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O Quilombismo

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Ana Salazar Herrera

 

O Quilombismo: Of Resisting and Insisting. Of Flight as Fight. Of Other Democratic Egalitarian Political Philosophies

 

Ressignificar toda uma instituição para acomodar O Quilombismo, em Berlim

 

A Casa das Culturas do Mundo (Haus der Kulturen der Welt, ou HKW), em Berlim, construída originalmente em 1957 por oferta dos EUA enquanto pavilhão de congressos e transformada em espaço artístico em 1987, esteve encerrada para remodelação durante vários meses, tendo reaberto recentemente com um big bang sob a direção artística do curador camaronês Prof. Dr. Bonaventure Soh Bejeng Ndikung. Desde então, tem-se vindo a desdobrar todo um novo universo coletivo no interior e no exterior desta singular instituição de prestígio. Parece que cada tijolo do edifício foi ressignificado para não apenas repensar e problematizar mas também construir e pôr em prática conceitos alusivos à Casa, as complexidades das Culturas e as ideias de Mundo. Antes de examinarmos a comovente exposição inaugural, para a qual a equipa curatorial trabalhou durante mais de um ano, estudemos primeiramente os atos vitais que persistirão bem para lá do encerramento da mostra. No seu conjunto, estes atos articulam as deliberações e propostas da equipa da Casa relativamente ao papel que uma instituição artística deve desempenhar nos tempos em que vivemos.

Começando no exterior, todas as hastes de bandeiras originalmente instaladas para glorificar estados-nações foram permanentemente reinventadas enquanto espaços expositivos. No jardim da entrada principal, continuar-se-á a apresentar uma série de obras encomendadas de arquitetura social comprometida de diferentes partes do mundo para construir espaços de encontro acolhedores. Uma perturbadora citação de Benjamin Franklin, inscrita numa parede no corredor de entrada, foi enviada a amigos, colegas e filósofos que foram convidados a responder e pensar com e contra o próprio Franklin. A citação é a seguinte: "Deus permita que não apenas o amor pela liberdade mas também um conhecimento integral dos direitos do homem conquiste todas as nações da Terra, para que o filósofo, esteja onde estiver em todo o planeta, possa dizer «Este é o meu país»." Esta afirmação, claro está, pode servir de base para validar e perpetuar a violência e os legados colonialistas.

As novas frases foram inscritas em estruturas coloridas translúcidas que surgem suspensas diante da citação original, que, embora não tenha sido propriamente apagada, é agora desafiada, coberta, substituída por outras. Uma das placas, escrita pela pensadora francesa Françoise Vergès, diz: "Num estado de guerra permanente e violência sistemática, este é um espaço onde se pode pôr em prática uma paz revolucionária e trabalhar no sentido da reparação e da comunização. Criemos um mundo onde o direito de respirar e amar seja verdadeiramente planetário." Noutra, desta vez da socióloga jamaicana Erna Brodber, lê-se: "O quebrar do inhame na comunidade akan, no Gana, no início do ano é o ato simbólico de partilha do essencial da vida. Rezamos por que aquilo que voa leve consigo a sua bondade e a partilhe com todos." Em particular, estes casos também veiculam uma postura de respeito e dignidade que lança o mote para a expurgação dos alicerces da Casa.

Talvez a mais significativa proclamação seja a redenominação dos diferentes espaços interiores e exteriores da HKW. Os salões, as salas, os átrios, os jardins, o auditório, a biblioteca, os terraços, as entradas, os escritórios, aos espelhos d'água, as escadarias, um bar e outros espaços receberam os nomes de 38 importantes mulheres de todos os cantos da Terra. Cada metro quadrado por que caminhamos e cada partícula de ar que respiramos compõe-se de histórias de mulheres, historicamente apagadas na sua generalidade, naquilo que configura um movimento produtivo no sentido de reparar a perda e a opressão insuperáveis que o patriarcado inflige sobre todas nós todos os dias. Os diferentes espaços transformam-se numa arquivística de histórias no feminino; e os visitantes ou já terão consciência destas figuras, ou ficarão a conhecê-las com a ajuda da sinalética, que elucida quem estas mulheres foram ou são.

O Jardim Semra Ertan presta homenagem à ativista e poeta turca que se imolou aos 25 anos de idade em protesto contra a crescente intolerância e hostilidade social para com os imigrantes na Alemanha. A entrada principal enverga o nome de Hedwig Dohm, uma pensadora e dramaturga feminista alemã do século XIX. O Espaço Marielle Franco relembra a política brasileira negra que foi assassinada em 2018 por defender os direitos humanos de pessoas racial e sexualmente discriminadas e por protestar contra a violência policial. A pianista e compositora etíope Emahoy Tsegué-Maryam Guèbrou também batiza um dos espaços, ao passo que a jornalista martinicana Paulette Nardal, a principal voz do movimento Négritude, dá nome ao terraço do piso superior. O Auditório, por sua vez, recebe o da fabulosa cantora, compositora, atriz e porta-voz anti-apartheid sul-africana Miriam Makeba; e a biblioteca pertence à grande escritora libanesa-palestiniana May Ziadeh, pioneira da literatura feminista árabe. O átrio principal no piso de entrada presta tributo ao trabalho fundamental da escritora e teórica jamaicana Sylvia Wynter; e, logo ao lado, dedica-se um salão à poeta e pensadora radical negra brasileira Beatriz Nascimento, que "votou muito do seu trabalho aos quilombos, comunidades autónomas de resistência criadas por pessoas escravizadas e pelos seus descendentes, no âmbito da sua investigação académica mas também no contexto do seu percurso pessoal na luta antirracista".

E assim chegamos ao conceito da exposição patente, precisamente intitulada O Quilombismo: Of Resisting and Insisting. Of Flight as Fight. Of Other Democratic Egalitarian Political Philosophies, que ocupa todos os espaços possíveis e impossíveis da Casa e que conta com as contribuições de 68 artistas. Com a redenominação dos espaços, também se percebe entre estes e as obras que albergam um diálogo com diferentes camadas. Em vários sentidos, a obra artística e teórica de Abdias Nascimento é crucial não apenas para compreender a intenção curatorial mas também para decifrar o código cromático que se impõe nas paredes, nos soalhos, nas estruturas expositivas e nos assentos. A cenografia, às mãos do Studio Bel Xavier, retira as suas vívidas tonalidades violeta, cor-de-rosa, cor de laranja, azuis, verdes e amarelas da espantosa pintura Oxunmaré Ascende, realizada por Nascimento em 1972, que apresenta o espírito andrógino do arco-íris, que por sua vez representa a ligação entre a terra e o céu e se revela símbolo de persistência, movimento e riqueza.

Abdias Nascimento define "quilombo" como uma "reunião, ou um encontro, livre ou fraternal; solidariedade, vivência conjunta, comunhão existencial. A sociedade quilombista representa uma fase avançada do progresso humano sociopolítico no contexto de um igualitarismo económico." É com base nesta premissa que O Quilombismo reúne um conjunto alargado de práticas artísticas e investigativas, muitas das quais referenciam ou inclusivamente surgem de práticas espirituais afrodiaspóricas, como o Candomblé brasileiro, o Vodou haitiano e a Santería cubana, entre outros. Como escreve Nascimento: "Experiência e ciência; revelação e profecia; comunhão de humanos e divindades; diálogo entre os vivos, os mortos, os que ainda não nasceram, o Candomblé marca o ponto em que se recupera integralmente a continuidade existencial de África. Em que os seres humanos podem olhar para si próprios sem ver o reflexo do rosto branco do violador físico e espiritual da sua raça." Igualmente, explica que os orixás estão na base do seu trabalho artístico, porquanto o culto destas espiritualidades no contexto do Candomblé constitui os alicerces de um processo profundamente esclarecido de luta pela liberdade.

 

 

Instalada no Salão Beatriz Nascimento, com paredes violeta, soalho fúcsia e uma parede castanha curva no centro, Oxunmaré Ascende junta-se a outras pinturas do mesmo artista e a três fotografias do fim da década de 1980 da autoria do artista britânico-nigeriano Rotimi Fani-Kayode, filho de um padre yoruba que conciliou o vocabulário das divindades desta comunidade com a terminologia queer através de um conjunto de retratos de nus negros com máscaras, penas, plantas, frutos e outros objetos. Além destas, outras quatro pinturas recentes dos membros do Taller Portobelo, fundado em 1995 por artistas da comunidade portobelo congo, do Panamá, prestam tributo à genealogia dos seus artistas, remontando aos cimarrones, africanos auto-emancipados. Estas peças ostentam a rainha soberana María Merced, um curandeiro, um rei ara e a força imensa dos cimarrones (Judimingue nunko modidá [Os cimarrones nunca morrerão], 2019), numa singular estilização afro-congo que recorre a tinta acrílica, fragmentos de espelhos partidos, penas e conchas. De 2021, o extenso e intricado #Map, da artista francesa Marie-Claire Messouma Manlanbien, apresenta a frase “Ce corps est le nôtre ainsi croisé” (Este corpo é nosso, e portanto cruzado), e constitui-se de várias camadas de fibra de juta e de ráfia, cabelo, fios metálicos, resina e outros materiais que traçam uma pluralidade de histórias de pessoas africanas, assim entrelaçando variadas linhas sociopolíticas. Patchwork Culturel (1979), pintura sobre cabedal da autoria do modernista marroquino Farid Belkahia, que recorre à cultura berbere tradicional e ao simbolismo tuaregue para compor uma linguagem pictórica de formas geométricas e caracteres tifinague, encontra-se em diálogo com Microcron Begins No. 19 (2013), pintura a preto e branco do artista ganês Owusu-Ankomah que apresenta uma variedade de símbolos adinkra da comunidade asante, do Gana. Ambas são exemplos de dicionários ancestrais que exprimem a sabedoria e o conhecimento coletivo de um povo.

Por toda a área do Átrio Mrinalini Mukherjee, sobre um chão laranja, serpenteia triunfantemente um mural de chão em preto intitulado Kubatana (togetherness/unity/connecting/touching/holding), da autoria de Nontsikelelo Mutiti. O padrão de tranças africanas revela-se uma celebração desta técnica ancestral, não apenas enquanto expressão da cultura e da sabedoria africana mas também enquanto linguagem política utilizada como sistema de mapeamento para fugir à servidão. Esta obra gera um ponto de interligação entre as várias peças instaladas nesta ampla sala, banhada pela luz do sol, de que são exemplo The Council of the Mother Spirits of the Animals (2020–2023), da artista shipibo-conibo Celia Vasquez Yui, um anfiteatro com esculturas em cerâmica pintada de 16 animais distintos, incluindo um ser humano; ou Aceita? (2013–presente), do pastor candomblé Moisés Patrício, uma série de 12 fotografias instaladas em círculo na qual cada imagem retrata a palma da mão do artista numa posição de generosa oferta, assim propondo um gesto de natureza não transacional — um presente.

Sobre as paredes da sala, de um azul profundo, destacam-se as deslumbrantes telas com contas de vidro de Demond Melancon, Big Chief dos Young Seminole Hunters, alicerçadas no black masking de Nova Orleães, uma subcultura que nasceu no século XIX quando os nativo-americanos ajudaram africanos escravizados a fugir. As ricas e intricadas representações desta história que Melancon apresenta integram-se também nas excêntricas vestimentas que o artista cria todos os anos para o Mardi Gras Day, a St. Joseph's Night e o Downtown Super Sunday, inspirando-se para tal em reis e líderes africanos lendários como Shaka Zulu Fasimba e Haile Selassie; africanos auto-emancipados das Américas, como Bras-Coupé, que liderou diversas rebeliões contra a escravatura; e líderes nativo-americanos que ofereceram resistência à colonização. Também aqui vemos vários kavands siddi: bordadas e cosidas à mão a partir de têxteis reutilizados, estas colchas afro-indianas de cromática vibrante são feitas por membros das comunidades siddi da costa oeste da Índia, descendentes dos bantus, por sua vez oriundos do leste de África. Estes têxteis abstratos revelam-se guardiões do conhecimento e das histórias das pessoas que os fazem e, juntamente com as restantes e numerosas peças têxteis da exposição, levantam questões relacionadas com o relato e com os modos de contar a história alargada das comunidades de que provêm.

No Átrio Sylvia Wynter, levou-se a arquitetura em total consideração na encomenda de peças site-specific. Conta-se entre estas a intervenção de Amina Agueznay, composta por fios tingidos naturalmente que envolvem seis colunas distintas, assim oferecendo calorosamente as boas-vindas ao visitante, num contraste com a simetria modernista do edifício — um começo auspicioso para a HKW, assegurado pela hena que constitui a obra. Por sua vez, Tanka Fonta, compositor, artista, autor, performer, poeta e investigador camaronense, pintou uma banda sonora em nove partes. Apresentada ao longo de uma estreita orla sobre a circunferência do átrio e intitulada The Cosmogenic Interconnectedness ‘How Did We Talk Before the Roman Alphabet?’ The Picto-Sonic Dialogues I, esta composição simbólica de uma linguagem não verbal persiste no tempo profundo, para lá do pensamento, e foi interpretada ao vivo na inauguração da exposição.

A arte começa a envolver a Casa já desde o exterior. Ao artista e escritor nigeriano-americano Olu Oguibe foram encomendadas três bandeiras de sete metros de largura, instaladas no terraço e visíveis de bem longe, inclusivamente do parlamento. Estas três bandeiras idênticas envergam o preto, o vermelho, o amarelo e o verde, numa conjugação da bandeira pan-africana, da bandeira dos aborígenes australianos e da bandeira alemã, ostentando ainda as iniciais DDR, que aqui significam Descarbonizar, Descolonizar e Reparar/Repatriar/Reabilitar. Neste sentido, a instalação toca nas feridas dos tempos que vivemos e, em simultâneo, espelha a herança da Guerra Fria associada ao local em questão. Por outro lado, as paredes da fachada do edifício, à esquerda e à direita da entrada principal, encontram-se cobertas por duas poderosas séries de sete painéis cada da autoria do artista visual e carnavalesco Alberto Pitta, pioneiro da estampagem afro-baiense inspirada nos orixás. As telas de Pitta protegem gentilmente a Casa, revelando uma história visual que, de um lado, explora o mundo de Ogum, o orixá candomblé que é conhecido por abrir e cultivar novos caminhos, e, do outro, estuda e celebra as estéticas e os sistemas de habitação comunitária dos quilombos brasileiros.

Como Ndikung escreve na folha de sala da exposição, "o quilombismo manifesta-se enquanto filosofia de resistência através da alegria, enquanto espaço de prática das tecnologias do encantamento, enquanto espaço real e facultativo de bem-aventurança e júbilo concebido a partir de valores éticos e igualitários". A HKW fez da sua missão transformar-se num espaço como aquele de que Ndikung fala, onde o corpo e a mente podem libertar-se — um espaço onde nos podemos recolher, reparar e recalibrar. O sentimento de imersão na filosofia e na história do quilombismo é curativo e fortalecedor. Todas as decisões curatoriais refletem uma convergência no sentido de uma multiplicidade e a-estruturalidade, revelando também um entendimento profundo do quilombismo enquanto processo continuado que precisa de ser cultivado.

Como tal, não há aqui lugar para uma suposta neutralidade, nem tão-pouco para white cubes ou panos de fundo pardacentos. Pelo contrário, encontramos aqui um festim multissensorial que acolhe todos os tipos de linguagem: faladas ou não, musicais, simbólicas, espirituais ou corporais, humanas ou não — as linguagens que existem nos espíritos e nos corpos das pessoas e que através deles têm sobrevivido, não obstante a indescritível violência que há muito os vem acometendo. Os quilombos apareceram durante o período de instauração do colonialismo e do capitalismo, cujos legados constituem os alicerces das nossas sociedades hipercapitalistas; e, enquanto instituição cultural localizada no coração da Europa, a HKW, finalmente, começa não apenas a reconhecer e a prestar tributo à identidade profundamente multicultural de Berlim, mas também a construir-se enquanto espaço onde é possível cultivar o processo de resistência à colonização e ao imperialismo cultural. Que o amor e todos os poderes, conhecimentos corporizados, sonoridades, sororidades, talismãs, amuletos, berimbaus, estrelas e anseios que se implicaram neste projeto inaugural às mãos de todos os envolvidos salvaguardem a intrepidez deste compromisso.

 

HKW [Haus der Kulturen der Welt]

 

Ana Salazar Herrera (1990) é curadora e escritora, fundadora do Museum for the Displaced (2019-presente) e curadora assistente da Diriyah Contemporary Art Biennale 2024, Arábia Saudita. Explora subjetividades nómadas, poli-linguísticas e transculturais, propondo questionamentos inventivos de mapeamentos geopolíticos hegemónicos. Foi curadora interim no Ludwig Forum Aachen (2022-23), Alemanha, e curadora assistente no NTU Centre for Contemporary Art Singapore (2016-20). Ana foi curadora-em-residência (2021-22) no Künstlerhaus Schloss Balmoral, Alemanha, participante no programa de mentoria Project Anywhere (2020-21), e fellow no Shanghai Curators Lab (2018). Tem um mestrado em Práticas Curatoriais da School of Visual Arts, Nova Iorque, e uma licenciatura em Piano da Escola Superior de Música de Lisboa. Publica em revistas de arte, catálogos de exposições e jornais académicos como Afterall e Stedelijk Studies.

 

Tradução do EN por Diogo Montenegro. Revista pela autora.

 

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O Quilombismo: Of Resisting and Insisting. Of Flight as Fight. Of Other Democratic Egalitarian Political Philosophies, 2023. Vistas da exposição na Haus der Kulturen der Welt (HKW). Fotos: Laura Fiorio/HKW. Cortesia de HKW.

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