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Joana Escoval: Mutações. The Last Poet

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José Marmeleira

 

Uma das faculdades e capacidades que, na Antiguidade, a poesia e a filosofia partilhavam era o reconhecimento de aquilo que aparecia, de aquilo que existia. Não apenas os humanos, também as coisas orgânicas e inorgânicas, o mundo natural, os astros, o cosmos. A visão estritamente utilitária dos outros seres sencientes, dos elementos e dos fenómenos naturais não dominava ainda o mundo. As coisas não existiam em função da felicidade dos homens e os humanos não existiam como fim último, absoluto de todas as coisas. O mundo não se encontrava ainda des-divinizado. E, precisamente por isso, os poetas sabiam cantá-lo, exprimindo gratidão pela sua existência. Com o desenrolar da idade moderna, e a alienação que ela trouxe, a experiência dessa faculdade foi-se apagando. Até aqueles que se dedicavam à poesis, os artistas, foram dela se afastando. Basta pensar nas proclamações de revolta que animaram certas vanguardas modernistas, exaltando a violência da fabricação, ou na deriva de alguns artistas que, nos anos 60 e 70 de século passado, se enlevaram nas promessas da tecnologia.

Qualquer coisa, ainda indefinível, dessa sensibilidade antiga parece ter regressado ou estar a regressar. Uma escuta atenta aos rumores dos elementos naturais, ao tempo das coisas, à sua permanência. Àquilo que não é humano, que está antes ou para lá do humano. Não se trata de uma restauração, ou de um gesto lírico, mas do perscrutar da alteridade na sua acepção mais primordial, física, extra-humana. Não a fim de saber como ela funciona, mas de a contemplar nas suas aparições, nas suas forças, nos seus estados. É tal sensibilidade, próxima da delicada empiria goethiana que se encontra na belíssima exposição Mutações. The Last Poet, de Joana Escoval, comissariada por Pedro Lapa no Museu Berardo. Não há direções ou ordens nesta exposição, mas um caminhar sem se saber quando e onde acaba. Esse caminho é em si mesmo, em termos de arquitetura, uma obra que, sob o nome de Spirit Trail, sublima a experiência convivial da artista com índios Navajo no Novo México, Estados Unidos. Não se pense em arqueologia ou em apropriação. O termo apropriado será, talvez, ressonância. Algo vindo do tecer das mantas realizada pelas mulheres daquele povo nativo ressoou na artista. Não foi o fetichismo do ritual, mas o significado daquele fazer, a sua energia, a sua cadência (que perdura na transmissão intergeracional), que Joana Escoval recebeu e transmitiu com o seu caminho.

Um trilho ao longo do qual vamos descobrindo coisas. Por exemplo, as esculturas finas e resistentes, de latão, a que Joana Escoval deu o nome de The snakes talking without words. Saem do chão, vêm do teto, entram e saem das paredes. Parecem nascer da própria arquitetura, desenhando arcos, dobras, caminhos de um caminho maior. Por vezes, serpenteiam breves e estáticas coreografias. São presenças que podemos tocar, vibrações perenes que transportam coisas tangíveis daquilo que é intangível.

À medida que se avança, escuta-se um rumor que se vai tornando ruidoso, mais intenso. É feito de sons gravados, em ocasiões diferentes, pela artista e por Nuno da Luz: de uma guitarra tocada pelo vento, de um geiser, de ondas sísmicas, de pratos da bateria, de pássaros. Sons escutados e chamados pelo humano que acompanham a imagem, discreta, não grandiosa, projetada na parede, do pôr-do-sol. Acompanham, mas não lhe são totalmente fiéis, dispersam-se pelo espaço, livremente. Living Metals, assim se chama esta peça, reunindo sons à imagem, vive sem o espectador que pode assistir, ou não, ao eterno pôr-do-sol. Nesta exposição, o visitante é abandonado à generosidade da contingência, sem preceitos e orientações. Mas experimenta, também uma vertigem silenciosa face àquilo que lhe escapa, como a energia e a força, que numa corrente invisível, ligam materiais diferentes em Living Metals III e Living Metals IV. São constituídos por uma rocha vulcânica, sobre a qual o visitante encontra um anel de latão, cujas hastes podem ser rodadas. Esse movimento, se acelerado faz desaparecer o anel, torna invisível o seu movimento, ao mesmo tempo que manifesta a sua energia. Colocado de novo sobre a rocha vulcânica sugere uma tensão que é visual, formal e física: entre o mineral, que a lava deixou reificado, e o produto do fazer da artista. Como se algo de subterrâneo corresse entre aquelas rochas, produto de forças sobre-humanas, e as esculturas, objectos humanos.

Joana Escoval convoca as forças poderosas e não-humanas do mundo, mas não amedrontada, não para nos amedrontar.

Pretende transmitir as vibrações silenciosas, sonoras, visuais, invisíveis desses forças. Não será acertado, por isso, dizer que a sua disposição é de uma artista fascinada pelo sublime incomensurável da natureza. São as conexões visíveis entre as coisas, as correntes que enlaçam fenómenos, seres e elementos que observa e que respeita. É a vida, resumindo, como dinâmica, fim em si mesmo, que a artista, salva nas esculturas I would rather be a tree e I would rather be a storm, que pendem da parede. De uma liga feita de raiz, caem sob o efeito de gravidade e oferecem-se, sem altivez, ao efeito do tempo. Vão oxidando, ao contrário das soldaduras de ouro que as juntam. Estas, mais resistentes ao desgaste, sobreviverão como conexões brilhantes dessa energia, quais metáforas da permanência das conexões, dos veios, de interdependências.

Joana Escoval reúne, liga, acrescenta e subtrai. Em My breath aligned with the breath of the animal and our breath aligned with the wind, encontra-se um trabalho de uma beleza desconcertante e perturbadora. No interior de uma parede, qual gruta, vemos uma animação 3D. No fundo escuro, três coisas movem-se. Cabelos, crinas, seres subaquáticos, anjos? Não há corpos, apenas movimento, um bailado gracioso sob o som de um búzio tocado continuamente em respiração circular. Esta respiração que ainda é humana, sai pelo corpo de animal antes de se juntar ao som do vento. Juntos parecem animar aquelas aparições, fazê-las mover, dar-lhes vida. Por momentos, não se tem a certeza do lugar daquela aparição. Estará a um palmo do nosso corpo, podemos entrar nela? Ou foi ela que entrou, invadiu, qual atalho ou desvio, o caminho? Revemo-nos naqueles corpos sem corpo? Ou, pelo contrário, há algo neles que nos repele?

Joana Escoval debruça-se sobre as relações entre animal e o humano, o humano e o não humano, o humano e o natural, para dissolver distinções e distâncias. Com urgência? Sim, mas essa urgência é temperada pela subtileza que os paradoxos e as aporias suscitam. Joana Escoval não afirma, dá a entender poeticamente, também com as palavras. Veja-se o trabalho Fiducia incorreggibile (2020), que torna presente a explosão de cinzas no vulcão Stromboli: o fascínio face às imagens (de escalas reduzidas, numa forma fluida, líquida, reminiscente de outros trabalhos) são como que apaziguadas — dir-se-ia mesmo humanizadas — pelo título, que celebra a atitude dos habitantes naturais da ilha e a relação que artista estabeleceu com eles durante três anos. Isto é, Joana Escoval não evacua o humano do seu caminho. Ele manifesta-se, ora ameaçador, na sua animalidade em All the food they shared with each other came from the forest, and the nearby rivers and streams, ora construindo um refúgio, na obra de arte, para as coisas que ele própria cria e destrói, em In dream, I often see them destroying the entire forest as they search for it, escultura em que o artifício humano (na fabricação da artista) e mundo natural (na pena de um periquito, no ramo de videira) se enleiam com igual violência e fragilidade. Numa tensão delicada, permanentemente animada, circulando sem fim. Como toda a exposição.

 

Joana Escoval

Museu Coleção Berardo

 

José Marmeleira. Mestre em Comunicação, Cultura e Tecnologias da Informação (ISCTE), é bolseiro da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT) e doutorando no Programa Doutoral em Filosofia da Ciência, Tecnologia, Arte e Sociedade da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, no âmbito do qual prepara uma dissertação em torno do pensar que Hannah Arendt consagrou à arte e à cultura. Desenvolve, também, a actividade de jornalista e crítico cultural independente em várias publicações (Ípsilon, suplemento do jornal PúblicoContemporânea Ler).

 

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Joana Escoval: Mutações. The Last Poet. Vistas da exposição Museu Coleção Berardo. Fotos: Bruno Lopes. Cortesia da artista e Museu Coleção Berardo.

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