1 / 32

Carla Filipe: In my own language I am independente

CFS_17.jpg
Catarina Rosendo

 

Carla Filipe é autora de uma obra sobrecarregada de signos e apelativa ao olhar, que funde palavras e grafismos e se apresenta em instalações feitas com artefactos das mais diversas proveniências, impressões serigráficas e offset, panos estampados e cosidos, pendões e bandeiras, cartazes e folhetos, desenhos, recortes e colagens, livros de artista, cadernos de apontamentos visuais e escritos, vestidos emoldurados e vegetais comestíveis dentro de pneus e bidões compondo uma horta. A memória, a identidade e a representação são os grandes eixos que norteiam a sua análise crítica das transformações políticas, económicas, sociais e culturais do Portugal contemporâneo, mediante ferramentas oriundas da antropologia e da sociologia, como o trabalho de campo, a observação e recolha de relatos e documentos. Através de um pensamento de tipo activista e sem limites espaciais ou temporais, Carla Filipe desenvolve processos de descontextualização e ressignificação das mais variadas representações sociais, desde as lutas operárias aos direitos dos trabalhadores (os dos artistas incluídos), passando pela organização do território e a cultura popular, filtrando-as pelas suas vivências e experiências pessoais. A Contemporânea falou com a artista a propósito da sua mais recente exposição individual, In my own language I am independente, com curadoria de Marta Moreira de Almeida, patente na Fundação de Serralves. Reunindo obras realizadas ao longo dos últimos 20 anos, a exposição ocupa parte do museu, a galeria superior da biblioteca e o terraço do restaurante.

 

Catarina Rosendo (CR): Quando se entra nesta exposição, a primeira percepção é a de uma aparente saturação do espaço. Há muito para ver: paredes cheias, coisas suspensas do tecto, outras pousadas no chão. Há como que um excesso de informação que assenta em duas coisas: no desenho e na linguagem, ou na palavra escrita. Não é possível ver a exposição sem também a ler, pelo menos parcialmente. Como trabalhas, ou preparas, as obras para as expor, como as organizas no espaço da exposição?

 

Carla Filipe (CF): O método é conhecer bem o espaço. Visito várias vezes as salas, procuro entender como cada artista ocupou o espaço antes de mim, compreender o espaço em relação aos objectos, perceber o quanto ele estica ou encolhe consoante as exposições. Em Serralves, tinha uma memória antiga, já com uns vinte anos, de uma grande obra da Lygia Pape. Era um alfabeto que ocupava a parede frontal da primeira sala onde está agora a minha exposição. Essa obra marcou-me, tornava o espaço monumental mas também o aproximava de nós. Antes de expor em Serralves, tinha exposto no Centro de Artes Arquipélago, e a dimensão do espaço é semelhante. Só que, em Serralves, o pé direito é mais alto e percebi que tinha de subir com as obras pelas paredes, por uma questão de escala.

 

CR: Elevando também a linha do olhar?

 

CF: Sim. Pensei também numa lógica expositiva à século XIX. E hoje as pessoas têm telemóvel, fazem zoom com facilidade e vêem muitas obras através do telemóvel, mesmo ao vivo. Pensei numa sala gráfica, com muitos grafismos: as telas, as bandeiras, o papel de parede, tudo plano. As bandeiras são altas, mas a parte de içar a bandeira e prender ao pneu é à escala humana. O espaço é monumental mas as almofadas espalhadas no chão humanizam-no. Tudo isso prepara o público para as salas do fundo, mais pequenas. Não pensei o trajecto expositivo a partir de uma ordem cronológica, porque a memória é flutuante e normalmente é arquivada na nossa mente e é despertada uma nova imagem. Pensei na exposição mais através de questões formais que, apesar das proximidades temáticas, são sobretudo estéticas e implicam uma organização visual que favorece as relações de escala. E quis devolver a arquitectura do Siza Vieira ao museu, retirando paredes que não são as originais.

 

CR: Essa organização implica uma passagem da espacialidade mais dinâmica e imponente das primeiras salas para uma concentração mais íntima e mais dirigida aos objectos mais pequenos que estão nas paredes e nas mesas das salas seguintes. Isso sugere uma distribuição das obras que é contrária à aparente dispersão que elas em si mesmo mostram: a sobreposição das imagens, o uso de imagens de outras proveniências, a quantidade de texto... Trabalhas sempre o desenho em articulação com as palavras. Como é que relacionas estas duas linguagens, ou estas duas formas de expressão?

 

CF: Percebi que o meu trabalho é muito gráfico porque a minha percepção do mundo foi construída através de paginações, dos livros de história da arte e das enciclopédias. Aí, podemos ter uma pintura do século XVIII ao lado de uma fotografia de guerra, e a organização é muito plana, com palavras, grafismo, composição. Texto e imagem têm ambos o mesmo carácter enunciativo, quer dizer, a imagem transmite uma narrativa ao mesmo tempo que a narrativa transmite uma imagem. Uma das obras expostas é o livro As primas da Bulgária, em que temos a imagem e depois para perceber o texto viramos a folha, mas também o contrário, temos o texto e depois viramos para ver a imagem. São ambos antagónicos, mas completam-se um ao outro.

 

CR: Como fazes, começas por desenhar ou escrever? Ou ambas ao mesmo tempo?

 

CF: Eu acho que começo por desenhar. Acho. Até porque a palavra também é desenhada.

 

CR: O teu desenho tem um registo próximo do amador, ligado à cultura juvenil e aos fanzines punk, e tem uma lógica comunicativa que consegue chegar a um grande número de pessoas.

 

CF: Sim, não é uma arte auto-referencial.

 

CR: Em que sentido?

 

CF: Não se refere a si mesma, não é necessário conhecer a história da arte. A pessoa pode ter uma empatia pelos temas sem ter a obrigatoriedade de perceber o que é a arte. Claro que o meu trabalho está cheio de referências e só algumas pessoas podem apreendê-las, mas ele convive também com o público que não as tem e que pode depois ir procurá-las. Algumas delas eu mesma já as esqueci, passaram pela minha mão direita mas já não tenho memória delas.

 

CR: Qualquer pessoa pode entrar na tua exposição e abandonar-se ao emaranhado de referências, de histórias e de citações que tu fazes, porque reconhecem e talvez se identifiquem com muitas coisas que fazem parte das sociedades actuais e da história colectiva.

 

CF: Sim. Mas quando estou a fazer o meu trabalho não estou a pensar em alcançar este ou aquele público. Posso estar a comunicar com alguém, mas é um processo muito mental e abstracto, não estou a pensar no público especificamente. Por acaso, esta exposição tem abrangido um público que não tem o hábito de visitar o museu de Serralves.

 

CR: Porque é que isso acontece?

 

CF: Não sei, isso está no campo de estudos estatísticos. A arte não pretende alcançar públicos, as instituições sim. Mas se o meu trabalho parte de coisas a que sou sensível, certamente que muita gente é sensível a elas também.

 

 

 

CR: Como articulas as tuas memórias e a tua biografia com as situações sociais, culturais e políticas mais abrangentes? Por exemplo, o mapeamento que fizeste da efervescência artística na cidade do Porto no início do século, desvinculada das lógicas institucionais e mais ligada à música electrónica e à cena nocturna. Pensaste no potencial que isso teria para sedimentar uma história colectiva?

 

CF: Nesse contexto, sim, mas com alguns receios. Porque a noite é diferente do dia, a noção de responsabilidade é diferente. Nessa fase estava afastada da cidade onde vivo e trabalho e quis conhecê-la melhor. Percebi que existiam muitas pessoas formadas nas Belas-Artes que actuavam no campo da música electrónica e achava que era necessário refrescar a imagem dos cartazes nocturnos, criar uma linguagem mais próxima das ligações tradicionais entre arte e música. Foi também o momento de usar referências minhas, o meu interesse por artistas que estão num limbo entre a música e a arte. Qualquer capa dos Sonic Youth é feita por um artista: o Mike Kelley, o Richard Prince, o Raymond Pettibon... Comecei a criar um tipo de linguagem reconhecível sem obedecer às regras informativas de um cartaz. Hoje existe mais essa ideia de um cartaz de autor, mas na altura não havia muito, havia coisas pontuais como os cartazes da Dayana Lucas para o Colectivo Soopa, ou os Von Calhau!, que faziam os cartazes para os seus concertos. Tentei também compreender porque é que a maior parte dessa geração formada em Belas-Artes, que era de uma geração posterior à minha, estava a virar-se para a música e para os espaços nocturnos. Não consegui obter uma resposta, apesar de achar que talvez passasse por uma situação circunstancial (a música era uma forma viável de resolver o problema da falta de um estúdio) ou pelos professores das Belas-Artes que também estavam ligados à música.

 

CR: Também recorres às tuas memórias familiares. Vens de uma família de ferroviários e tens a infância marcada pela presença dos caminhos de ferro. Tens trabalhado questões ligadas aos movimentos operários, às lutas sindicais e ao período revolucionário, durante a Primeira República, o Estado Novo e o pós-25 de Abril. O que te leva a procurar e misturar essas referências todas?

 

CF: Cresci em Vila Nova da Barquinha, perto da base aérea de Tancos. O contexto social era na altura muito politizado e isso fez-me tentar perceber melhor, mais tarde, toda a dinâmica do PREC. Havia imagens políticas por todo o lado, desde cartazes, murais e autocolantes. A rua era o placo para todas as imagens gráficas e frases de mudança, e havia um optimismo cheio de contradições. A imagem da Maria de Lourdes Pintassilgo foi muito forte para mim: a candidata a primeira ministra tinha rosto de mulher. Foi a única mulher até hoje a desempenhar esse cargo em Portugal e foi a segunda na Europa. A questão familiar é apenas um detalhe no meu interesse pelos caminhos de ferro, que abrangem vários tópicos: os processos de privatização, as hierarquias de classe, a mulher no trabalho, ou a habitação social e suas infra-estruturas, desde os centros de saúde às colónias de férias.

O governo Passos Coelho revogou uma lei que era ainda do Estado Novo e que conferia passe gratuito às mulheres solteiras. Embora seja uma lei antiquada, ela marcou a minha decisão de ser uma mulher livre e nunca me casar, por isso emancipou-me enquanto mulher. Perder esse direito na altura da “troika” foi como perder a ligação a uma comunidade, mesmo que eu já não estivesse próxima dos ferroviários. Percebi nessa altura o que é não ter ligação a nenhuma identidade, um pouco como fala o [Zygmunt] Bauman a propósito da modernidade líquida. E decidi aceitar esse desafio, experimentar trabalhar sem referências. Foi quando comecei a fazer peças mais abstractas. Agora já tenho o passe outra vez, a “geringonça” reverteu a situação.

 

CR: Então recuperaste um pouco da tua identidade.

 

CF: Sim. Esses pormenores autobiográficos interferem no processo de trabalho. Já me sinto ligada novamente, já posso voltar ao estudo dos caminhos de ferro. Os ferroviários sempre foram muito fortes nas greves, ainda hoje vão resistindo à desfragmentação das empresas através das privatizações que destroem a organização dos trabalhadores em sindicatos. Tudo isso me interessa, porque trata-se das necessidades básicas das pessoas, da conquista de direitos.

 

CR: As necessidades básicas estão presentes em Ordem de assalto, que ocupa o corredor todo com bens alimentares pendurados. Ela parte do contexto da “troika” e do esforço financeiro exigido à população portuguesa.

 

CF: Sim. Tem que ver com uma história que eu ouvia em pequena, em que durante a Primeira República as pessoas podiam ir num horário determinado à mercearia buscar alimentos, e o dono apenas pedia alguma contenção, que não levassem tudo. Chamava-se “ordem de assalto”. Mas se fossem apanhadas na rua com esses alimentos, isso era considerado furto. Já procurei documentação sobre o assunto e não encontrei nada, mas achei a história curiosa e quando, durante a “troika”, recebi o convite dos artistas Stephan Dillemuth e Florian Huttner para participar na exposição Redundancy, em Bad Tolz, na Alemanha, levei uma mala cheia de alimentos e fiz essa peça, que na altura era mais pequena. Ela ganhou uma dimensão maior quando mais tarde a Ana Cristina Cachola me convidou para a reapresentar na Galeria da Boavista em Lisboa, e depois ainda ficou maior no Museu de Arte Contemporânea de Elvas. Esta peça tem algumas condições: a rede de pesca não pode ser industrial, se tiver remendos feitos à mão, melhor; a escolha dos alimentos também é cuidada, são produtos regionais, alguns de produção local; há ainda os típicos saquinhos de papel pardo da venda dos alimentos a peso. A cor, o cheiro, a forma, o equilíbrio e composição são elementos importantes nesta instalação. É uma instalação sazonal, dado que alguns produtos só existem numa época do ano e há toda uma logística na pré-preparação desta obra, que tem uma regueifa que já vem de 2021. Não sei muito bem como conservar esta peça futuramente. Desde 2020, tenho vindo a construir um dossier com observações, dúvidas, opções de produtos de substituição, medidas, etc.

 

CR: Não podes repor os alimentos perecíveis por outros iguais?

 

CF: Alguns já não encontro. Os cristais de açúcar, por exemplo, são vendidos uma vez por ano para a produção do vinho branco e onde eu os encontrava deixaram de comercializá-los porque não tinham muita saída. Ou os rebuçados de amendoim: encontrei os últimos dentro de uma gaveta numa loja.

 

 


 

CR. Vejo na tua obra Amanhã não há arte um paralelo entre o teu interesse pela luta dos trabalhadores e a condição social do artista e o seu estatuto profissional, ou o contexto institucional em que a arte é produzida e mostrada. Gostava que falasses um pouco sobre isso, mas antes queria perguntar-te se, dentro daquilo que tu consideras que é ser artista, incluis também o ser trabalhador?

 

CF: Claro que sim. Ainda existe uma ideia romantizada e boémia do que é ser artista. No meu caso e de tantos colegas, trabalho muito e estou sempre a desejar pelo dia em que seja só artista.

 

E: E isso seria o quê?

 

CF: Estar só a trabalhar em estúdio, na investigação, etc. Mas ocupamos muito do nosso tempo a fazer produção, a responder aos inúmeros e-mails diários... Mesmo que se tenha um assistente, pode levar anos até a pessoa ser autónoma e poder tomar certas decisões. Por exemplo, fiz uma pesquisa muito grande para encontrar a fábrica certa para fazer as bandeiras de Amanhã não há arte. As próprias almofadas dessa obra exigiram muito trabalho para ficarem bem feitas e com qualidade. Acabo por me envolver bastante na produção, na logística, e às vezes a percentagem de trabalho em estúdio é muito menor. Além disso, as tarefas de produção, os processos de criação e as montagens das exposições exigem rotinas temporais muito distintas, implicam estados de espírito muito diferentes. Portanto, sou trabalhadora e artista e artista trabalhadora.

 

CR: Amanhã não há arte tem implícita questões de direitos de autor e a constatação que sem artistas não há arte.

 

CF: Precisamente. Mas não de forma directa. A instalação faz com que o espectador ganhe uma consciência gradual dessas questões, pode ler o que está escrito nas bandeiras ou ler o jornal informativo da exposição, que é distribuído gratuitamente. Ou pode deitar-se a dormir sobre as almofadas que contêm inscrições relacionadas com direitos de autor.

 

CR: Isso não é uma maneira irónica e crítica de abordar os direitos de autor?

 

CF: É. O meu trabalho, mais do que ser directo, procura despertar a consciência. Está lá tudo, se as pessoas não conseguem ver mais, é porque não querem. Percebi que nós, os artistas, nos interessamos por várias questões sociopolíticas e nos esquecemos de nós próprios. Esse trabalho correspondeu a olharmos para nós como “trabalhadores” com direitos. Se uma artista fala de direitos parece que já não está a ser artista. Existem muitas ideias pré-concebidas, convenções que devem ser quebradas. No geral, o sistema jurídico não tem ainda muita preparação para lidar com os direitos de autor das áreas artísticas. O próprio artista tem medo de reclamar para si essas questões básicas.

 

CR: Nos desenhos Bordas de alguidar, pegas na tradição satírica portuguesa ligada ao Rafael Bordalo Pinheiro e à viragem do século XIX para o XX e trazes toda essa derrisão política para o momento presente. É mais uma das formas com que misturas contextos históricos diversos e os combinas com as memórias colectivas actuais.

 

CF: Sim, contrariando a amnésia colectiva. No caso do Bordalo, foi um daqueles dias logo a seguir ao fim de ano, em que ninguém anda na rua. Entrei na Moreira da Costa, um alfarrabista do Porto. Fui à cave e havia lá estes jornais, “A Paródia”, “A Lanterna Mágica” e “Os Pontos nos iii”, anteriores à Primeira República, com preços muito baixo. Quando vi aquele tesouro, comprei tudo o que podia. Quis salientar esta parte do trabalho do Rafael Bordalo Pinheiro, já que só se fala das loiças e ninguém fala do trabalho político. Decidi fazer sátira política que incluísse recortes dos seus jornais. Caso contrário não me lembraria de fazer sátira política.

 

CR: E como foi fazer essa sátira política?

 

CF: É um exercício de subversão. Enquanto cidadãos, somos tão provocados pelos políticos que a catarse é provocar de volta, em protesto pela insatisfação. Às vezes a política tem casos tão insólitos que já parecem sátira política. Uma pessoa fica um bocado enjoada a fazer sátira política. Tem um lado mundano que se fica com náuseas.

 

CR: Podem ser mundanas, mas afectam directamente as vidas das pessoas.

 

CF: Sim. Daí ficar enjoada. Não é fácil fazer sátira política, há algum perigo nisso.

 

CR: Porquê?

 

CF: Porque uma pessoa muda. O humor vai mudando e nós também começamos a ter outra consciência. Há coisas que já não acho graça, nem sei se na altura achava, mas eram expressões e ideias que andavam no ar.

 

CR: No teu trabalho também abordas o papel na cultura portuguesa de várias mulheres emancipadas.

 

CF: Ando a tentar fazer uma espécie de enciclopédia das mulheres feministas portuguesas. Só conhecemos as Três Marias e, mesmo assim, conhecemos mal. Quando descobri a Maria Lamas e os livros dela, não queria acreditar. Em As mulheres do meu país, ela fotografa as mulheres do Portugal profundo para contrariar a imagem que Salazar construiu da dona de casa perfeita. Descobriu mulheres bichos, mulheres com trabalhos de homem, que não tinham consciência da sua situação, estavam desgastadas mas contribuíam para a economia do país. Há outro livro, A mulher no mundo, em que ela estuda a sexualidade feminina desde a pré-história, analisa o modo como na actualidade o homem vê a mulher, como a mulher deseja ser vista pelo homem.

Existem tantas activistas em Portugal que é possível criar uma história do feminismo, mas nada disso é estudado nas escolas. Vai-se sempre buscar as referências aos Estados Unidos e nós continuamos com um feminismo apagado.

Se calhar faz parte da nossa identidade o apagarmos sempre, parece que não queremos olhar para nós.

 

CR: As últimas salas da direita mostram trabalhos e livros de artista que se reportam às tuas vivências nos anos 1980 em torno da cultura pop. Antes de mais, como surgiu o teu interesse pelas edições de artista?

 

CF: São obras de arte acessíveis que podemos ter no colo e ter uma experiência próxima da que temos com os objectos quotidianos. Quando comecei a fazer livros de artista e os expunha, as pessoas podiam mexer neles. Depois isso deixou de ser possível, porque são exemplares únicos e estragam-se... Têm de ficar em vitrines. Então comecei a fazer livros de artista com uma tiragem de 200 exemplares. Fiz o primeiro em 2009, numa residência artística em Londres. E os valores de venda são sempre acessíveis, não faço as contas aos custos de produção, até porque normalmente já tive apoio para os fazer, portanto estão pagos. Às vezes dizem-me que são baratos demais, mas é mesmo dentro dessa política democrática de valores que eu trabalho.

Nesta exposição resolvi mostrar, na galeria da Biblioteca, o processo que está por detrás da feitura de um livro de artista, porque as pessoas ainda compreendem mal o que isso é, não percebem que é uma obra do artista em forma de livro. Eu faço-os sempre de forma convencional, de livro-livro, criando relações entre texto e imagem, não faço livros-objectos. Sempre gostei muito de livros, talvez porque era o que tinha mais próximo da cultura: ir à biblioteca, ter um livro. Não havia museus ao lado de casa. A cultura era o livro e a televisão.

 

CR: Voltando à cultura pop que marca as tuas vivências dos anos 1980 e que está presente nas salas do fundo desta exposição, qualquer pessoa que cresceu naquela época se reconhece nos recortes das revistas de música e no desenhar os seus ídolos, não é?

 

CF: Nós queríamos ser modernos e ter roupas cool, que não fossem feitas na costureira, mas compradas no pronto-a-vestir com um ar “internacional”. Naquela altura entrámos na Comunidade Europeia, havia uma vontade de sermos mais contemporâneos.

 

CR: Isso tinha que ver com a aquisição de gostos novos e de consumos culturais diferentes?

 

CF: Também, mas nem sempre. Eu desenhava o [Jon] Bon Jovi porque não tinha outras referências. É a construção de um gosto... Mas estávamos a sair do fascismo e havia uma nova geração que queria abrir fronteiras. Havia uma televisão pública e gratuita que formava o gosto e programas de videoclips que representavam uma riqueza visual muito interessante para quem estava, como eu, a absorver imagens em movimento. Lembro-me dos videoclips do David Bowie, da androginia do Boy George, da irreverência da Cindy Lauper, da Grace Jones, da Nina Hagen, da Siouxsie and The Banshees, ou o tema da realidade social em “Smalltown boy” dos Bronski Beat. Lembro-me do videoclip de Sledghammer do Peter Gabriel, que tinha um comboio a girar em torno da sua cabeça.

 

CR: Há nessas memórias uma espécie de partilha de afinidades que passa por uma ideia de comunidade. Não se passa o mesmo com os trabalhos que fazes em torno das hortas?

 

CF: Durante as montagens das exposições onde incluo hortas, há de facto uma partilha, sim. Gosto muito de trabalhar nas minhas hortas, nessas alturas, sinto que deveria estar noutro contexto, mas não sei muito bem qual. Ao trabalhar em conjunto a terra, as pessoas convivem de uma forma muito saudável. Aparecem vários assuntos, pode-se falar sobre o cultivo, por exemplo, e não se fala da vida alheia, o que é muito bom. Aqui em Serralves a horta levou dois dias e meio a ser feita, o que é curto, mas a que fiz no Brasil, em 2016, levou dois meses e meio a ficar pronta, e isso foi excelente, havia tempo para observar as plantas, aprender novas formas de trabalhar em equipa. A seguir, a equipa que me ajudou na montagem ia lá cuidar dela regularmente e, no fim, houve várias pessoas que foram buscar as plantas. No Brasil estimam muito as PANC, as Plantas Alimentícias Não Convencionais.

 

CR: Porque motivo tens trabalhado em contexto museológico a ideia de uma horta de plantas alimentícias não convencionais?

 

CF: Eu tinha fotografado muito hortas nos bairros abandonados da CP, onde as pessoas já não viviam mas continuavam a ocupar os terrenos vagos para plantar.

 

CR: Por uma questão de subsistência?

 

CF: Sim, mas não só. Essas pessoas hoje até podem viver numa casa melhor, mas a horta traz-lhes uma ligação à terra. São elas que cuidam dos alimentos, sabem que são melhores. É subsistência, mas é também prazer, relaxamento. Então, em 2006, achei que era mais interessante fazer uma horta do que estar a expor as fotografias de outras hortas, que eu fazia desde 2004. Questionei-me porque é que havia, naquela altura, tanta área arrelvada e tão poucas hortas comunitárias, porque é que havia tantos terrenos vagos em vez de aí se plantarem alimentos.  

Em 2016, o Jochen Volz convidou-me para fazer uma horta para a Bienal de São Paulo. Nessa altura o conceito de horta tinha evoluído, já havia hortas comunitárias. Resolvi trabalhar produtos que eu desconhecia e que podem ser comestíveis, plantas que por vezes crescem na paisagem mas que não sabemos que nos podem alimentar também. Foi no Brasil que ouvi falar das PANC, plantas espontâneas que são recurso alimentar em períodos de fome e de guerra, mas deixadas de lado em momentos de maior abundância. Hoje estão-se a introduzir essas plantas na alimentação de forma mais consciente, contrariando os produtos alimentares convencionais. Há que saber reconhecer as plantas. As urtigas, por exemplo, as pessoas podem apanhá-las na rua, mas têm medo e não o fazem. No entanto, se houver urtigas à venda no supermercado, já compram. As pessoas aceitam mais espontaneamente um produto que venha com um rótulo.

 

Carla Filipe

Serralves

 

Catarina Rosendo [Lisboa, 1972] Historiadora da arte. Investigadora Integrada do Instituto de História da Arte [FCSH-UNL]. Desenvolveu, entre 2014 e 2017, investigação curatorial para a Colecção do Museu de Arte Contemporânea da Fundação de Serralves. Integrou, entre 1995-2006, o Serviço de Exposições da Casa da Cerca — Centro de Arte Contemporânea [Almada]. Co-autora do filme sobre o escultor Alberto Carneiro, Dificilmente o que habita perto da origem abandona o lugar [2008]. Autora de livros e catálogos de exposição e de ensaios para catálogos de exposição, actas de congressos e imprensa. Prémio [ex aequo] da Academia Nacional de Belas-Artes, 2008, com o livro Alberto Carneiro, os primeiros anos, 1963-1975 [2007]. Actualmente, lecciona no Mestrado em Estudos Curatoriais no Colégio das Artes — Universidade de Coimbra.

 

A autora não segue o novo acordo ortográfico. 

 

 



Carla Filipe: In my own language I am independente. Vistas gerais da exposição no Museu de Arte Contemporânea de Serralves. Fotos: Filipe Braga. Cortesia da artista e Museu de Arte Contemporânea de Serralves. 

Voltar ao topo