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Ana Santos: Colecção Primavera-Verão

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Sérgio Fazenda Rodrigues

 

A exposição de Ana Santos na Culturgest, em Lisboa, apresenta-nos uma selecção de obras produzidas entre 2015 e 2023, e surge sem pretensão retrospectiva, e sem o propósito de mostrar, apenas, a sua produção mais recente. De forma irónica, adopta-se o nome Colecção Primavera–Verão, mas cruzam-se fases distintas que, numa escolha atenta, convidam a perscrutar o modo como a artista pensa, concebe e apresenta o seu trabalho.

Ocupando as salas do piso de cima e optando por manter o local aberto, Ana Santos deixa que as obras povoem o espaço, gerindo relações de proximidade e afastamento que nascem da sua natureza e do seu criterioso posicionamento.

Ao entrarmos na antecâmara da exposição, a primeira referência é-nos dada por um papel de parede, onde uma imagem digital ficciona uma queda de água. De modo desconcertante, a figura trava o acesso, mas revela o que pode circular no interior das tubagens que mais à frente encontramos, indicando-nos, assim, que a simplicidade das obras e da exposição é apenas aparente, ou ilusória. De igual modo, se ao início somos acolhidos por uma superfície que pede um olhar frontal, ao longo da exposição descrevemos movimentos que circundam as esculturas. E estas, articulam-se num curioso diálogo entre a afirmação e a gravidade que considera, ainda, a natureza de cada compartimento, a simetria das salas e o corredor que as une.

A obra que abre a primeira sala surge como um biombo que divide a atenção, para cá e para lá de uma intensa superfície roxa, balançando o olhar entre o objecto e o espaço que ele delimita. As restantes obras demarcam um lugar interior que instiga uma conversa entre aquilo que contém e aquilo que é contido. Porém, centrando a atenção na superfície, ou na fronteira que se circunscreve, aprofundam o que se revela e o que se esconde, o que se assume e o que se sugestiona, de um modo assertivo, defensivo e, por vezes, sedutor.

No centro da sala, demarca-se um grupo de obras verticais que engendram fixações e acolhem segredos. Imprevisivelmente, buscando um carácter totémico que catalisa o olhar, a altura diminui à medida que a sala progride e o interior se desvela. Em redor deste grupo, um conjunto de outras peças de menor dimensão, concebidas com antigas panelas e tubos de escape, reforçam a ideia de receptáculo e equilibram o conjunto.

Numa pequena sala anexa, entre a deposição no solo e a fixação à parede, quatro esculturas especulam, ainda, sobre a percepção da matéria. A legibilidade da carga, da forma e do material é também aqui indagada, destacando-se uma obra (Sem título, 2023) em acrílico fosco, amarelo, que esbate as arestas e a cor do seu corpo maciço, apontando novos caminhos no desenvolvimento do trabalho da artista.

Curiosamente, dir-se-ia que todas estas obras respiram processos de encenação que, de modo mais contido, ou de forma mais exuberante, repensam a comunicação e a permanência do objecto.

Quando se atravessa o corredor que liga as salas principais, as obras ganham peso e são expostas junto ao chão. Duas pequenas esculturas de cobre afundam o olhar e, ao fundo, uma escultura composta por uma linha de tecido e dois planos em deslocação, resgata a visão e assume-se como excepção (sendo a única que detém movimento próprio). Numa posição isolada, já fora do corredor, esta peça estimula a expressão cinematográfica do percurso que lhe dá acesso e gere a expectativa do seu encontro.

Aparentemente alheia à teatralidade das esculturas que ocupam a primeira sala, que se escudam e insinuam ao olhar, esta é uma obra que cativa a atenção pela forma inesperada de agir. Simultaneamente, singela e complexa, a obra é composta por três elementos de tecido que se deslocam por via de um pequeno motor. Se por um lado ela se despe para dar corpo à sua essência de fluxo, ou movimento (como a água ou o fumo que percorreram os tubos das restantes obras), por outro ela coreografa um movimento e desenha o modo de se dar a ver; remetendo-se de volta à esfera da encenação.

Adoptando uma estratégia idêntica à do início da exposição, a segunda sala apresenta um outro grupo de peças verticais que datam de um período anterior (2018-2020). Concebendo um diálogo que reforça a relação entre a parte e o todo, as três maiores esculturas ganham aqui uma nova leitura. A proximidade da sua altura, a utilização recorrente do aço inox e a divisão da tubagem em vários elementos idênticos, problematizam a ideia de repetição. Reforçando uma lógica de contrastes, a cor surge em longos fios de poliéster, replicando agora o desenho da tubagem, e nas superfícies de PVC que, igualmente lacadas, se soltam da composição. Dir-se-ia que, nestas três peças, podemos antever o caminho que levou a artista às soluções apresentadas na primeira sala. Refira-se, ainda, que a leitura do conjunto induz um sentido musical, entrevisto nas variações que estas peças sugerem.

Tal como na primeira sala, um conjunto de obras de menor dimensão ocupa as paredes circundantes, explorando a condição de receptáculo. Desse grupo destaca-se a escultura Daniel (2020) que continua a enfatizar uma dimensão táctil, aqui contradita pela aparência, peso e rigidez que o objecto adquire.

A exposição termina com uma obra de 2015, relacionada com a figura da cascata que marca a entrada. Neste caso, falamos de uma escultura fixa à parede, composta por um conjunto de velhas e negras caixas metálicas, ao qual se apõe uma série de fios limpos de poliéster colorido (cobrindo-as como uma cortina espaçada).

A escultura reflecte a pesquisa de conexões dicotómicas, tidas entre materiais, cores e espaços, que cedo marca o trabalho da artista, contudo, a relação com os elementos, ou a abordagem aos objectos apropriados, mostra-se vincadamente distinta. Se nessa altura podíamos falar na referência afastada de Duchamp, hoje dir-se-ia que aquilo que Ana Santos recolhe é limpo das marcas de uma existência prévia. Isto é, se antes a artista trabalhava com objetos que retinham uma função, ainda que obsoleta, um uso, ainda que ausente, e uma história, ainda que parada, arrogando-se da sujidade e das deformações que lhe eram inerentes (veja-se alguns dos trabalhos de 2011 a 2017), agora, ao manipular criteriosamente os elementos que elege, talvez já não se possa falar do lastro de um corpo resgatado, mas sim da permanência de uma substância fantasmática. Algo que se transforma numa outra entidade, que nos deixa apenas vislumbrar a memória da sua proveniência.

O que retemos é marcado por um sofisticado jogo de subtis concordâncias e inesperadas contrariedades onde, a título de exemplo, se apaga a mão (a manufatura), mas se incita o tacto (intuído no confronto entre a rigidez e a ductilidade do material). Repare-se, também, como se glorifica a fixação, que é por vezes entendida como adorno, e se abstratiza o encaixe, ou como se engendram circuitos e se criam receptáculos.

O inesperado que aqui encontramos, entre o divertido e o desconcertante, resulta da curiosidade e da inconformidade da artista, que pretendeu arriscar novas experiências. Experiências que repensam a matéria e o espaço, e que se desenvolvem a nível plástico e construtivo, num âmbito formal e conceptual.

Na inquietude desse processo, pressente-se a tensão que Ana Santos deliberadamente explora e que anima cada uma das obras. Dir-se-ia, uma vez mais, que entre o jogo da convocação e do afastamento, garantido pelo hábil manuseamento das peças, a atenção foca-se numa simplicidade aparente, que, a seu tempo, se revela complexa, imbricada, intrigante e cativante.

 

Ana Santos

Culturgest

 

Sérgio Fazenda Rodrigues é Arquitecto e Mestre em Arquitectura (Construção), foi doutorando em Belas Artes e é doutorando em Arquitectura, onde investiga as relações espaciais entre Arquitectura e Museologia. Faz curadoria de arquitectura e artes visuais e integrou a direcção da secção portuguesa A.I.C.A. Desenvolveu, com João Silvério e Nuno Sousa Vieira, o projecto editorial Palenque. Foi consultor cultural do Governo Regional dos Açores, tendo a seu cargo, nesse período, a construção da colecção de arte contemporânea do Arquipélago: C.A.C. É

fundador, director e curador de Kindred Spirit Projects.

 

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.

 

AJS202305-CG3-A02 (9250) [A] Ana Santos, [L] Culturgest [Full HD]
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Ana Santos: Colecção Primavera-Verão. Vistas da exposição na Culturgest, Lisboa, 2023. Fotos: António Jorge Silva. Cortesia da artista e Culturgest. 

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