Gisela Casimiro: Segundo Cérebro I/III
“What is your great hunger?
To understand your great hunger, you must understand what breaks your heart.”
Assim nos ensina Tererai Trent a sermos vulneráveis. O que me parte o coração? A pergunta, na verdade, é sobre o que nos parte o coração enquanto Humanidade, e o que podemos fazer para repará-lo, para nos repararmos. É Março e chega-nos a pandemia que abrandou o mundo. Ainda não sabemos o que é o trauma que assola sobretudo chineses e italianos há meses. Esta ferida exposta não é por todos vivida da mesma forma, como a vida também não era. Os dias expandem-se e contraem-nos; o ar perde a luta para a ansiedade, damos por nós a experienciar e a repetir todo o tipo de emoções e afirmações contraditórias. Entre notícias e memes, o quarto e a sala, a cozinha e o supermercado, eis-nos trancados fora do mundo. Trancados connosco próprios (e, em tantos casos, com a família), sem distracções ou um fim previsto à vista. Pessoas com vista para si mesmas, indo para dentro cá dentro. Que luto fazemos, neste início de quarentena privilegiada? O dos mortos que não são, ainda, os nossos? O dos desempregados? Dos que passam fome? Sabemos, sequer, que estamos de luto? Sabemos o que perdemos realmente, e que não foi agora que o perdemos?
Faço as pazes com a perda da viagem a Paris que marquei num impulso, sem saber
que precisaria dela para me ajudar a acabar de fazer o luto pela morte recente e
repentina de um amigo. Alguém escreveu: “Só se safam [o amigo] e o Pôncio Pilatos.”
Esta frase não mais me deixou. Depositei a minha fé em nuvens que não pude
alcançar e só me tornei mais pesada. Se nos dessem uma mochila com o que
carregamos dentro de nós, rapidamente diríamos não ser capazes de aguentar com o
peso. A horizontalidade já me acompanhava como um animal de estimação doente,
aninhado a mim. Restava-me estar comigo, com os meus sentimentos, cuidar. Eu sou
o meu animal doente. Eu sou responsável por mim. Quando estou triste, quando estou
feliz. Eu, que poucas vezes bebo, tomo a última bebida alcoólica com um amigo a 12 de Março, enquanto as redes sociais liberalizam a happy hour para sempre que se queira. Afinal, os dias confundem-nos, não é? Vou ao escritório buscar o computador para trabalhar em casa, vejo as últimas pessoas que conheço sem saber quando voltarei a estar com alguém. Faço compras em excesso, proporcionais ao absurdo colectivo, à pena de nós mesmos, à incerteza de todos os futuros. Netflix, fazer pão, encomendar comida e observar como as diferentes empresas fazem entregas, mandar vir livros e descer dois andares todos os dias na expectativa de que tenham chegado, pensar em como desinfectar cartas, lavar maçãs com sabão e deixar tudo a secar ao sol, limpar a casa constantemente, como nunca antes, mesmo para quem o faz muito frequentemente. Estar farta disto, pronta para que acabe, mas apenas às vezes, durante uns segundos. Fazer planos para aspirar a tornar-me o meu melhor eu, almejar a viver a minha melhor vida. Se não agora, quando? Apagar as redes sociais uma, duas, três vezes. Falhar em tudo isto, ver séries e filmes e desenhos animados. Sem concentração para ler. Trabalhar. Estar grata pelo trabalho que detesto e pelo tempo de paz à minha pequena escala individual. A paz pela qual tanto ansiei. Lamentar a catástrofe à escala mundial. Listas infinitas do que fazer, aprender, cozinhar. Uma grande obsessão por focaccia. Recusar quase todos os directos e desafios das redes.
Em Abril, celebro cinco anos desde um sleeve gástrico. A consulta dos cinco anos foi
uma teleconsulta ainda em Março, a presencial remarcada para Novembro. Durante
todo o mês falo com quem tenha sido submetido a cirurgias semelhantes, quem esteja
a fazer jejum intermitente, quem escreve teses de Doutoramento sobre cantinas.
Poderia falar sobre comida sem parar. Afinal é só no que penso, não trabalhasse eu no
ramo alimentar. Passado o inicial impulso colectivo originado pelo choque e pelo
aborrecimento, que nos compelia a fazer demasiadas refeições por dia, fechados em
casa como estávamos, regressa uma ideia que não me abandona desde o
Verão de 2018: fazer um jejum-de-água-ponto-final. O meu cirurgião retirou-me oitenta
por cento daquilo a que chamam segundo cérebro. Do relatório fiz versos:
“O que perdi em estômago / ganhei em coração”. O que me parte o coração? Como se repara o coração?
Kintsukuroi, ou o reparo dourado, é a arte japonesa de reconstruir vasos, taças e demais cerâmica através de diferentes técnicas de ensambladura, comumente sendo
acrescentado um pó dourado à matéria que liga as partes quebradas ou rachadas. Não
se disfarça a falha. Ela é celebrada e a peça mais valiosa a partir de agora. A fotógrafa e directora de arte Carlota Guerrero escreve no seu Instagram sobre como estamos
todos ligados por um filamento, uma trança invisível. Nos últimos anos encontrei
repetidas vezes pela internet fora excertos de um poema de Anne Sexton sem lhe
saber o nome. O verso preferido de toda a gente parecia ser “Love and a cough /
cannot be concealed. / Even a small cough. / Even a small love.” Em Small Wire,
Sexton começa por declarar “My faith / is a great weight / hung on a small wire”. E
prossegue sobre o quase nada de que Deus precisa, mas do quão preciso é esse
nada: “just a thin vein, / with blood pushing back and forth in it, / and some love.” No
meu poema Deus, digo: “Deus não me pede nada / mas eu culpo-o de tudo.” Quando o
escrevi, ainda não lera o poema de Anne Sexton, mas já conhecia Deus há muito
tempo. Eid Mubarak, ouviu-se e leu-se tantas vezes ao longo deste penúltimo Domingo de Maio. Escrevo durante a noite aquilo em que meditei todos os dias: porquê? Para
quem? Com quem? Desconfinarei no meu tempo. Ainda preciso de tempo. Faço jejum
uma, duas, três vezes. Intermitente, de água, à maneira budista, durante um, dois, três
dias. Falho. Bebo mais água que nunca. Procuro, visito casas. Deixei o café há precisamente quinze dias. Arrefece o chá de gengibre e, como sempre, encontro o meu
reflexo intacto no fundo da chávena, por entre os riscos e fendas.
Gisela Casimiro (Guiné-Bissau, 1984) é escritora, artista e activista. É autora de Erosão e colabora regularmente com diversas publicações. Participou da mostra colectiva A/A8 no Museu Nacional de Etnologia (2019). Em 2020 inaugurou n' O Armário a exposição individual de poesia visual "O que perdi em estômago, ganhei em coração", sob curadoria de Ana Cristina Cachola (projecto "quéréla").
Foto: Lucas Foglia. Ice to Protect Orange Trees from the Cold, California 2015. Cortesia do artista.