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Os Livros de Júlio Pomar

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Isabel Nogueira

 

 

«No princípio era o verbo», diz a conhecida frase de João Evangelista. Mas também se vislumbra a possibilidade de no começo ser a imagem. Ou mesmo a imagem da palavra. Independentemente do início, que se aproxima sobretudo a um exercício de retórica, uma vez mais, o Atelier-Museu Júlio Pomar propõe ao visitante uma relação da obra de Pomar (1926-2018) com outras obras, artistas, conceitos, formas de expressão. A curadoria é de Mariana Pintos dos Santos e, desta vez, a proposta expositiva centra-se na relação da obra de Júlio Pomar com a escrita e a literatura, em sentido lato.

Trata-se de um vasto conjunto de obras que, a seu modo, evoca a literatura, seja através trabalhos que se tornariam capas de livros, ou de outros que funcionaram como ilustração de textos, dando corpo a um dispositivo paralelo de leitura e fruição, ou ainda mediante excertos literários que, por diversos motivos, lhe seriam próximos. Aliás, numa bela intervenção de Horácio Frutuoso, alguns destes excertos textuais fazem uma espécie de raccord com as obras de Pomar, serpenteado pelas paredes fora e relacionando-se com as pinturas que evocam.

Palavra e imagem constituem, assim, uma continuidade na narrativa visual que é proposta ao espectador mediante um processo de montagem, como no cinema, por exemplo.

O ponto de partida da exposição ou, se preferiremos, o seu conceito é conseguido e convoca originalidade, ao propor a ligação assumida da visualidade e do conteúdo das obras de Pomar com a literatura, também mediante a referida intervenção de Frutuoso, que se desenvolve pelo espaço, surpreendendo num canto, num local menos acessível, no chão. Até no sentido poético, esta palavra, materializada em visualidade, faz vibrar o conjunto, conferindo-lhe complexidade e diferentes camadas de leitura e de possibilidade de viagem. Os excertos de textos são de Dante Alighieri, Ferreira de Casto, Jorge Luís Borges, Álvaro de Campos, François Rabelais, Homero, Cervantes, Mário de Sá-Carneiro, Lewis Carroll, entre outros.

Nos trabalhos seleccionados de Pomar, e a título de exemplo, chamou particularmente a nossa atenção um notável conjunto de estudos para a capa do livro de Eça de Queiroz, na sua versão francesa, Le crime de Padre Amaro (Éditions de La Différence, 1985). Ou ainda duas inusitadas esculturas de tartarugas, em bronze (2003), claramente evocativas de um fantasioso universo infantil. Entendemos, contudo, que estas belas esculturas não revelam todo o seu potencial no lugar em que se oferecem ao espectador: junto ao gradeamento, no piso superior do espaço expositivo, uma vez que não se evidenciam nem é possível circundá-las, fruí-las na sua tridimensionalidade e pormenor. De um modo geral, a montagem apresenta-se cuidada e com os núcleos bem organizados, mas um pouco saturada, merecendo mais espaço de respiração, sobretudo quando, além das obras de Pomar, temos as palavras dispostas pelas superfícies do chão e das paredes.

Por outro lado, percebemos a eventual e legítima vontade de mostrar um artista com uma obra vasta e multifacetada, como a de Júlio Pomar, e que se deseje incorporá-la, o mais possível, no espaço expositivo. De todo o modo, o conjunto funciona bem e é orgânico, como cremos ter sido a intenção curatorial. O espectador é convidado a habitar várias histórias, imagens e universos, o que se torna francamente interessante e singular neste sentido. Há também uma componente de viagem e de sentimento de pertença, assim como uma politização de fundo, conhecida em Pomar, que nos chama a atenção, especialmente em tempos como os que vivemos, de migrações, de pessoas refugiadas, de desigualdades gritantes e de violência diversa e aparatosa.

Vejamos, neste sentido e por exemplo, algumas das palavras espalhadas pelo espaço. A promessa de uma América salvadora, visível em Os Emigrantes (Ferreira de Castro, 1928): «A América, agitando o úbere farto, escorrendo oiro, tornara-se a pátria ideal de todos os que não tinham pão»; ou a aventura da viagem de Ulisses em Odisseia (c. século VII a.C.): «Quem delas se acercar, insciente, e a voz ouvir das Sereias, ao lado desse homem nunca a mulher e os filhos estarão para se regozijarem com o seu regresso»; ou ainda a o existencialismo romântico, por vezes taciturno e fantasioso, de Allan Poe (The Raven, 1845): «E a minh’alma dessa sombra, que no chão há mais e mais»; ou ainda a possibilidade de uma qualquer redenção através do amor, de algum modo visível em Padre António Vieira (Sermão de Santo António aos Peixes, 1654): «(…) de amor antigo sentiu a força imensa». E esta pode ser uma forma oportuna de fechar esta breve reflexão. No princípio era o verbo e eram os afectos. E esta exposição consegue fazer perceber alguns dos afectos e interesses literários de Júlio Pomar, em várias camadas de leitura. Na verdade, é como se a pintura e o dispositivo visual se tornassem num verbo transitivo.    

 

Atelier-Museu Júlio Pomar

 

Isabel Nogueira (n. 1974). Historiadora de arte contemporânea, professora universitária e ensaísta. Doutorada em Belas-Artes/Ciências da Arte (Universidade de Lisboa) e pós-doutorada em História da Arte Contemporânea e Teoria da Imagem (Universidade de Coimbra e Université Paris 1 Panthéon-Sorbonne). Livros mais recentes: "Teoria da arte no século XX: modernismo, vanguarda, neovanguarda, pós-modernismo” (Imprensa da Universidade de Coimbra, 2012; 2.ª ed. 2014); "Artes plásticas e crítica em Portugal nos anos 70 e 80: vanguarda e pós-modernismo" (Imprensa da Universidade de Coimbra, 2013; 2.ª ed. 2015); "Théorie de l’art au XXe siècle" (Éditions L’Harmattan, 2013); "Modernidade avulso: escritos sobre arte” (Edições a Ronda da Noite, 2014). É membro da AICA (Associação Internacional de Críticos de Arte).

 

A autora escreve de acordo com a antiga ortografia.

 





 

Os Livros de Júlio Pomar. Vistas gerais da exposição no Atelier-Museu Júlio Pomar. Fotos: António Jorge Silva. Cortesia de AMJP | Fundação Júlio Pomar.

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