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Institution(ing)s: prelúdio 

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Luísa Santos

 

Instituições artísticas,

microrganismos vivos

 

O início

[1]

 

A história do texto que inicia a rubrica Institution(ing)s, e da investigação com o mesmo título, começou num encontro com os desafios atuais dos museus de arte contemporânea no Tate Intensive: Making Tomorrow’s Art Museum, um programa de uma semana na Tate Modern, em Londres, em 2016, que juntou cerca de 30 profissionais das artes visuais do Brasil, China, Coreia do Sul, Rússia, Grécia, Portugal, Austrália, Nova Zelândia, Canadá, EUA, India, e Reino Unido. Encontrámo-nos na recém-inaugurada extensão do edifício, cuja construção e manutenção teve e tem um impacto tremendo no meio ambiente, impacto esse que é sentido de modos diferentes nas diferentes partes do mundo que a instituição diz querer representar. Afinal, o mote ambicioso da Tate Modern recebia os públicos logo a partir das paredes exteriores: “Tate for All”. Nas salas da coleção e das exposições temporárias pudemos ver obras de artistas, como o Marwan Rechmaoui e o Sammy Baloji, de partes do mundo que demonstravam uma intenção inicial de que a coleção fosse internacional no sentido de representar arte e culturas visuais contemporâneas de várias nações de todas as partes do globo e não internacional no sentido que, até há pouco tempo era usado na Tate e que, muitas vezes, continua a ser aplicado em muitas instituições ocidentais. Ou seja, internacional enquanto representativa das artes e culturas visuais contemporâneas da Europa Ocidental e dos Estados Unidos da América e, na melhor das hipóteses, com breves apontamentos de outras partes do mundo que, regra geral, surgem num contexto que as exoticiza e as vincula a ideias pré-concebidas daquilo que são. Conhecemos também a responsável pelo departamento de “Igualdade, Diversidade, e Inclusão” e participámos num workshop sobre os preconceitos que existem em processos de seleção e recrutamento e como poderia (ou não) ser possível ultrapassá-los. No encontro, apesar das intenções descritas e apresentadas sobre “diversidade e inclusão de géneros e de raças”, não se discutiram os modos como os tipos de narrativas, experiências, e conhecimentos incorporadas e produzidas por esta diversidade de seres humanos estão ligadas aos legados coloniais e à crise ambiental que, por sua vez, está ligada a crises económicas, sociais e políticas.

É inegável que muitos artistas contemporâneos estão ativamente a agir contra os legados do colonialismo. Contudo, sem mudanças drásticas aos níveis dos cargos de direção e da organização interna das instituições, as suas práticas continuam a ser apresentadas de um modo monocultural. Mudanças drásticas deste tipo implicam, como muitos autores têm vindo a apontar, uma atitude de abdicar das posições de poder. Por outro lado, implicam também uma atitude generosa e genuinamente curiosa de querer escutar os outros —humanos e mais que humanos — que nos rodeiam. Ao contrário de ‘dar voz’ às histórias marginalizadas e sistemicamente apagadas e renegadas, trata-se de escutar outras vozes para além das nossas e das que consideramos semelhantes às nossas não porque estamos numa posição de poder e, de certo modo, nos sentimos culpados nessa posição e queremos sentir-nos melhores, mas sim porque reconhecemos a nossa imensa ignorância sobre um mundo que é demasiado vasto para ser apreendido numa só vida. Trata-se de reconhecermos que só escutando outros seres, com outras experiências e conhecimentos, podemos produzir novo conhecimento e, em última instância, desenvolvermo-nos enquanto seres humanos.

O Institution(ing)s, enquanto projeto colaborativo entre a Universidade Católica Portuguesa, o HANGAR, o Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian, a Jan van Eyck Academie, o Tensta Konsthall, o Museum of Impossible Forms, a Listening Academy, e a HDK-Valand, nasceu assim, fundado na escuta e na atenção, para tentar compreender como agir sobre os legados coloniais, os tempos anti ecológicos, e as inter-relações das múltiplas crises sociais contemporâneas. Institution(ing)s — tanto esta seção e textos que a integrarão, como o projeto que lhe dá nome — é uma experiência colaborativa, cumulativa e em curso para pensar como criar tipos de instituições artísticas e culturais que existam sem paredes, instituições que são — como os seres humanos e não humanos que as habitam — organismos vivos em constante mudança.

 

Das monoculturas do Século XX às permaculturas nas instituições artísticas do Século XXI

 

“Like permaculture adapted to agriculture, institutional permaculture is a philosophy that gradually materializes, taking the time to observe, according to a method and a rhythm adapted to particular situations and desires. It is not a question of acting brutally on an ecosystem to modify it overnight, nor of blindly applying a new model to an old reality. Nor is it a question of turning one's back on history by denying the quality of what has already been done, but rather of drawing inspiration in an inventive and daring way from what already exists in order to direct it towards new goals.”

Guillaume Désanges, President of the Palais de Tokyo

 

Em meados do Século XX, com o final da 2ª Guerra Mundial, momento no qual quase todas as colónias tinham recuperado a sua independência, entrando em relações pós- e neocoloniais, e quando a unidade e a (fabrica)cria(ção) de uma (narrativa de uma) identidade europeia foi entendida como essencial para a sobrevivência da Europa, as monoculturas surgiram como a solução para maximizar a produção da agricultura, o que resultou em extensas áreas de culturas idênticas. Se visualmente estas monoculturas podem parecer harmoniosas, no Século XXI, é do conhecimento comum que, a nível ambiental e humano, estas monoculturas têm consequências desastrosas para a biodiversidade e para os ciclos da produção de alimentos.

Várias experiências na agricultura, incluindo a permacultura, que tem raízes nas ciências, conhecimentos e experiências indígenas de trabalhar em colaboração e reciprocidade com a terra e com os ciclos da natureza (Walker, 2019) têm vindo a ser testadas para responder à urgente necessidade de ambientes e ecossistemas sustentáveis. Do mesmo modo, muitas instituições artísticas têm iniciado processos de transição nas suas metodologias monoculturais para perspetivas e éticas permaculturais (cuidado pela terra, cuidado pelas pessoas, partilha justa de excedentes) de modo a responder, simultaneamente, à urgência de uma maior diversidade humana e de sustentabilidade ambiental nas práticas artísticas institucionais. Por contraste às monoculturas, o principal objetivo da permacultura, é assegurar o equilíbrio entre várias influências culturais e naturais não deixando que nenhum aspeto se torne dominante, criando um ecossistema de coexistências e de desenvolvimento simbiótico de culturas e ambientes diversos.

Se, por um lado, é essencial reconhecer que as bases das práticas institucionais continuam, regra geral, assentes em tradições do passado colonial que perpetua grandes narrativas, contadas pelos poucos que têm acesso a posições de poder, sobre o que é arte, e sobre o que é cultura (e também sobre o que é permacultura, muitas vezes ignorando as suas origens), por outro lado, há vários modelos a serem testados, em vários campos disciplinares. Assistimos, por exemplo, no campo artístico, a uma crescente popularidade de escolas de arte experimentais e modelos não-institucionais/pós-institucionais de aprendizagem, de produção e exposição artística que, na verdade, não são novos. Lembremos, por exemplo, a Bergen Architecture School, fundada em 1986 a partir do conceito de Open Form (Forma Aberta), uma metodologia que fomenta processos inclusivos na criação de espaços e situações temporais para permitir diversos tipos de colaboração e desenvolvimento[2]. Na década de 1990, um projeto que nasceu no bairro Ngbaka, uma das zonas mais pobres de Kinshasa, e que durou dez anos, o Collectif Ghetto Kota Okola (Coletivo Ghetto Entra Cresce) foi uma iniciativa experimental que criou um espaço de produção e troca de conhecimento, confrontação e difusão centrado em formas de expressão artística. Fundado pelo artista e músico Bebson Elemba e pelo irmão, artista e realizador de cinema, Dicoco Boketshu, o Ghetto era uma escola das ruas, um espaço que elevou novas formas de Hip Hop na dança, música e artes visuais. O que estes dois breves exemplos parecem dizer é que talvez as práticas institucionais dominantes devam ser desafiadas a partir de formas e conhecimentos existentes. Ou, como Guillaume Désanges reflecte, a solução não parece residir apenas em agir brutalmente contra um ecossistema — ou, eu acrescentaria, no seguimento do que tem sido escrito sobre a decadência, anunciar a sua morte — e formar um novo cânone que substitua o que já existe. Pelo contrário, talvez precisemos de olhar para as várias experiências e alternativas que têm vindo a ser testadas em diferentes áreas disciplinares, geografias, e contextos sociais, culturais, políticos, e económicos para aprendermos novas metodologias, novas relações e novos modos de trabalharmos e vivermos em conjunto na diversidade que caracteriza tanto os lugares que habitamos como as nossas próprias identidades e histórias.

Mas como é que as instituições artísticas podem passar de objetos monoculturais, enclausurados em paredes (físicas e conceptuais), que representam grandes-narrativas para organismos vivos em constante mutação e em relações de mutualidade para imaginar novas narrativas? O discurso de Olga Tokarczuk, aquando da entrega do Prémio Nobel da Literatura em 2018, poderá servir para começar a desenhar uma ou várias possíveis respostas a esta pergunta:

“We are all―people, plants, animals, and objects―immersed in a single space, which is ruled by the laws of physics. This common space has its shape, and within it the laws of physics sculpt an infinite number of forms that are incessantly linked to one another. Our cardiovascular system is like the system of a river basin, the structure of a leaf is like a human transport system, the motion of the galaxies is like the whirl of water flowing down our washbasins. Societies develop in a similar way to colonies of bacteria. The micro and macro scale show an endless system of similarities. Our speech, thinking and creativity are not something abstract, removed from the world, but a continuation on another level of its endless processes of transformation.”

Do mesmo modo que os humanos e não-humanos estão todos ligados, e em processos contínuos de transformação, também as instituições podem ser entendidas como organismos vivos, sem paredes, que se relacionam e complementam em relações de constante mutualidade e troca.

 

L'Internationale: imaginar instituições em redes de mutualidade e mutabilidade

 

Há mais de dois séculos que os museus têm sido guardiões do património e das memórias enquanto a academia tem dominado a legitimação do que é ou não é conhecimento. Contudo, nas décadas mais recentes, as instituições artísticas e a academia têm-se assumido como espaços inseridos na esfera pública nos quais se discutem e questionam crises múltiplas e conflitos como a crise ambiental, populismo, censura, fake news, exclusão social, falta de diversidade e de igualdade, para mencionar apenas alguns exemplos. Muitas instituições de diferentes tipologias, recursos, missões, dimensões, e públicos estão, assim, a tornar-se palco para discussões intersecionais. O termo “intersecionalidade” foi cunhado pela Kimberly Crenshaw que o definiu enquanto a “visão de que as mulheres experienciam opressão em configurações e graus diferentes. Exemplos incluem raça, género, classe, capacidade, e etnicidade[3]” (1989:8). A intersecionalidade mostra-nos assim tensões entre identidades, formas de discriminação, exploração e extração tanto no mundo natural como no humano e como estas diferentes partes do mundo estão intrinsecamente ligadas.

Compreendendo o sector cultural como um ecossistema formado por instituições de diferentes escalas, impactos, e públicos, a L’Internationale formou-se em 2014 como um projeto colaborativo entre sete museus (Muzej suvremene umjetnosti, na Croácia; Museo Reina Sofía, em Espanha; MACBA, em Espanha; M HKA, na Bélgica; Muzeum Sztuki Nowoczesnej, na Polónia; Salt, na Turquia; Van Abbemuseum, na Holanda), três instituições académicas (HDK-Valand, Suécia), National College of Art and Design, Irlanda; e o Research Centre of the Slovenian Academy of Sciences and Arts, Eslovénia), quatro organizações e centros de arte (Institute of Radical Imagination, Itália; tranzit.ro, Roménia; Haus der Kulturen der Welt, Alemanha; e o Visual Culture Research Centre, Ucrânia), e ainda dois parceiros associados (Irish Museum of Modern Art, Irlanda e WIELS, Bélgica), cada um com funções e identidades específicas no campo das artes e em diferentes partes da Europa.

Esta constelação de diferentes instituições, que conta com colaborações fora da rede e das geografias nela representada, é o que faz com que a L’Internationale esteja particularmente bem posicionada para repensar instituições artísticas bem como a sua relevância e impacto na sociedade a um nível planetário. As éticas da L'Internationale assentam em valores, simultaneamente, de diferença e antagonismo, solidariedade e comunidade. É um lugar (ou um conjunto de lugares que especula sobre um novo lugar, sem paredes) onde tanto as diferenças como os pontos em comum são debatidos para assegurar o equilíbrio entre múltiplas influências culturais, naturais e sociais. Não permitindo que nenhum aspeto ou metodologia em particular se torne dominante em prole de uma outra, estimula um ecossistema feito de coexistências e de desenvolvimentos simbióticos de diferentes culturas e dos seus ambientes numa evolução contínua de heterogeneidades que, não sendo sempre harmoniosas ou livres de conflito, serão — no seu melhor — construtivas, ricas em produção de novo conhecimento.

Através de produção de discurso a par de experimentação artística e curatorial, a L'Internationale mostra como a ideia da “instituição” pode transformar-se num organismo vivo, que se vai “institucionando” ao longo e através de múltiplas histórias, espaços, tempos e contextos: uma entidade sem paredes, em constante mutação e mutualidade com outros organismos, que nos recebe como uma cozinha comunitária, aberta, que nos convida a cozinhar futuros possíveis a partir dos ingredientes que temos. Para isso, como em qualquer prato bem confecionado, teremos de conhecê-los, saboreá-los, escutá-los e compreendê-los com toda a profundidade, curiosidade e generosidade.

 

 

Luísa Santos [1980, Lisboa]. Curadora Independente, doutorada em Culture Studies pela Humboldt & Viadrina School of Governance, em Berlim, e mestre em Curating Contemporary Art pela Royal College of Art, em Londres, é, desde 2019, Investigadora Auxiliar em Estudos de Cultura vertente de Estudos Artísticos na Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica Portuguesa. Entre 2016 e 2019 foi Professora Auxiliar, com uma Gulbenkian Professorship, na FCH-UCP. É research fellow da The European School of Governance [EUSG], em Berlim, desde 2019. Em 2013 foi investigadora em Práticas Curatoriais na Konstfack e na Tensta Konsthall, em Estocolmo. Investigadora do CECC, co-fundou e é directora artística do projeto 4Cs: from Conflict to Conviviality through Creativity and Culture, um projecto de cooperação Europeu cofinanciado pela Europa Criativa. É membro do conselho editorial das revistas Estúdio, Gama, Croma, do Yearbook of Moving Image Studies [YoMIS - Research Group Moving Image Kiel], Büchner-Verlag, do Garage Journal do Garage Museum de Moscovo e editora da série [im]material culture[s] and politics, da Routledge. Em 2018, co-fundou a nanogaleria com Ana Fabíola Maurício. 

 

 

A autora escreve de acordo com a antiga ortografia.

 

 

Imagem © Cortesia de Jan van Eyck Academie. 


Notas:

 

[1] Esta investigação foi iniciada com a Ana Fabíola Maurício, no contexto da nossa participação na conferência “Considering Monoculture”, em 2020, organizada pelo M HKA (Museu de Arte Contemporânea de Antuérpia), o Van Abbemuseum e o deBuren. Desde então, a investigação tem-se desenvolvido em publicações, apresentações e no desenho de um projeto colaborativo experimental em conjunto com instituições como: Universidade Católica Portuguesa; HANGAR; Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian; Jan van Eyck Academie; Tensta Konsthall; Museum of Impossible Forms; The Listening Academy; HDK-Valand. As ideias que aparecem neste texto e aparecerão ao longo desta rubrica na Contemporânea, são fruto de muitos diálogos, conversas, e leituras, essencialmente com as pessoas que fazem parte destas organizações, como: Ana Fabíola Maurício, Benjamin Weil, Ana Botella, Agata Wiórko da Câmara Caeiro, Grégory Cástéra, Hicham Khalidi, Giulia Bellinetti, Mick Wilson, Giovanna Esposito Yussif, Brandon LaBelle, Dayang Yraola, Gueli Morato, e Rayya Badran, entre muitos outros.

[2] “Foundation/Open Form” in Bergen Architecture School. Último acesso em 18 Agosto 2023.

[3] Tradução livre da autora.

 

 

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