Parting with the Bonus of Youth — Maumaus as Object
O que encontra o espectador em Parting with the Bonus of Youth — Maumaus as Object? Objectos de uso ou objectos artísticos? Obras anónimas ou com autoria? A bem dizer, estas perguntas são comuns no discurso da arte contemporânea, mas há algo de peculiar na insistência com que aparecem na Galeria Avenida da Índia. Para começar, esta é uma exposição da Maumaus. Ou seja, é uma exposição pensada e materializada por uma escola. Mas em que sentido? O que significa, neste contexto, a palavra escola? Um espaço em que a relação entre professores e alunos é determinada por uma série de procedimentos que visam um fim? Ou antes, um lugar de conversa e debate, onde os conceitos e ideias são escrutinados pelo pensar, por vezes sem se alcançar qualquer consenso ou resposta definitiva? A segunda hipótese parece a mais adequada à experiência que a exposição proporciona: a de um encontro com as perplexidades que são a arte, o objeto de arte, o artista e o curador. Portanto, Parting with the Bonus of Youth — Maumaus as Object coloca o espectador no centro de uma discussão. Abreviando, é ela própria uma discussão se e quando ativada pelos espectadores. Ela só acontece se os objectos, que existem entre os visitantes e a escola forem vistos, comentados, pensados. É nesse momento que a indecisão, provocada pela falta de corrimãos conceptuais, se instala. O que se está a ver?
A funcionar desde 1992, e dirigida por Jürgen Bock, a Maumaus é uma escola, mas, também, uma instituição que pensa e concebe exposições. Como tal, possui uma história de afinidades e sensibilidades, de encontros, de conversas que reverberam na Galeria Avenida da Índia. Por exemplo, percebem-se referências subtis a Allan Sekula, num reclamo luminoso, a Manthia Diawara, naquilo que esse reclamo anuncia, ao Lumiar Cité, numa vista fotográfica da Alta de Lisboa (como se fosse uma passagem para aquele espaço, como se dali o pudéssemos avistar), ao trabalho do etno-poeta alemão Hubert Fichte, nas palavras que podem ser lidas num ecrã de um televisor plasma. Mas o olhar não é retrospectivo e a perspectiva nada tem de antológica. Se é importante considerar a presença destes ecos, eles não esgotam o sentido da exposição. Por outro lado, a Maumaus existe em Lisboa, numa realidade específica e em transformação. Ou seja, não é alheia à influência dos fenómenos sociais, políticos e económicos do contexto em que está inscrita. Envolvida no tecido das relações sociais, testemunha, na condição de agente artístico, o que nelas acontece e aparece. E testemunhando-as, reflecte-as. Note-se a presença de uma reprodução de um cubo luminoso que pode ser visto no Museu do Benfica ou de um toldo envelhecido de uma café-restaurante que em breve pode desaparecer da cidade de Lisboa. Não será disparado concluir que a primeira peça, aludindo ao minimalismo ou à Brillo Box de Andy Warhol, surge deslocado do seu sítio original, como um comentário irónico à propaganda da competitividade (ou à degradação hodierna, via mercantilização, da escola). Ou que o toldo, na sua irremediável pobreza, é uma coisa supérflua face ao inelutável progresso do crescimento. Com um pouco mais de imaginação, até se pode interpretar o texto da exposição (colado na parede) quase na totalidade traduzido para mandarim (as excepções são os nomes próprios das assinaturas), como vindo de um futuro não muito distante.
Mas também é pertinente olhar para estas peças, sem tentar tornear a sua opacidade, vê-las sem leituras normativas ou classificatórias. Insistir não em dizer aquilo que são, carregando-as de significados autoritários, mas em perguntar — o que são ou podem ser? — admitindo a ignorância, o desconhecimento ou, pelo menos, a dúvida. Alguns momentos da exposição sublinham a ansiedade associada a estes estados. E de novo a presença de objetos sem uma natureza fixa, de pequenas e subtis intervenção no espaço. Um dos conceitos evocadas é o de objetos de interesse, termo proposta pelo artista, cineasta, teórico e crítico Allan Sekula (1951-2013) para designar artefactos não-artísticos mas que dialogam em termo museológicos com as obras de artistas. Uma outra interpretação, que aqui se experimenta, para esta noção pode ser de natureza política: esses objectos estão entre (inter-esse) a arte e a política, o museu e a realidade exterior. Separam e aproximam o espectador, e nesse movimento abram um espaço de pensamento, engendram um processo de reflexão que é conceptual e sensível, intelectual e sensorial.
A entrada da exposição tem um aspecto que é familiar ao visitante de certo tipo de eventos: chão alcatifado (como nas feiras de arte), um espaço de atendimento e uma sala escura na qual está a ser projectado um filme (há luzes, há sons). Nas paredes à volta, vêem-se superfícies brancas e geométricas (de madeira prensada) emolduradas em três séries. Sem conteúdos, são formas produzidas industrialmente que exibem a sua alva e banal perfeição. Algumas decoram a entrada para a sala escura onde o visitante vai encontrar, literalmente, imagens em movimento; não num loop, mas no streaming do canal de notícias Inglês Sky News. Uma situação que começa por ser familiar, rapidamente se torna deceptiva. No lugar de uma obra, e sem qualquer didactismo arrogante, está uma representação ideológica do mundo que tem efeitos políticos no mundo. Correndo como um fluxo, o directo da televisão lembra ao espectador o tempo em que ele vive, na expectativa de que possa vir a encontrar ferramentas para o pensar e contestar.
Esta componente crítica (não apenas das condições da arte, mas também do mundo) percorre toda a exposição, mas sem apontar direcções ou desígnios.
Prefere as perguntas, a indeterminação, os intervalos. A dissensão da discussão. Os nexos que as peças entre si estabelecem não são explícitos ou ilustrativos. É ao espectador que cabe explorá-los e, em certa medida, construí-los. Por exemplo, entre o Escarrador John Bull (1890), de Rafael Bordalo Pinheiro e o letreiro que anuncia o filme de Manthia Diawara ou entre o som da peça de João Viotti e a “ameaçadora” e disfuncional tomada elétrica que a Maumaus instalou na parede. Ou no interior de uma mesma peça, como é o caso da Biblioteca Enver Hoxha.
Mencionou-se em cima que também há uma reflexão sensível, e não apenas teorizante, em Parting with the Bonus of Youth — Maumaus as Object, e com efeito ela está presente, sobretudo quando o seu fim se avizinha no espaço (mencione-se a efemeridade singular desta exposição: muitos dos objetos não regressarão a um espaço de arte. Ela é em si performativa, um desempenho irrepetível). Vêem-se reclamos luminosos, uma pintura mural, um toldo, uma bancada de cinema. De alguma forma, é como se os objectos pudessem deslocar o espectador para dentro da cidade, com os seus cenários, espaços, luzes, experiências. Entretanto, e feito o percurso, diante de um conjunto de cercas encostadas à parede, sob a melancólica luz verde de néon, ele pode fazer o caminho inverso e sair. Ou, em alternativa, assistir ao filme Reformzirkus de Alexander Kluge e participar no tempo de reflexão que ele reivindica sobre as condições sociais, políticas, económicas de produção e recepção das imagens e dos objectos. Antes de voltar à exposição, com as mesmas e renovadas perguntas.
José Marmeleira. Mestre em Comunicação, Cultura e Tecnologias da Informação (ISCTE), é bolseiro da Fundação Para a Ciência e a Tecnologia (FCT) e doutorando no Programa Doutoral em Filosofia da Ciência, Tecnologia, Arte e Sociedade da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, no âmbito do qual prepara uma dissertação em torno do pensar que Hannah Arendt consagrou à arte e à cultura. Desenvolve, também, a actividade de jornalista e crítico cultural independente em várias publicações (Ípsilon, suplemento do jornal Público, Contemporânea
Parting with the Bonus of Youth — Maumaus as Object. Vistas gerais da exposição na Galeria Avenida da Índia / Galerias Municipais / Egeac. Fotos: DMF. Cortesia de Maumaus/Lumiar Cité.