presentes na exposição não foram elaborados com a intenção de serem mostrados publicamente. Os e-mails, por exemplo, foram uma tentativa genuína de estabelecer contacto com o fundador do data haven e de marcar uma entrevista com ele. Mattia Tosti, que fez curadoria da exposição na Galeria da Boavista, leu alguns dos primeiros e-mails e lembrou-me que esta correspondência unidirecional é algo que tem estado sempre presente em projectos anteriores e que se tornou uma forma produtiva de propor questões a uma personagem que eu percebi que provavelmente não iria responder. Nesse sentido, estes documentos tornaram-se autorreflexivos e ajudaram-me a pensar em alguns dos bloqueios que tinha no projeto. As fotografias de família modificadas também foram algo que fiz de forma bastante informal. Sentia-me desconfortável com a utilização destas imagens pessoais sem autorização, por isso fiz este gesto simples para lhes proporcionar algum anonimato, ao mesmo tempo que refletia de forma divertida sobre o estatuto da família como “piratas”. Esta questão da autorização, dos direitos de autor e da propriedade das imagens está no centro daquilo de que o filme Haven tenta falar. "Lapse", a projeção de imagens associativas rapidamente sequenciadas apresentadas no piso 0, foi o elemento mais recente da exposição e reflete o crescente arquivo de material de investigação que tenho vindo a recolher. Foi uma forma de reunir imagens de referência que estava a utilizar e de as introduzir numa pesquisa de imagens no Google. Depois, seleccionei determinadas imagens que o Google me devolveu e repeti o processo vezes sem conta. Desta forma, a investigação começou a crescer de uma forma aberta, um arquivo que segue uma lógica sobre a qual não tenho controlo total.

 

MM: O projeto reflete sobre as condições extraordinárias relativas ao “engenho de Estado” (ExtraStatecraft), como nomeou a teórica Keller Easterling, criando um discurso sobre a mediação de infraestruturas, a extraterritorialidade e espaços de gestão de informação que se encontram fora do alcance das jurisdições continentais. Queres falar um pouco sobre o teu interesse nesta temática e como se relaciona com o teu trabalho?

 

JN: Sim, as questões relacionadas com a extraterritorialidade, os limites do Estado e a sua jurisdição são centrais para o projeto e são também cruciais para desviar a ênfase da história familiar peculiar e da história algo romantizada de Sealand, que pode obscurecer a relevância contemporânea do que aconteceu na torre. Os espaços extraterritoriais são locais fora do controlo do Estado, ou espaços onde o Estado exerce controlo para além do seu território (Zonas de Comércio Livre ou Guantanamo Bay, por exemplo). Interessava-me a forma como o mar definia o estatuto extraterritorial de Sealand, que antes de 1987 (quando os britânicos alargaram as suas águas territoriais para 12 milhas a partir da costa) a torre estava localizada em águas internacionais, o que dava à família motivos para a reclamar, para a declarar independente e para imaginar a criação da sua própria lei. Estava interessado em investigar mais porque, embora considerasse a história de Sealand fascinante, também me sentia desconfortável com as associações coloniais do que lá aconteceu — como a família viajou pelo mar para encontrar uma terra para reclamar como seu próprio território, realizando uma fantasia de começar de novo. Da mesma forma, a história da HavenCo — o paraíso de dados que foi instalado na torre no início dos anos 2000 — é notável. Os fundadores da HavenCo promoveram-na como sendo um tax haven, mas para informação. Quem poderia imaginar que o primeiro data haven do mundo teria sido criado no meio do mar, numa plataforma enferrujada de aço e betão? Parece ser o local menos lógico para guardar informações sensíveis e equipamento informático. Foi o mar, no entanto, que ajudou a fornecer o estatuto jurídico ambíguo para a operação, bem como a proteção contra rusgas — como o fundador da HavenCo Ryan Lackey disse numa apresentação numa conferência — se alguém tentasse vir roubar informações, eles simplesmente atirariam os servidores ao mar.

 

MM: A videoinstalação Haven (2023) cruza uma série de diferentes imagens da plataforma Sealand, incluindo filmes de arquivo, mas também longos planos que parecem ter sido gerados por um drone digital e outros renders 3D que concedem à narrativa uma componente especulativa que projeta o espaço cinemático numa temporalidade suspensa. Podes falar um pouco sobre os diferentes olhares cinemáticos que cruzas aqui e a sua intenção dentro desta obra?

 

JN: Inicialmente, estava a tentar realizar um filme baseado em arquivos de vídeo on-line, juntando fios associativos que tocavam a própria torre, material documental antigo sobre Sealand, bem como imagens do mar, o data haven, rádio pirata, infra-estruturas como plataformas petrolíferas em alto mar e imagens de navios a serem afundados. Haven começa por revisitar material antigo de filme a preto e branco de 16 mm. Utilizei software de aumento de escala de vídeo para modificar este material e tentar dar-lhe mais resolução, a repetir este processo de modo a que determinado material encontrado começasse a parecer que estava a ser executado através de uma neural network. Enquanto estava a trabalhar com o material encontrado, também tinha a intenção de encontrar uma forma de ir a Sealand e filmá-lo. Ir lá parecia ser uma forma de provar que o local existe e parecia ser uma forma de ancorar o material encontrado em algo mais "real" e diretamente vivido. A família é muito protetora e fechada em relação à torre e é autora cuidadosa da sua história, por isso estava a tentar encontrar a forma correcta de a abordar. Também trabalhei no projeto durante a pandemia, através de vários confinamentos e períodos de isolamento, sem saber quando ou como poderia eventualmente viajar até lá.

Embora pareça óbvio agora, comecei a aperceber-me de que a torre era uma utopia, um "non-place", até mesmo o próprio data haven era, de certa forma, um "bluff" elaborado. Decidi que, se queria criar uma representação cinematográfica deste lugar, precisava de o recriar digitalmente para o ocupar de novo. Estava interessado em tentar tornar esta réplica digital da torre tão real quanto possível, por isso trabalhei com um arquiteto para representar os diferentes espaços da torre com base em pormenores que pudemos identificar através do material encontrado, foi um processo de reconstrução quase forense. Uma vez que tinha feito isso, podia passar o tempo que quisesse na torre, podia reintroduzir as personagens que lá viviam e especular sobre a conversa que nunca cheguei a ter com o Ryan. Haven segue este elaborado processo de composição e reconstrução digital enquanto fala da utopia familiar e técnica que tentaram criar na torre. A certa altura do processo, senti que a utopia que estava a tentar recriar não se podia sustentar. Incorporei um processo de colapso em que as imagens 3D perfeitamente renderizadas revelam a sua fragilidade enquanto o filme reflecte sobre a perda de memória do fundador de Sealand e o fracasso do data haven.

 

MM: A instalação inclui uma intervenção arquitetónica que transforma o espaço expositivo num cenário imersivo, alterando a perspetiva do visitante, que dá entrada no espaço do data centre, capturado através de uma lente algorítmica na projeção Lapse (2023). Como surge esta transição no desenho de exposição?

 

JN: Trabalhando com o curador Mattia Tosti, tentámos encontrar formas de modificar a arquitetura reconhecível da Galeria da Boavista, trazendo ao mesmo tempo alguns dos elementos arquitectónicos da animação e do material de investigação para a própria galeria. A ideia era criar estas diferentes intensidades com o material do investigação, de modo a que o espetador entrasse na galeria e encontrasse as impressões nas paredes, livros e documentos em vitrinas e que este material de arquivo mais tradicional conduzisse à lógica algorítmica de Lapse através de um portal semelhante a um centro de dados. Trabalhámos com a arquiteta Allegra Zanirato, que desenhou a estrutura. Ela desenvolveu o design utilizando materiais de construção simples que se refletem nas prateleiras dos servidores e nos corredores dos centros de dados. A estrutura também funciona como um elemento de enquadramento dentro da arquitetura alargada do piso 0 da Boavista e ajudou-nos a ter algum controlo sobre a luz ambiente.

 

MM: Trabalhando questões como a circulação e proteção de dados, este corpo de trabalho toca também em temas como a insularidade e a memória, patentes em trabalhos teus anteriores — lembro-me, por exemplo, da instalação Delay na Appleton Square. Como é que estas temáticas se têm desenvolvido ao longo da tua obra?

 

JN: Sim, existem ligações entre este projeto e Delay, mas em relação às questões ou assuntos que mencionaste, talvez o projeto esteja ainda mais ligado a Fossil que apresentei nas Carpintarias de São Lázaro em 2020. Como disse anteriormente, estava a tentar não ficar preso à história familiar anedótica em torno de Sealand e, claro, todos os projetos refletem experiências pessoais, mesmo que não seja essa a intenção inicial. As questões relacionadas com a memória e a sua falha, as lacunas na língua ou na comunicação, a insularidade e o isolamento são muito importantes para mim. Para refletir sobre a tua primeira pergunta, sinto que o projeto começou por quase se afogar no seu próprio material de investigação, ao longo do tempo os assuntos com que tenho trabalhado em projetos anteriores revelaram-se novamente e Haven assumiu um significado muito mais pessoal.

 

James Newitt

Galeria da Boavista

 

Margarida Mendes é investigadora, curadora e educadora, A sua prática explora a mediação ecológica, com enfoque no cruzamento entre as artes visuais, cinema experimental, ecopedagogia, práticas sonoras e humanidades ambientais. Cria fóruns transdisciplinares, exposições e obras experimentais em que modos de educação alternativa e práticas de auscultação podem catalisar a imaginação política e ações restauradoras. Tem um envolvimento de longa data com activismo anti-extrativista e ecopedagogia, colaborando com organizações ambientais, Universidades e instituições do mundo artístico. Integrou na equipa curatorial da 11th Gwangju Biennale "The 8th Climate (What Does Art Do?)", 4th Istanbul Design Biennial "A School of Schools", e 11th Liverpool Biennale "The Stomach and the Port". Dirigiu diversas plataformas educacionais, como escuelita, uma escola informal do Centro de Arte Dos de Mayo - CA2M, Madrid (2017); O espaço de projectos artísticos The Barber Shop em Lisboa dedicado à pesquisa transdisciplinar (2009-16); e a plataforma de pesquisa curatorial sobre ecologia The World In Which We Occur/Matter in Flux (2014-18).

 

 



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James Newitt: Haven. Vistas da exposição na Galeria da Boavista, Galerias Municipais de Lisboa/EGEAC, 2023. Fotos: Bruno Lopes. Cortesia do artista e Galerias Municipais de Lisboa/EGEAC. 

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