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Ponto de Fuga | Vanishing Point

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José Marmeleira

Em Ponto de Fuga na Cordoaria Nacional, há uma tese que pode ser enunciada. Esta exposição é um ambiente construído pelo som e a luz, por matérias e materiais, imagens e objetos. Uma mise-en-scène de um autor, João Laia. A fim de evitar equívocos ou leituras precipitadas, a autonomia das obras não é ameaçada pelo recém-nomeado curador-chefe do Kiasma - Museu de Arte Contemporânea de Helsínquia. Irredutíveis a uma instrumentalização, elas furtam-se a literaturas unívocas. Feito este cuidadoso parêntese, o curador vinca, em termos temáticos e formais, a assinatura da montagem, a encenação que se abre ao visitante. No texto escrito na Contemporânea, em 2018, a propósito de 10000 Anos Depois Entre Vénus e Marte, na Galeria Municipal do Porto, indicaram-se alguns traços do que seria essa autoria. Em Ponto de Fuga, ela manifesta-se mais coerente e, por isso, mais assertiva.

Composta de obras da Coleção António Cachola, muitas das quais adquiridas para o efeito (quase metade da totalidade das peças são novas aquisições), a exposição configura-se, também, como uma relação conceptual e sensível entre trabalhos. Ou, dito de outro modo, não se propõe apenas como pensamento, produtora de ideias, mas é composta de cores, luzes e formas que as obras fazem circular entre si, que projetam umas sobre as outras. Alguns, brevíssimos exemplos: há aquelas que surgem como cenários de outras (o filme de Pedro Neves Marques) ou que levam sons e aromas a outras peças (a complexa instalação de Jonathan Uriel Saldanha). E espelhamentos, iluminações mútuas, imagens que parecem objetos (Alexandre Estrela) objetos que são superfícies (Diogo Evangelista). Sem surpresa, aos sentidos uma certa indefinição assoma, espoletando perguntas. No primeiro piso, de onde provêm os sons? Será pertinente descrever a pintura de Joana Conceição como uma imagem que se move sob o efeito da luz? Na instalação de Jonathan Uriel Saldanha, onde termina o natural e começa o artificial, aquilo que é criado pela natureza e aquilo que é produto da technê?

É nesta indistinção, em que tudo muta numa evanescência, que Ponto de Fuga recebe o espectador.

A evanescência de um mundo preexistente, já habitado, e cuja estranheza se pode reconhecer ou não. Ainda que o título em inglês se refira ao ponto em que algo diminui até desaparecer completamente, advindo daí a sua aceção política (que pode ser tomado e explorado à luz de um conjunto de ansiedades), Ponto de Fuga não determina um programa. Propõe uma experiência de obras distintas em que refluem questões e realidades, tais como a transformação das faculdades humanas sob a pressão do digital, a situação atual de emergência ecológica, a mutação acelerada da condição humana ou o reflexo que o presente encontra em histórias passadas.

O início da exposição começa com uma peça sonora de Luísa Cunha, BC (1998). Escuta-se um protocolo inusitado com instruções que se vão distorcendo numa voz maquinal, e incompreensível. À mesma inadequação parecem corresponder às posições do sujeito de Wedged, a projeção de slides de Ramiro Guerreiro: vemo-lo dobrado, deitado, sentado em recantos e cavidades de um edifício modernista.  Não foram construídos para o corpo humano, ali vulnerável à geometria esmagadora daquela arquitetura, mas o artista não dramatiza aquelas poses. Há um humor nestas cenas, o da tocante vulnerabilidade do indivíduo face às promessas e sonhos da construção humana. Este preâmbulo decetivo, irónico, expandir-se-á ao resto da exposição, mas diminuindo de tom aqui e ali.

Defronte, a pintura de Joana da Conceição aparece como um ecrã animado pela luz, desenhando no chão a sombra do seu volume. É a peça que assinala um dos elementos que, no primeiro piso, unifica cromaticamente a exposição: a presença de cores quentes (laranja, vermelho) luminosas, artificiais e metálicas. Esta pintura-ecrã embora nada tenha de imaterial ou digital parece falar com o trabalho de Priscila Fernandes e de Mariana Silva, com a diferença que estas propõem, ainda que com abordagens distintas, uma discreta digressão crítica às histórias da História. De resto, não abundam grandes momentos de especulação ou de elaboração teórica. Em Ponto de Fuga quase tudo é-o em surdina ou num tom baixo: a hostilidade anti-humana, seca e brilhante das fotografias de André Cepeda, a arqueologia futurista e circular de Andreia Santana, a energia efusiva das fábulas sem fim dos Von Calhau no filme AVESSO (REVERSE). Ou a cena que os trabalhos de Pedro Neves Marques e Horácio Frutuoso compõem no espaço por meio da luz e dos significados a que aludem. Neste caso, mais do que uma afinidade no que respeita aos materiais e às formas, há uma sensibilidade que poderia ser comum: a de uma inquietação poética face a um mundo cujos contornos futuros não é possível discernir. Se no caso do Horácio Frutuoso, o que se coloca são questões de ordem ontológica e existencial numa vida individual, o filme de Pedro Neves Marques, à beira do desvanecimento, interpela-nos num sentido mais global e histórico, sobrepondo narrativas e fenómenos: as personagens do seu filme, antes de adormecerem, observam em ecrãs digitais animais em extinção. O que irão sonhar? A sua própria extinção, ou num escapismo qualquer (na vida do espírito), a sua mutação, o seu devir animal? Será essa a finalidade desse arquivo imaterial e acumulativo que é a internet? Criar mundos sem carne? Ou, sem tirarmos os pés do chão, vir a ser uma reserva da memória de seres que desapareceram? Ou, afinal, tudo não passa de um sonho?

A presença do humano na exposição é tímida. Surge apenas intuída na própria fabricação das obras ou representada na figura do visitante.

É ele que ativa a luxuriante instalação VOCODER & CAMOUFLAGE, de Jonathan Uriel Saldanha, fazendo-a expelir aromas, luzes e sons, cores sobre a folhagem, o chão e as paredes. É a única obra que traz para a exposição matéria viva, orgânica, senciente e não senciente (replicando a ação/manipulação humana sobre o mundo natural), sublinhado uma vertigem que diante das esculturas de José Pedro Croft se tornará reveladora: na sua desconcertante e leve geometria são elas que nos dizem que estamos ali.

 

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No segundo piso, a relação entre as peças torna-se mais elusiva, como se alguma coisa a fragmentasse em direções múltiplas. E, sob a olhar das esculturas fotografadas por Vasco Araújo, vai-se tornando mais centrada na experiência quase fenoménica das coisas, sem que os contextos históricos ou políticos desapareçam (como nota, aliás, o trabalho do vencedor, em 2002, do Prémio EDP Jovens Artistas). Emergem, então, trânsitos, movimentos circulares entre a obsolescência dos frigoríficos de Igor Jesus e a melancolia do ritual no filme de Salomé Lamas, entre Le Moiret de Alexandre Estrela, a inventar uma passagem no espaço, e o espelho coberto pela pintura queimada de Mauro Cerqueira.

Na sequência final, a exposição declina-se em dois momentos que enfatizam a dialéctica que se joga entre as obras e a perspetiva autoral de João Laia. O primeiro consiste na intervenção da cor e do som da instalação de Diana Policarpo (vencedora do Prémio EDP Jovens Artistas 2019) sobre a escultura de Gonçalo Sena, que ilide as fronteiras entre o artificial e geológico. A segunda, na proposta de Priscila Fernandes: a artista apropria-se de uma pintura de 1890 de Paul Signac para aproximar utopias políticas e novas formas de percecionar um mundo em profunda transformação. É no centro dessa confluência que se coloca espacialmente o espectador, convidando-a a imaginar correspondências entre regimes visuais diferentes (o da pintura neo-impressionista e o da escrita digital) e o significado político e estruturante da experiência das imagens. É precisamente essa situação intelectual e sensível que Ponto de Fuga reivindica e encena, um choque entre passado e futuro. Em que os estilhaços são as obras.

Uma nota final: na noite do dia 1 de Junho, a inauguração das obras do segundo piso incluiu a realização de performances por Nuno da Luz, Joana da Conceição e Jonathan Uliel Saldanha.

Ponto de Fuga

José Marmeleira. Mestre em Comunicação, Cultura e Tecnologias da Informação (ISCTE), é bolseiro da Fundação Para a Ciência e a Tecnologia (FCT) e doutorando no Programa Doutoral em Filosofia da Ciência, Tecnologia, Arte e Sociedade da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, no âmbito do qual prepara uma dissertação em torno do pensar que Hannah Arendt consagrou à arte e à cultura. Desenvolve, também, a actividade de jornalista e crítico cultural independente em várias publicações (Ípsilon, suplemento do jornal PúblicoContemporânea Ler).

 

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Ponto de Fuga | Vanishing Point. Vistas gerais da exposição no Torreão Nascente da Cordoaria Nacional. © Fotos: Guillaume Vieira. Cortesia da Galerias Municipais / Egeac.

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