Conversa com Chus Martínez e Filipa Ramos
Pés descalços
Uma paisagem romântica e bucólica antecede a chegada a “Pés de barro”. A exposição, em cartaz até o dia 22 de agosto, não deixa de ser uma resposta ou uma tentativa de diálogo com o entorno natural que penetra na arquitetura envidraçada da Biblioteca Almeida Garrett, espaço da Galeria Municipal do Porto.
Mas se os Jardins do Palácio de Cristal, do século XIX, evocam um tipo de natureza ordenada, construída e planejada, Pés de barro aposta em um fazer menos racional e “formalista”, mais frágil e amorfo. Em um andar não tão pesado e cheio de certezas. Apesar da mostra não tocar no assunto, é impossível não lembrar que em 1934, durante a Exposição Colonial, eram trazidas de seus países de origem mais de 300 pessoas que pisaram neste mesmo chão de barro, muitas delas com seus pés descalços.
A exposição pretende realizar uma viagem não linear a uma certa origem sem tempo ou espaço definido. Diferentes contextos e suportes coabitam evocando a figura do barro e seus possíveis desdobramentos metafóricos e materiais. No barro estão inscritos conhecimentos vernáculos e tácteis. A matéria também evoca a conexão com a terra e com formas ancestrais de trabalho, de organização da casa, da comunidade e das tarefas. Mas se o barro automaticamente nos faz pensar em um passado mais telúrico e conectado à natureza, também pode indicar uma possível alternativa de presente e futuro.
Somos recebidos no espaço expositivo pelo conjunto de vênus de couro sintético (mas que parecem feitas de argila molhada), de Pauline Curnier Jardin. Pegadas às paredes, as deusas são também espectadoras de um ritual místico-pagão realizado em uma caverna “primitiva” e transposto à um cubo-negro. Na sala ao lado, o franco-argelino Neïl Beloufa mescla iPhones e iPads com camelos no deserto em uma ficção em forma de instalação audiovisual. Já a portuense Isabel Carvalho ilumina o caminho do espectador com globos “grafitados” que reproduzem escritos encontrados nas ruas do Porto e conduzem a grande projeção de Tamara Henderson. No filme em 16mm de Henderson, as imagens de um mestre de hipnose que trabalha em uma espécie de olaria parecem descompassadas com a voz do hipnoterapeuta em som aberto. A sessão é emoldurada por um grande olho, um desenho mural do argentino Eduardo Navarro, e ocupa a parede que fecha o amplo espaço no qual de um lado estão os delicados e irônicos desenhos circulares de Ana Jotta, pendurados em uma parte do ambiente mais resguardada e com teto baixo, e do outro o grande forno de barro não cozido de Gabriel Chaile. A peça ascendente e frágil de Chaile evoca justamente a força, a resistência e o poder das mães solteiras. Completa o conjunto de obras o encontro tenso entre o orgânico e o geométrico-ortogonal que se materializa nas pinturas e esculturas da dupla galega Formabesta.
Em uma conversa com as curadoras Chus Martínez e Filipa Ramos fica claro seu desejo de fugir do formato das exposições tese. Ao invés de buscar “educar” e convencer o público espontâneo e também especializado — para não dizer, de pregar para convertidos, já que, afinal de contas sabemos o quanto trabalhamos para satisfazer e impressionar os nossos pares e assim conseguir prosperar e resistir à máquina de moer carne do sistema da arte — elas apostam na criação de um espaço que proporcione sensações e questionamentos que poderão ser assimilados em outro tempo, talvez no futuro.
No entanto, apesar de defender a importância de construir algo mais intuitivo e afetivo, da ordem de uma experiência primigênia (que não deixa de ser outra tendência do meio nos últimos anos), Chus chama atenção para a limitação do formato expositivo. Segundo a curadora, não bastam exposições que trabalhem com obras e artistas que fogem da lógica material e mercadológica para lutar contra o peso das instituições e do sistema. Seria fundamental que os artistas de fato atuassem nas estruturas institucionais e políticas gerando assim novos modos de fazer, estar, pensar e viver.
Realizada em uma manhã de sábado, nossa conversa foi conduzida em castelhano. Começa com as curadoras explicando o ponto de partida e a motivação principal para construção de Pés de Barro e vai muito além da própria exposição.
Isabella Lenzi. Pesquisadora e curadora de arte latino-americana no departamento de coleções do Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofía, MNCARS, Madrid. Dirigiu por sete anos (2013-2019) o espaço cultural do Consulado Geral de Portugal em São Paulo / Camões I.P., no qual consolidou um local de debate e experimentação para artistas emergentes e históricos portugueses e brasileiros. Também integrou o núcleo de programação da Associação Cultural Videobrasil (2013-2015), trabalhou com exposições na Galeria Vermelho, em São Paulo (2012-2013), e foi assistente de curadoria de Agnaldo Farias na XI Bienal de Cuenca, no Equador (2011-2012). Desde 2016 vive entre o Brasil e a Europa. Entre outros projetos, atuou como pesquisadora e assistente de curadoria na Whitechapel Gallery, em Londres (2017), colaborou em exposições realizadas no Nouveau Musée National de Monaco (2018) e no PAC - Padiglione d’Arte Contemporanea de Milão (2018) e foi coordenadora de exposições na Fundación MAPFRE de Madrid (2020).
O texto foi escrito em português do Brasil.
Pés de Barro, vistas gerais da exposição na Galeria Municipal do Porto. Fotos: Renato Cruz Santos / Galeria Municipal do Porto. Cortesia de Galeria Municipal do Porto.