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Sara Sadik: Dors petit Dors

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Maria Kruglyak

 

Patente na Kunsthalle Lissabon, a exposição Dors petit dors, de Sara Sadik, é uma meditação hipnótica e empoderadora sobre a superação de uma infância difícil. Esta instalação multimédia como que assume um carácter performativo, dividindo-se entre o mundo virtual de uma instalação de vídeo na qual se assiste passivamente a um walk-through de um jogo de consola e o onírico espaço físico da galeria, pintada em tons de amarelo azul. Com título inspirado na música homónima do rapper francês JUL — uma canção sobre as crianças cujas realidades não se enquadram na imagem de uma "família feliz" —, a montagem da exposição procura espelhar o estado de sonolência que acompanha uma canção de embalar, transportando o espetador para o intervalo entre a realidade física e virtual.

Para albergar Dors petit dors, a galeria transformou-se num mundo de plástico, chegando até a integrar o cheiro a plástico recém-desembrulhado. Este odor, que me recordo de sentir durante a minha infância, mas que raramente encontro hoje em dia, permeia todo o espaço expositivo, isolado do resto do mundo por detrás de uma espessa cortina amarelada transparente — um elemento popular a dada altura no início do milénio. Esta cortina, por sua vez, configura a fronteira de uma sala iluminada em tons de azul onde se encontram quatro ecrãs que reproduzem o vídeo do walk-through, ao qual podemos assistir acompanhados de uma gigantesca minhoca de plástico insuflada que se apropria do espaço de forma quase desproporcional. No mundo do vídeo, evidencia-se o som de plástico a roçar em plástico; a imagem, por sua vez, acompanha uma personagem ciborgue andrógino-feminina com um braço de plástico e outro de metal que vagueia por um deserto de cromática alaranjada. De quando em vez, as dunas de areia cor de laranja, aparentemente infindáveis, são pontuadas por um oásis — momentos em que a sonoridade envolvente se transforma numa melodia serena, e em que a protagonista encontra os velhos brinquedos perdidos da sua infância, naquilo que parece ser o objetivo do jogo. De cada vez que a ciborgue encontra um objeto, o ecrã apresenta um pequeno texto, de que é exemplo o seguinte: "ITEM #1 CARRINHO DE BRINCAR / Lembras-te do primeiro carrinho que tiveste? Sei que o perdeste um dia, mas não te preocupes: ele estará sempre aqui."

Enquanto ferramenta para reviver e re-imaginar as memórias agridoces da infância, o jogo apresenta um futuro no qual as preocupações pueris se resolvem. Tal como os contos de fadas recorrem a ferramentas de storytelling e a terapia usa o discurso para reenquadrar experiências, Dors petit dors utiliza a ferramenta multimédia do storytelling de um jogo de consola para não só reenquadrar experiências traumáticas a partir de um ponto de vista futurista mas também, e simultaneamente, para as partilhar com um público mais alargado. Esta parte é fundamental, já que estes tipos de histórias de infância são frequentemente ocultadas, fetichizadas ou apresentadas como casos perdidos. A ciborgue, assim, transfigura-se numa imagem de força, caminhando com leveza por toda aquela paisagem futurista. Ainda que grande parte desta se constitua de oásis e aridez — o que espelha o verso "não há nada para fazer lá fora", que JUL entoa na faixa "Dors petit dors"; a crise socio-ecológica que vivemos atualmente; e uma memória geográfica surreal do Magrebe —, os movimentos da personagem são deliberados; e, quando a animação, por um breve segundo, revela o seu rosto, nele encontramos um sorriso.

Sadik é conhecida por aquilo que, de forma algo controversa, se costuma rotular de beurcore, uma espécie de afrofuturismo que, nas suas biografias, é definida como "a essência da juventude de ascendência norte-africana que vive na cultura dos subúrbios franceses".[1] Em Dors petit dors, esta problemática está vinculada tematicamente à música da qual retira o título e à paisagem do deserto, mas também à necessidade de criar uma imagem de esperança através da proposta de um futuro empoderado. A imagem da personagem reforça esta questão, podendo inclusivamente ser lida como uma referência ao entendimento de Donna J. Haraway sobre a forma do ciborgue enquanto método de empoderamento sem fronteiras e enquanto ferramenta para articular realidades cuja inter-relação, na sua ausência, sairia prejudicada.[2] Esta exposição, como tal, oferece ao espetador uma memória inquietante de reconciliação que responde à letra de "Dors petit dors" — que, parafraseando, diz o seguinte: vai ficar tudo bem, podes descansar; se tiveres força, as coisas vão-se resolver. No contexto da crise socioeconómica contra a qual hoje se protesta em França, e no quadro da situação cada vez mais desesperante de muitas crianças (e adultos) nas localidades portuguesas que são casa para operários e imigrantes, Dors petit dors, sem recorrer aos clichés de alguma perversidade classista, configura igualmente uma resistência vital a uma realidade que é raramente televisionada.

Em vez de ruminar sobre os infortúnios da vida, tanto a música de JUL como a exposição de Sadik realçam um carácter de força e possibilidade. Na letra da faixa, encontramos: "Dorme, pequenito, dorme […] tens de aguentar e ter força / Alguns de nós viveram sem papá / E estou tão contente por estares aqui […] O papá vai resolver os problemas, a mamã vai levar-te à escola / Dorme, pequenito, dorme, / Hoje o papá vai dormir na sua cela / Vai pôr a tua fotografia na parede para se relembrar do passado." Sublinha-se aqui que o amor ainda existe, que, se tiveres força, as coisas vão melhorar; os problemas vão resolver-se, e o papá ainda tem aquela fotografia de ti na parede, até na cela dele. De forma idêntica, a exposição de Sadik apresenta um mundo ficcional no qual os brinquedos são memórias e os problemas da infância já lá vão. Como se lê no texto da exposição: "Nem todas as canções de embalar são necessariamente doces, assim como nem todos os sonhos são puros e encantados." Para a maior parte de nós, a esperança não está nos contos de fadas nem nas séries de televisão que se produzem para a classe média; antes, encontramo-la na força que é preciso ter para se construírem novos futuros possíveis. Ainda que o futuro desértico da ciborgue não seja ideal para a maior parte das pessoas, é de qualquer forma um cenário reconfortante com o qual nos conseguimos identificar — e, sobretudo, revela-se realista: um espelho surreal do passado, presente e futuro que nos garante que somos capazes de ultrapassar quaisquer que sejam as nossas preocupações.

 

Sara Sadik

Kunsthalle Lissabon

 

Maria Kruglyak é investigadora, crítica e escritora especializada em arte e cultura contemporânea. É editora-chefe e fundadora de Culturala, uma revista de arte e teoria cultural em rede que experimenta uma linguagem direta e accessível para a arte contemporânea. É mestre em História da Arte pela SOAS, Universidade de Londres, onde se focou na arte contemporânea do Leste e Sudeste Asiático. Completou um estágio curatorial e editorial no MAAT em 2022. Atualmente trabalha como redatora freelancer de arte.

 

Tradução EN—PT: Diogo Montenegro.

 




Sara Sadik: Dors petit Dors. Vistas da exposição na Kunsthalle Lissabon, Lisboa, 2023. Fotos: Bruno Lopes. Cortesia da artista e Kunsthalle Lissabon. 

 


Notas:

 

[1] "Artists in Residence: Sara Sadik," TRI-ANGLE FRANCE. As raízes de Sadik, que cresceu na diáspora magrebina de Marselha, enformam os alicerces do seu trabalho no âmbito do beurcore. A artista descreve a sua incursão pelo beurcore e pelo mundo da arte da seguinte forma: "Lembro-me que procurei «arte contemporânea banlieue» no Google. Queria saber se existia alguma coisa. Encontrei a obra do Mohamed Bourouissa, e pensei: "Porra, existe mesmo!" Podia ter sido o meu pai a aparecer naquelas fotografias — não o meu pai em Marrocos com uma vestimenta tradicional, mas o meu pai no meu próprio bairro. Nesse momento, senti um clique em mim. Foi aí que percebi que era possível fazer arte a contar a minha própria história sem ter de inventar uma vida nova. Comecei a produzir tanto: trabalhava todo o dia, a escrever e a filmar vídeos. Ver o trabalho do Bourouissa fez-me perceber: «OK, é legítimo eu fazer arte.»" Citado de Ben Broome, "Show Them, Tell Them, Don’t Explain. A Conversation with Sara Sadik," Flash Art, 28 June 2023.

 

[2] Donna J. Haraway, A Cyborg Manifesto (1985).

 

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