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Ana Santos e Hugo Canoilas no CAV

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José Marmeleira

 

 

E paulatinamente, no Centro de Artes Visuais, em Coimbra, o ciclo de exposições Museu da Obsessões foi resistindo aos obstáculos. Sabemo-lo, não foram poucos e não foram menores. E, no entanto, não foram suficientes para ferirem, com gravidade, o projecto. Passados dois anos, com a curadoria de Ana Anacleto e apoio de uma equipa fiel e atenta, construiu-se uma história da qual fazem parte exposições e obras de Noé Sendas, Henrique Pavão, Horácio Frutuoso, Tatiana Macedo, Tris Vonna-Michell e Catarina de Oliveira. A estes nomes juntam-se agora Hugo Canoilas e Ana Santos, compondo um elenco plural e cuja construção permanece delimitada pelas linhas da programação.

Embora valorizando uma relação histórica com os Encontros de Fotografia, o ciclo inspira-se nas ideias de liberdade e transversalidade propostas por Harald Szeemann e no modo como o curador suíço concebia a possibilidade de apresentação das obras. Daí, a ênfase colocada por Ana Anacleto na ideia de cruzamento de várias áreas disciplinares e, decorrente deste, nos artistas que se debruçam sobre a questão da imagem num território de fronteira. É na companhia de certas noções — liberdade, transversalidade, imagem, fronteira — que o espectador pode perceber os sentidos que imanam das obras de Hugo Canoilas (Lisboa, 1977) e Ana Santos (Espinho, 1982). 

Expostos em mais um momento do ciclo — subordinado ao tema do Espectro —assinalam, pela sua disposição no espaço, a presença de universos e preocupações distintas. Ou dito de outro modo, as duas esculturas de Vis-à-Vis de Ana Santos e Phantasmagoria, instalação pictórica de Hugo Canoilas reflectem um traço importante da arte contemporânea: a sua heterogeneidade. O que quer isto dizer — também — sobre as duas exposições? Eis uma resposta provisória: que os artistas nelas representados não têm, à partida, entre si, grandes afinidades. 

Vis-à-vís de Ana Santos é composta por duas esculturas que replicam formas tubulares. São peças verticais que marcam uma presença concreta no espaço. Solicitam ao visitante a consciência desse acontecimento e do movimento que suscita. A herança do minimalismo, bem como do que se designou chamar pós-minimalismo, perpassa pela experiência das obras, em particular por aquela de onde caem, imóveis, fios de polyester. Poderiam ser descritas como linhas vermelhas, extensões de cor que, à distância aparentam bidimensionalidade. Afinal, o jogo entre superfície táctil e visual assoma com humor. O que vemos? Uma escultura ou uma imagem? 

Há qualquer coisa que alude ao monumental nesta escultura, mas a presença do tecido polyester desvia-nos dessa forma. O que ressalta é o brilho artificial do aço e a forma compósita da própria escultura. As origens industriais das formas e dos materiais permanecem visíveis e, no entanto, ela parece superá-las, tornando-se uma figura autónoma — quase um corpo — que aguarda, com as suas extensões, a chegada do visitante. 

Observando as partes que a constituem, percebe-se um aspecto que tem caracterizado a prática de Ana Santos: a constituição de uma linguagem no interior de uma concepção expandida da escultura. Esta afirmação soa a lugar-comum, mas é precisamente nesse quadro que as peças Vis-à-vis se situam, propondo outras leituras além das já expostas. As duas esculturas não estabelecem apenas relações com o visitante, mas consigo mesmas. Eles estão defronte ou diante de partes que as compõem. Não se trata de duplos, mas de extensões, membros ou, dir-se-ia até, próteses (como se acrescentadas pela artista), com a diferença que não acrescentam funções, mas sentidos.  

Se a presença do tecido e da cor contém o brilho do metal (ao mesmo tempo que o salienta) na primeira escultura, a segunda escultura, por meio de abraçadeiras metálicas, sugere a existência de um interior que se mostra. Ou seja, o corpo da escultura (em forma de coluna) tem um vácuo, um espaço oco. Nesta peça sobressai também uma tensão muda: a escultura é formada por coisas que prendem e não apenas que ligam. Ela é um corpo de coisas que alguém juntou com o cuidado e a violência necessárias e, nesse sentido, um corpo que nos convida a ver e pensar o nosso próprio corpo.

 

 

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Ora é exactamente com o nosso corpo que entramos em Phantasmagoria de Hugo Canoilas. Visível no primeiro piso, esta instalação pictórica é uma tela que move sem se mover. E na qual mergulhamos. Feita de algodão, recebeu os gestos pictóricos do artista inspirado na memória de imagens diferentes da lula gigante: a do espécime mantido em formol que viu numa das salas do Aquário Vasco da Gama em Lisboa; a descrita por Júlio Verne em 20.000 Léguas Submarinas; e aquela reproduzida pelas câmaras dos robots que sondam as profundezas dos oceanos. Mas não é o cefalópode, conhecido na zoologia por Archite peuthis, que aparece representado. Na verdade, não há verdadeiramente a representação de uma coisa, mas antes a de um lugar onde aparecem coisas. Longe do espaço branco, adequado às esculturas de Ana Santos, o espaço toma a forma, pela luz e pela sombra dos desenhos, de uma câmara ou de uma gruta onde submergimos, e cujas superfícies vamos, com o corpo, contemplando: pontos, manchas, motivos vegetais, orifícios, bocas, ventosas.

Nesta viagem, Hugo Canoilas reúne outras memórias e sentidos, para os justapor e estender: a luz da pintura rupestre, a fluidez da pintura japonesa e chinesa, a textura da pele, a magia do teatro de sombra ou o feitiço dos dispositivos cinemáticos. A pintura é animada por focos de luz escondidos, mas só se move, de facto, quando nos movemos. Esta experiência óptica e física é conseguida de um modo notável pelo artista. Sensível à arquitectura interior do Pátio da Inquisição, Hugo Canoilas leva-nos também (talvez involuntariamente), com a pintura, à descoberta de um espaço físico que tem uma história com os seus fantasmas. Este facto não nos distrai do que Phantasmagoria quer propor em termos sensoriais e poéticos. Os espectros que vemos projectados — em especial, aquele que serpenteia à superfície, aparecendo e desparecendo na pintura —habitam um mundo que apenas podemos perscrutar. Seguindo as reflexões e os projectos recentes do artista (por exemplo, a exposição Moldada na Escuridão na Fundação Calouste Gulbenkian), esse mundo seria construído pela empatia e a compatibilidade entre espécies e seres vivos, que não apenas os humanos. Ora, em Phantasmagoria a ilusão é tão forte e tão frágil que nos liberta das limitações físicas dos nossos corpos. Sem sairmos deles, dentro daquela pintura imaginamo-nos outros corpos, outros seres. Até voltarmos para a luz exterior.

 

Ana Santos

Hugo Canoilas

CAV-Centro de Artes Visuais de Coimbra

 

 

José Marmeleira é Mestre em Comunicação, Cultura e Tecnologias da Informação (ISCTE), é bolseiro da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT) e doutorando no Programa Doutoral em Filosofia da Ciência, Tecnologia, Arte e Sociedade da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, no âmbito do qual prepara uma dissertação em torno do pensar que Hannah Arendt consagrou à arte e à cultura. Desenvolve, também, a actividade de jornalista e crítico cultural independente em várias publicações (Ípsilon, suplemento do jornal PúblicoContemporânea Ler).

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.

 

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Ana Santos, Vis-à-vís, e Hugo Canoilas, Phantasmagoria, no CAV. Vistas gerais da exposição no CAV-Centro de Artes Visuais de Coimbra. Fotos: Photodocumenta. Cortesia dos artistas e CAV.

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