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Allora & Calzadilla: Entelechy

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Isabel Nogueira

 

Jennifer Allora (n. 1974) é norte-americana e Guillermo Calzadilla (n. 1971) cubano. Ambos vivem e trabalham em Porto Rico, a ilha caribenha plena de contrastes entre o turismo que se impõe e uma vivência simples e antiga, enraizada no que o mar turqueza dá — daí, precisamente, a denominação porto rico. Trata-se de realidades contrastantes às quais se junta o legado colonialista espanhol. Esta proposta expositiva, com curadoria de Philippe Vergne e Inês Grosso, representa uma retrospectiva do trabalho dos artistas e chama-se Entelechy, título homónimo da mais impactante peça do conjunto: uma imensa escultura em carvão negro (2021), executada a partir de uma árvore atingida por um raio, cuja apresentação é acompanhada por uma música de David Lang, activada pelo espectador.

O termo “enteléquia” tem uma origem etimológica ligada à filosofia, nomeadamente, à artistotélica, significando genericamente a concretização de um processo, por oposição à existência em potência. Enteléquia reporta-se a uma realização da essência da alma. Também Leibniz utilizou o conceito para designar as substâncias simples, as mónades que são criadas. E esta exposição consegue efectivamente incorporar e trazer à concretude algo de essencial, orgânico e belo, ao mesmo tempo. E, claro, é uma exposição que coloca questões e desafios.

A linha de trabalho de Allora e Calzadilla — que colaboram desde 1995 —, como de vários outros artistas, reflecte com acerto e preocupação  sobre o momento de esgotamento, aos mais diversos níveis, que vivemos, seja pela fragilidade dos ecossistemas, pela crise climática, pelas guerras, pelo pós-colonialismo, pelo capitalismo voraz, pela falta de igualdade e de paridade vivenciadas sob muitas formas. Mas, de facto, esta exposição consegue exprimir estes aspectos com uma componente de sofisticada beleza e notória poesia, confluindo para que esta mostra represente um momento singular — e, já agora, um dos mais bem conseguidos dos últimos meses — de fruição e envolvência.

A peça Hope Hippo (2005) recebe o espectador na sua vulnerabilidade lamacenta e monumental. Sobre ela — a escultura de um hipopótamo —, há sempre alguém com um apito que vai dando alarmes enquanto lê o jornal do dia, produzindo-se, de imediato, uma antecâmara das diversas problemáticas que se vão desenvolvendo ao longo da exposição. Os jornais vão-se acumulando no chão, à volta do hipopótamo. Há algo de trágico aqui, porque a tragédia implica uma incompabilidade de fundo entre duas situações que obrigam a uma escolha. Essa escolha, por diversos motivos, amputa-se reciprocamente. Ora, a evolução civilizacional incorpora uma componente trágica neste sentido. A novidade e a acção, de um modo genérico, produzem consequências, muitas das quais francamente nefastas. Trata-se de um equilíbrio frágil e preocupante, naturalmente.

As referências a Porto Rico surgem amiúde ao longo da exposição, como a escultura que representa laranjas (Loss, 2017), uma espécie introduzida pelos espanhóis no século XVI, e cujo cultivo e consumo conhece fortes medidas proteccionistas. As imagens de tempestades a abanar palmeiras constituem outro exemplo de registo da força da natureza neste território. Uma tempestade em Porto Rico tem tanto de belo como de perigoso. O ar torna-se denso e a luz dramática. Depois, tudo pode acontecer.

Outra peça a que conferimos destaque é Stop, repair, prepare: variations on ode to joy for prepared piano (2008), que é constituída por um piano com um buraco aberto no centro, que é activado por um pianista que toca o conhecido hino da alegria, de Beethoven, o qual, e após diversas apropriações, se foi estabelendo como sinónimo da união dos povos e das nações. Naturalmente, que se trata de mais uma ironia polissémica desta exposição. Ao longo do espaço, acontece ainda algo que é, a seu modo, belo, surpreendente e inquietante. São as esculturas em policloreto de vinil reciclado e pintado a rosa, em tamanho natural, de flores (Graft, 2019-2021), portadoras de enorme delicadeza e que se assemelham efectivamente a flores reais. Numa espécie de raccord cinematográfico, as flores surgem do outro lado do vidro, no parque de Serralves, em coloração amarela. Realidade/construção; verdade/ficção; natureza/obra de arte; são binómios que se replicam no espaço expositivo.

O espectador fica numa espécie de simulacro suspenso no tempo e no espaço, curiosamente, e voltando ao início, algo que nos reporta aos conceitos aristotélicos de medida do movimento e do lugar determinado, respectivamente; ou ainda ao tempo e ao espaço vivido e ocupado, se preferirmos, a ideia heideggeriana do “ser-aí” ou “ser-no-mundo”/”ser-uns-com-os-outros”, determinante do como “eu-sou” e constitutivo do “respectivamente-em-cada-momento”. Curiosamente, O conceito de tempo, de Martin Heidegger, foi uma conferência proferida praticamente há um século (1924). É este “ser uns com os outros” que se torna efectivamente desafiador e proeminente, e é neste território conceptual e material que Jennifer Allora e Guillermo Calzadilla desenvolvem o seu trabalho e problematizam a arte, o mundo e a natureza, fomentando perspectivas diversas, jogos de linguagem e questionando o próprio dispositivo artístico, o qual, pode assumir uma objectualidade diversa e, inclusivamente, confundir-se com o real. Este aspecto é particularmente interessante e profícuo.

Entelechy é uma exposição sempre com o final em aberto, curiosamente, contrariando o final fechado da narrativa de proposição aristotélica, clássica. E fomenta-se um espaço que também deixa lugar à fruição livre do espectador, quer dizer, não há um posicionamento dogmático e impositivo das obras, apesar de algumas delas serem inequivocamente impactantes. O espectador, se sentir essa necessidade, vai querer saber mais e ver mais. Mas isso não lhe é imposto, precisamente, porque esta exposição comporta também uma componente especulativa de beleza intrínseca às obras; uma certa poesia metafórica que preenche todo o espaço, tornando-o comunicativo, mas também desejante e desejável.

Entretanto, o dia começa a cair lá fora. O Verão está a terminar o seu ciclo, abrindo-se um novo. Do outro lado do vidro, percebe-se que sol está mais baixo e um tom dourado inunda a sala. O apito toca, o piano também. As flores continuam espalhadas displicentemente ao longo chão. Também elas são metáforas e música, à sua maneira. Amanhã, tudo voltará a acontecer no museu e na vida. Em Porto Rico, talvez caia uma chuva quente e a atmosfera fique dramática e pictorial. Haverá música, certamente.

 

 

Allora & Calzadilla 

Museu de Arte Contemporânea de Serralves

 

Isabel Nogueira [n. 1974]. Historiadora de arte contemporânea, professora universitária e ensaísta. Doutorada em Belas-Artes/Ciências da Arte [Universidade de Lisboa] e pós-doutorada em História da Arte Contemporânea e Teoria da Imagem [Universidade de Coimbra e Université Paris 1 Panthéon-Sorbonne]. Livros mais recentes: "Teoria da arte no século XX: modernismo, vanguarda, neovanguarda, pós-modernismo” [Imprensa da Universidade de Coimbra, 2012; 2.ª ed. 2014]; "Artes plásticas e crítica em Portugal nos anos 70 e 80: vanguarda e pós-modernismo" [Imprensa da Universidade de Coimbra, 2013; 2.ª ed. 2015]; "Théorie de l’art au XXe siècle" [Éditions L’Harmattan, 2013]; "Modernidade avulso: escritos sobre arte” [Edições a Ronda da Noite, 2014]. É membro da AICA [Associação Internacional de Críticos de Arte].

 

A autora escreve de acordo com a antiga ortografia. 

 

 

 

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Allora & Calzadilla: Entelechy. Vistas da exposição no Museu de Arte Contemporânea de Serralves. Fotos: NVStudio. Cortesia da dupla de artistas e Museu de Arte Contemporânea de Serralves. 

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