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Martha Rosler: In One Way or Another

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João Sousa Cardoso

 

 

A educadora entre o fogão e a guerra

  

A economia

 

Que Martha Rosler (1943) exponha, neste momento trágico de guerra na Europa, numa cidade alemã tão sacrificada pelos bombardeamentos da aviação americana na 2ª Guerra Mundial como Frankfurt, não será um acaso. Martha Rosler. In One Way or Another, a exposição retrospetiva da artista americana que o SCHIRN Kunsthalle de Frankfurt lhe dedica traduz a mesma vontade de intervenção que invariavelmente guiou o olhar, a mão e a palavra de um dos nomes mais politizados da cena contemporânea. Feminista, ativista anticapitalista, pioneira da vídeo arte e pedagoga (lecionou em diversas universidades e é professora emérita da Rutgers University de New Jersey), Martha Rosler personifica hoje uma das vozes da resistência política mais autorizadas a tomar assento em conferências internacionais sobre fotografia, media e teoria crítica da comunicação.

Em 1945, a cidade de Frankfurt — em cuja universidade Rosler foi também professora —, funcionou como entrada da investida dos Aliados na Alemanha nazi, contabilizando em 5.500 habitantes o número de perdas civis, além da ampla destruição do centro histórico medieval. Hoje, caminhando em Frankfurt, cidade que acolhe a sede do Banco Central Europeu, somos tomados pela mesma estranheza de um civitas moderna de rarefeita densidade histórica. Como na cidade de Roterdão, pressentimos o vasto silêncio que se abateu sobre a experiência do trauma de uma metrópole desvastada pela guerra.

Martha Rosler. In One Way or Another revisita os grandes momentos da obra de Martha Rosler desde os anos 70, nos seus diversos suportes: o texto, a fotografia, o vídeo, a performance, a escultura e a instalação. Sebastian Baden, recentemente empossado diretor do SCHIRN Kunsthalle e curador da exposição (com Luise Leyer), acompanha-nos numa visita guiada explicando o processo de construção da mostra em proximidade com a artista.

Na Rotunda do SCHIRN, a praça circular exterior ao centro de arte, encontramos dez lonas suspensas e impressas de carácter anónimo, no limbo entre a atualidade, o ativismo e a criação, o fio de Ariadne em que se desenvolve o discurso de Martha Rosler. Theater of Drones (2013) é esta instalação ambígua que reúne materiais documentais sobre drones e objetos voadores indeterminados ou “unmanned aerial vehicals” (UAVs) em contexto de vigilância e de guerra, concebida a convite de um festival de fotografia em Charlotteville, na Viriginia. Exposta originalmente ao longo de um extenso “Free Speech Wall”, Theater of Drones elogia Charlotteville como a primeira cidade americana a banir a circulação de drones no espaço aéreo local. A instalação foi, entretanto, apresentada numa versão adaptada para o espaço interior no Kunstmuseum Basel, na exposição War Games, em 2018.

Na articulação de fotografias documentais, informação gráfica e texto, Theater of Drones descreve o estado de desenvolvimento de fabrico e uso de drones, o plano de investigação tecnológica dos Estados Unidos, o programa de armamento britânico e americano, os aparelhos com a dimensão de aviões não tripulados, relatórios acerca das vítimas em bombardeamentos com recurso a drones no Pasquistão, Afeganistão, Yemen e Somália. Com nomes como “Predator” ou “The Reaper” (munidos de rockets “Hellfire”) estes drones continuam a ser produzidos massivamente em países como a Turquia, China e Israel. Diante da tangibilidade da obra, os curadores no texto de apresentação da exposição concluem: “Em relação a este relatório contemporâneo, Theater of Drones de Rosler não é ficção científica, mas uma realidade material.”

As colagens bruscas de Martha Rosler provocam o espectador e a sua familiaridade com certas imagens pela reflexão política e crítica dos media, a desocultação do fenómeno da guerra e a denúnica da violência de estado, acompanhadas pela desmontagem da aparente neutralidade ideológica da tecnologia e da sonhada transparência da comunicação nas sociedades ocidentais.

A consciência política e a militância da artista vêm do tempo em que era estudante de artes. Na era pós-Kennedy, Martha Rosler alistou-se no Women’s Liberation Front em San Diego; frente à corrida armamentista entre os Estados Unidos e a União Soviética durante a Guerra Fria, associou-se ao movimento pacifista; e, a partir de 1958, integrou o protesto do Campaign for Nuclear Disarmament nascido no Reino Unido.

Num momento em que a cena artística era, ainda, dominada pela pintura de grande formato da Escola de Nova Iorque, cingida à racionalidade geométrica ou ao gestualismo do artista-demiurgo, aos jogos do materialismo disciplinar e da autorreferencialidade — na linha do formalismo teorizado por Clement Greenberg — desligados da realidade imediata, Martha Rosler posicionou-se desde cedo contra o abstracionismo em pintura e a sua abstenção política, numa perspetiva revolucionária. Martha Rosler rompeu a paisagem introspetiva no mesmo gesto disruptivo voltado para o mundo exterior com que Hannah Höch, Raoul Hausmann e John Heartfield regiram à guerra no início do século; ou, mais tarde, a Internacional Situacionista contra a sociedade do espetáculo. Todos reverteram os materiais dos jornais e das revistas de grande circulação para descortinarem a ideologia dominante, os mecanismos insidiosos da propaganda e a submissão das elites e das massas.

A abordagem da artista à produção técnica, estética e publicitária (os títulos e slogans são cordas sensíveis no reportório de Martha Rosler) características da cultura de consumo terá sido influenciada pelo encontro com Herbert Marcuse (que Rosler refere em entrevistas) e pelo pensamento crítico dos teóricos da Escola de Frankfurt como Max Horkheimer, Theodor W. Adorno e Hannah Arendt, fugidos da Alemanha nazi para a América. A mesma Hannah Arendt que, lecionando em Nova Iorque se opôs à rebelião dos estudantes nos anos 60 e 70, merecerá a Martha Rosler uma obra textual — Reading Hannah Arendt (Politically, for an Artist in the 21st Century) — revisitando a filósofa alemã, em 2006, na sua descrição das estruturas de organização política e societal sob os regimes totalitários.

O détournement das fotomontagens de Martha Rosler, numa rigorosa elaboração conceptual, faz emergir os sentidos inusitados e o horror desapercebido contidos nas imagens. Sebastian Baden explica que a curadoria procurou condensar séries, compatibilizar vizinhanças, suscitar contaminações e abrir novas perspetivas a partir do trabalho, estruturando a mostra em três eixos: a iconografia da guerra, as políticas de género, o bairro de Brooklyn onde a artista vive em processo de gentrificação urbana.

Que a retrospetiva desta obra de resistência política seja apresentada na capital económica da União Europeia e numa das sedes do sistema económico global como é a cidade de Frankfurt — com interesses geoestratégicos manifestamente protegidos pela ocupação militar e pela guerra — não será, mais uma vez, um acaso.

 


 

A Violência de Estado

 

A iconografia da guerra é um dos veios que atravessa a obra de Martha Rosler, na representação crítica dos conflitos armados, da 2ª Guerra Mundial à atualidade, passando pelo Vietname, a guerra do Golfo, o conflito nos Balcãs e o fracasso da ocupação americana do Afeganistão.

Emocionalmente provocadora, Rosler explora a estética do agitprop em montagens que tecem comentários sociológicos e políticos, geralmente satíricos, documentando as formas de oposição democrática, a mobilização dos cidadãos e os movimentos pacifistas à escala global.

A série House Beautiful: Bringing the War Home examina em 20 fotomontagens os conflitos armados que envolvem os Estados Unidos. A série teve a sua génese justamente em flyers e panfletos criados por Martha Rosler entre 1967 e 1972 para distribuição em manifestações de contestação à Guerra do Vietname e ver-se-ia retomada entre 2003 e 2008 em resposta à ocupação militar do Afeganistão e do Iraque, na sequência do ataque terrorista ao World Trade Center em 11 de Setembro de 2001.

As colagens cruzam fotografias de reportagem de guerra apropriadas dos media (jornais, revistas ilustradas como a New York Times Magazine, a LIFE e revistas de design de interiores como a House Beautiful que empresta o nome ao título da série), imagens de manifestantes anti-guerra brutalizados pela polícia e imagens arquetípicas do bem-estar doméstico.

O confronto entre dois universos com imaginários inconciliáveis, convida-nos a questionar a iconografia política da guerra, o modelo da prosperidade económica urbana e a ideologia do american dream. Numa época em que as imagens da guerra aterravam, pela primeira vez, na televisão na sala de estar das famílias americanas, a guerra do Vietname ficaria conhecida como a primeira “living room war”. Rosler literaliza esta expressão popular, incrustando imagens de sangue, sofrimento e morte no lugar de vida onde a comunidade familiar procura privacidade, conforto e sossego (“O privilégio da privacidade é invisível para quem a possui” recorda.) Imagens dentro das imagens em sobrenquadramentos corrosivos, emoldurados pela arquitetura neoclássica ou modernista, por resgadas janelas e cortinas, recordam — numa declinação rude — o comentário subtil à teatralidade do mundo na pintura de Diego Velasquez. A artista cola, por exemplo, uma pilha de cadáveres enquadrada pela janela de uma sofisticada sala de estar, onde uma figura em bronze de Alberto Giacometti no cenário fotográfico original, já ali se encontrava — perturbadora — como outro corpo estranho, esquálido e calcinado que também testemunha uma experiência de guerra.

A estratégia destas colagens anti-guerra (“mindbombs” como lhes chamam os curadores no texto de apresentação) denota a influência direta dos trabalhos de John Heartfield (já citado) ou de Klaus Staeck mas também as colagens de Jess (artista de São Francisco e companheiro do poeta Robert Duncan) que impressionaram Rosler nos anos de formação no Brooklyn College. Ao mesmo tempo que Rosler influenciou, como antecipam os curadores, artistas contemporâneos mais jovens como Thomas Hirschhorn. Tornar os horrores da guerra visíveis é também transformar a responsabilidade da arte em comunicação de guerrilha. Martha Rosler recorda que o labor da arte ensina não existirem o “aqui” e o “longe”. Antes existem a cumplicidade da observação, a participação silenciosa e o sentido de responsabilidade.

Neste primeiro eixo da exposição, a instalação OOPS! (Nobody loves a hegemon) (1999) votada à guerra nos Balcãs, à intervenção da NATO e ao bombardeamento de Belgrado, ocupa o centro: um para-quedas suporta um barril de petróleo pintado de branco com o título da instalação escrito, enquanto do teto pendem latas de Coca-Cola, estando cada uma presa a um guardanapo como um pequeno para-quedas. A instalação literaliza (de novo) uma reportagem do New York Times que mencionava a carga dos explosivos “do tamanho de latas de Coca-Cola”, lançados sobre a rede elétrica para suspender as comunicações militares nos bombardeamentos a Belgrado, causando numerosos danos civis, incluindo um autocarro de passageiros que transportava mulheres e crianças. São os “danos colaterais” produzidos pelo recorrente conflito de interesses entre as grandes nações e as pequenas que emergiram na ex-Jugoslávia e a que o mundo assistiu, imperturbável. A instalação é completada por um repositório documental de fotocópias da imprensa e um computador com ligação a arquivos de websites da época — sérvios, albaneses e croatas —, com a respetiva propaganda online, na considerada a primeira guerra de cibercampanha da história.

Em diálogo com OOPS! (Nobody loves a hegemon) encontramos It Lingers (1993), uma série de dezanove fotografias, desenhos em papel e recortes de jornal, instalação documental comissionada para a exposição Krieg (War) de 1993, na Neue Galerie em Graz, na Áustria, pouco depois da primeira intervenção dos Estados Unidos no Iraque e próxima do cenário de guerra nos Balcãs, realizada durante o cerco de Sarajevo. Rosler cita as fontes da Amnistia Internacional e textos históricos como o relatório do Carnegie Endowment for International Peace publicado em 1914, anterior à Primeira Guerra Mundial; ou citações de Harold D. Lasswell, o cientista político americano que sistematizou estratégias de propaganda na II Guerra Mundial defendendo o controlo da opinião pública e a orientação dos cidadãos na democracia; ou trechos dos escritos de Hannah Arendt sobre as táticas de guerra e a captura do poder pelos Estados.

It Lingers combina, num tableau visual, fotografias de imprensa desde a II Guerra Mundial até 1990: provas de atrocidades durante a operação Tempestade no Deserto pelos Estados Unidos e paradas triunfais; imagens de Sylvester Stallone no filme Rambo e uma fundição em Greenpoint, Brooklyn, onde se produz estatuária glorificando a guerra; instrumentos de tortura da Áustria medieval e instrumentos modernos para obtenção de informações militares; retratos de Hitler num mercado de velharias em Viena e um desenho de do ditador alemão em uniforme pela mão de um estudante nas ruas de Brooklyn; uma fotografia com crianças bósnias feridas em guerra e uma manifestação de mulheres ostentando retratos das vítimas; e uma série de imagens com a fixação da bandeira norte-americana no topo do Monte Suribachi em Iwojima durante a II Guerra Mundial. Ao longo deste mosaico, Martha Rosler dispõe uma cartografia onde assinala os diversos conflitos armados no planeta.

Dois objetos de pequena escala, separados por trinta anos, comentam as bombas lançadas pelo exército americano em períodos históricos distintos: B52 in Baby’s Tears (1972) e Prototype (Sandbox B2) (2006). As duas caixas de madeira replicam a silhueta de aviões de guerra. Em B52 in Baby’s Tears vemos o contorno de um B-52 (a aviação de bombardeamento mais usada no Vientame com o objetivo de abrir clareiras na floresta) num canteiro de uma planta rasteira conhecida como lágrimas-de-anjo. Em Prototype (Sandbox B-2), entrevemos, numa caixa de areia que parece destinada ao cocó de um gato, o recorte esbatido de um B2 Spirit, utilizado especialmente nas regiões de deserto e no terreno cársico (no Kosovo em 1999, no Afeganistão em 2001 e no Iraque em 2003), podendo penetrar num espaço aéreo fortemente protegido furtando-se ao reconhecimento pelos radares de vigilância convencional, sendo apenas percetível a sombra que projeta em movimento na areia fina.

Nestas obras, Rosler comenta os códigos simbólicos e o véu de eufemismos que recobrem as operações militares (“peacekeeper”, “border gard”, “law enforcement agent”, “refugee counselor”, “crisis manager”, “democracy consultant”, “repatriation facilitator” elencados no cartoonOperation Euphemism” publicado no New York Times em 1999 erecuperado por Rosler) procurando familiarizar a população com o que é da ordem da agressão imperialista e do encobrimento público do terror. A história de sangue, de crimes de guerra e de violência de Estado do século XX — a nossa herança imediata dos nosso governos — passa por aqui.

 

A Invisibilidade

As relações complexas entre as representações dominantes, a iconografia e a invisibilidade (ou a não-inscrição na vida comum) vão além dos conflitos armados e respeitam a condição da mulher na sociedade capitalista.

Em obras como Backyard Economy I e Backyard Economy II (Diane Germaine Mowing) (1974), Martha Rosler regista em Super 8 o quintal das traseiras da vivenda onde mora e reflete sobre a mulher cuidadora, a esposa, a mãe, a dona de casa. No primeiro filme, o plano é ocupado pelo verde da relva e lençóis brancos estendidos numa corda, sacudidos pelo vento enquanto entrevemos o esboço de relações familiares entre figuras furtivas. No segundo filme, a personagem feminina torna-se visível e é nomeada no título, mantendo agora uma relação de maior inteligibilidade com o lugar e as atividades em curso como se o Backyard Economy II respondesse à omissão das tarefas domésticas e do trabalho reprodutivo, no primeiro filme. E em ambos os filmes, Rosler brinca com a noção de “home movie”.

Em contraponto, a série The Rewards of Money (1987/2022) faz compreender a celebração do mercado e do investimento financeiro promovido pela revista Money — a autoproclamada “America Financial Advisor”, influente na década de 80 e entretanto desaparecida —, na comunicação visual agressiva assente nos artigos de luxo, nos casais felizes e nas famílias em vivendas de aparato, na promoção do neoliberalismo junto de uma clientela afortunada. A artista escarnece da representação gongórica dos símbolos de classe e, num tom picaresco, justapõe elementos contraditórios, explorando sempre o recorte e a colagem como jogo semântico entre a superfície, os valores da superficialidade e o golpe da tesoura.

Outra importante série de fotomontagem é Body Beautiful, or Body Knows no Pain (1966–72) onde a mitificação do corpo feminino e os elementos de fetiche a que é associada (o frigorífico repleto de alimentos ou a fruta como metáfora do corpo e do apetite sexual), estabelecem novas cadeias de sentido. À explosão da guerra em House Beautiful: Bringing the War Home (convocando a nudez, os uniformes, as fardas, os camuflados e os vestidos de alta costura e comparando o desfile de moda à parada militar), responde a explosão do corpo feminino em colagens neo-dada em Body Beautiful, apelativas pelo desconcerto e a paródia da hipersexualização da mulher (e a sua objetificação) nos media, na multiplicação de mamas, lábios com baton vermelho, fragmentos de corpos nus sobre modelos em publicidade de lingerie. Os recortes e as apropriações evocam na tactilidade da colagem, o toque dos dedos nas páginas da revista e o palpável, ao mesmo tempo que aludem a amputações, desmembramentos, corpos esquartejados, esclarecendo o elo entre o artifício e a crueldade do espetáculo. E neste excesso dos sentidos, reconhecemos o grotesco e a gula nas composições barrocas de Giuseppe Arcimboldo, a glorificação sensual das faianças e dos víveres nas naturezas mortas dos flamengos, os floreros borbulhantes de pétalas e insetos em Juan de Arellano, o frémito das carnes em Rubens ou a provocação ao recato burguês no surrealismo de René Maggrite. A professora transporta a carga escolar da história da arte.

E no prolongamento desta reflexão, surgem os dois vídeos que sintetizam o manifesto feminista de Martha Rosler, exibidos em paralelo, em contínuo e formando um díptico. Semiotics of the Kitchen (1975), sátira de populares programas televisivos de culinária como o de Julia Child, mostra Rosler com um avental colocado no espaço confinado de uma cozinha, a enunciar uma lista de vinte utensílios por ordem alfabética enquanto interpreta com secura o gesto da sua utilização. A eliminação de líquidos, cremes e mousses que se insinuam ao olhar guloso do espectador neste tipo de programas, dá lugar a uma atividade inútil e aos sons mecânicos e metálicos produzidos pelas ferramentas, enfatizando o carácter industrial da cozinha moderna e a redução da mulher a um signo num sistema de signos. A comida é substituída pela consciência. Mesmo que o filme termine com um encolher de ombros.

No segundo vídeo, Martha Rosler Reads Vogue: Wishing, Dreaming, Winning, Spending (1982), a artista surge a folhear as páginas da icónica revista de moda (novamente o valor da tactilidade, dos dedos que tocam as folhas intactas do papel lustrado), das últimas páginas para as primeiras, do fim para o princípio, numa emissão da Paper Tiger Television, canal público de televisão sedeado em Nova Iorque e protagonista na história da experimentação vídeo (produziu e difundiu, entre outros, o inclassificável Media Burn do coletivo Ant Farm emitido no dia nacional, a 4 de Julho de 1975). Colocando-nos perguntas como “What is Vogue?” e “What is fashion?”, a voz de Rosler responde à cadência da passagem lânguida das páginas: “Vogue is glamour, excitement, romance, dreaming . . . and it is sex”. O texto de Martha Rosler Reads Vogue é uma análise sociológica exata, cortante, hipnótica, uma crítica dos clichés informada historicamente, uma desmontagem dos padrões da misoginia e das qualidades da relação erótica entre a mercadoria, a publicidade e o voyeurismo servido pela Condé Nast à mesa do patriarcado.

Ambos os vídeos de Martha Rosler são acompanhados na exposição pelo texto impresso que podemos ler enquanto assistimos às duas emissões e esta possibilidade confirma a relevância da escrita ensaística em Martha Rosler. Valerá a pena recordar que Rosler fora editora de arte, nos anos 60, de uma pequena revista, a Pogamoggan, dedicada à poesia experimental e manteve a atividade da escrita.

Com isto, e numa perspetiva interseccional, acompanhando o apagamento do trabalho doméstico (fixado em figuras da vida moderna como os fogões, os aspiradores e os eletrodomésticos) e a representação dominante da mulher, outras invisibilidades intoleráveis são apontadas. A artista observa a exploração de mão-de-obra emigrante na agricultura de latifúndio na Califórnia em Flower Fields (Color Field Painting) (1974), colocando problemas éticos e estéticos fundamentais do nosso tempo. Começa por filmar em movimento os vastos campos de cultivo de flores a partir do interior de um automóvel que circula na Interstate Highway 5, a principal autoestrada paralela à costa do Pacífico desde a fronteira mexicana com a Califórnia até ao Canadá; cruza-se com caminhantes, camiões e brigadas de patrulha; depois o automóvel abranda; e quando para, detém-se num zoom gradual sobre planos de cor que comentam, com ironia, os valores da abstração na color field painting de Mark Rothko, Morris Louis, Barnett Newman, Helen Frankenthaler ou Kenneth Noland (e da autonomia da arte), até vislumbrarmos a presença ínfima, frágil, tremeluzente de trabalhadores clandestinos, centenas de emigrantes mexicanos em situação ilegal que as empresas americanas exploram com a anuência dos poderes, o conluio do jornalismo, o desconhecimento da opinião pública e a ganância. Eis a escravatura viva. E o filme termina, com um plano irónico de palmeiras diante do pôr-do-sol no Pacífico.  

 

 

A Cidadania

Nascida em Brooklyn onde ainda hoje vive, Martha Rosler filmou um documentário no seu bairro de Greenpoint, a norte de Williamsburg — Greenpoint: Garden Spot of the World (1993) —, outrora fabril, poluído e habitado maioritariamente pela comunidade polaca e entretanto abandonado na era pós-industrial. Atualmente, Greenpoint assiste a um acelerado processo de gentrificação urbana. The Greenpoint Project (2011) é uma série de breves relatos de vida e de retratos dos pequenos comerciantes de Greenpoint, na maioria de origem imigrante nas suas lojas de escala familiar. As imagens coloridas e o discurso na primeira pessoa (pela conversa nos encontros entre vizinhos) particularizam, personalizam e qualificam estes modestos espaços de comércio de local.

Em Greenpoint New Fronts (2015-), Rosler fotografou, recentemente, as fachadas das lojas que exibem agora a nova cultura gráfica purista correspondente aos investimentos fancy próprios do comércio, dos bens e serviços que a gentrificação impõe, vendo-se as antigas lojas obrigadas a encerrar portas, como em centenas de cidades no mundo, num concertado processo económico de especulação financeira, deslocação de populações e segregação social.

Valerá lembrar que o pensamento de Martha Rosler se funda em Michel Foucault (a vigilância, a biopolítica, o arquivo) como nos modelos da semiologia e da semiótica nos escritos de autores como Roland Barthes, Julia Kristeva e Umberto Eco. Não por acaso, um dos trabalhos paradigmáticos de Martha Rosler (atrás referido) tem por título Semiotics of the Kitchen. Como na semiótica, o trabalho da artista concentra-se na desconstrução dos significantes, na tomada de consciência do hiato entre a denotação e a conotação, na materialidade da composição formal e a sua implicação na categorização de um imaginário coletivo, no seio de um regime ideológico guiado pelos media e confortado pelas estratégias da biopolítica.

A este propósito, a série The Bowery in Two Inadequate Descriptive Systems (1974/1975), composta por 24 painéis, traça um retrato de Bowery, rua de Lower Manhattan, outrora um bairro com dance halls e teatros, tornado num lugar inóspito habitado por pessoas sem-abrigo e desempregados caídos no alcoolismo, consumo de drogas e hotéis baratos. Cada painel é um díptico comparando dois enquadramentos: a imagem de uma fachada urbana sem presença humana e a fotografia de um pequeno texto dactilografado numa folha descrevendo a experiência da embriaguez. A imagem desolada e o texto povoado de termos da gíria e metáforas (“screwed” no lugar de “drunk” e outros jogos de linguagem) descrevem a rua e as pessoas em disforia, onde nem a fotografia nem a palavra podem reconstituir a complexidade das crises. Entre a sugestão da presença humana e o fora de campo, The Bowery in Two Inadequate Descriptive Systems problematiza as políticas de urbanismo, o direito à cidade e a marginalização como parte dos mecanismos da economia assim como o cânone da fotografia documental na tradição americana. E, com eles, interroga o estatuto da imagem e a função da fotografia pós-documental nos equilíbrios da sociedade. Rosler descreveu, a dado momento, a afluência de documentaristas a Bowery com um “local de fotografia de vítimas  em que as vítimas, . . . agora são vítimas da câmara.” E associa certas aproximações documentais da precariedade social ao sensasionalismo da pornografia.

Além dos três eixos que estruturam Martha Rosler. In One Way or Another no SCHIRN, uma área delimitada por paredes pintadas de negro reúne materiais exclusivamente dedicados a manifestações cívicas no espaço público em diversas geografias, nos Estados Unidos, no México e no Chile. As fotografias e os vídeos de Martha Rosler documentam marchas, manifestações e protestos, antigas e recentes, como a Marcha do May Day no Zócalo, na cidade do México, em 1981, com membros dos sindicatos empunhando cartazes, protestando contra a pobreza e lutando por direitos humanos (mas também a confraternizarem e a rirem!). As imagens encarnam o movimento internacional de resistência ao neoliberalismo e à economia de mercado fundada na força militar e na livre circulação de mercadorias (mas não das populações).

Rosler fotografou ainda, em Washington DC, a Marcha sobre o Pentágono pelo Emprego e contra a Guerra em El Salvador em 3 de Maio de 1981, na oposição às guerras não declaradas travadas pelos Estados Unidos na América Central. Os cartazes, as bandeiras e as faixas reclamam ainda por direitos de trabalho, salário digno e igualdade de género em solo americano.

Na vasta colagem e na mise-em-abyme das imagens em contínua remontagem, o gesto de Martha Rosler exercita invariavelmente a distribuição espacial da informação, a recomposição das causalidades e as interconexões entre poder, classe, violência, sexismo, racismo e injustiça social na era da globalização. Assim, a série In the Place of the Public: Airport Series (1983 – ) dedicada a aeroportos de diversas cidades, aquando das deslocações da artista para conferências no mundo, merece particular atenção porque trata politicamente de um espaço de trânsito e conforto, aparentemente neutro e tecnicamente funcional que encobre a vigilância e outras formas de controlo (como as fronteiras nacionais) e de violência simbólica (a omnipresença da publicidade, mas não só) próprias do capitalismo.  

Por último, assinalamos The Restoration of High Culture in Chile (1977), uma obra sarcástica centrada numa viagem que Martha Rosler fez ao México. Rosler relata um episódio, em Tijuana, pouco tempo após o golpe de estado que depôs o governo democraticamente eleito de Salvador Allende a 11 de Setembro de 1973. Os anfitriões da artista, uma família de classe média alta e melómana, congratulavam-se com o regresso da “alta cultura musical” com a reabertura do “melhor sala de concertos do Chile” a que a artista apõe as circunstâncias políticas dessa ocorrência, confrontando-nos com a fotografia inócua de um peixe tropical no aquário de uma sala de estar burguesa e três capas de discos: uma gravação de Johann Sebastian Bach da Deutsche Grammophon, uma gravação de música eletrónica moderna e um álbum do cantor chileno Victor Jara, arauto da “nova canção” socialista e assassinado durante o golpe de estado. Em qual dos campos reside a grande arte do tempo?

Martha Rosler, artista conceptual e pioneira do feminismo crítico, radical e solar, exerceu uma influência determinante na produção artística contemporânea. Apropriando-se de imagens correntes recontexttualizando-as em novas dialéticas, dá-nos a compreender com clareza como a industria automóvel, a moda, a decoração, os produtos cosméticos e o dinheiro moldaram ideais de abundância, sucesso e beleza, irradiaram o absoluto da felicidade sobre a terra e consolidaram sistemas ideológicos carregados de bestialidade. Nada é um acaso. Rosler é uma admirável investigadora das sobrevivências entre o fogão da cozinha e a guerra na televisão. E uma educadora sem compaixão.

 

 

Martha Rosler

Schirn Kunsthalle Frankfurt

 

 

João Sousa Cardoso. Doutorado em Ciências Sociais pela Universidade Paris Descartes [Sorbonne]. Defendeu a tese L’imaginaire de la communauté portugaise en France, à travers les images en mouvement [1967–2007], orientada pelo sociólogo Michel Maffesoli. Integrou o Centre d'Études sur l'Actuel et le Quotidien da Universidade Paris Descartes. Foi bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkian entre 2005 e 2009. Encenou Sequências Narrativas Completas, a partir de Álvaro Lapa, com estreia no Teatro Nacional D. Maria II, em 2019. Dirigiu o TEATRO EXPANDIDO!, no ano de reabertura do Teatro Municipal do Porto, de janeiro a dezembro de 2015, projeto que atravessou a dramaturgia do século XX, levando à cena 11 peças em 12 meses. Publicou os livros Sequências Narrativas Completas [prefácio de António Guerreiro] e A Espanha das Espanhas [prefácio de Jacques Lemière] pela Book Cover, em 2020. Professor na Universidade Lusófona. Escreve regularmente ensaio para o jornal PÚBLICO.

 

 

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Martha Rosler: In one way or another. Vistas da exposição (gerais e detalhes) @ Schirn Kunsthalle Frankfurt 2023. Fotos: Emily Piwowar/Nói Crew. © Cortesia de Schirn Kunsthalle Frankfurt. 

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