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Filipa César — Crioulo Quântico e Op-Film: Uma Arqueologia da Óptica

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Maria Beatriz Marquilhas

O algoritmo da relação

Vem então o tempo em que a Relação já não se anuncia através de uma série de trajectórias, de itinerários que se sucedem ou se contrariam, mas, por si mesma e em si mesma, explode, qual trama inscrita na totalidade suficiente do mundo.

Édouard Glissant

A linguagem é uma trama, um enredo que se vai formando a partir de elementos universais — um eco, uma linha — para se inscrever no tempo e no espaço, num exercício que requer a habilidade de um artesão. Filipa César dá a ver as células de organismos mutantes, como os sistemas linguístico e óptico, para interrogar os seus substratos, abrindo possibilidades de reescrita. Em dois espaços da cidade de Lisboa, dois momentos expositivos da artista e cineasta — Crioulo Quântico, no Espaço Projecto da Fundação Calouste Gulbenkian e Op-Film: Uma Arqueologia da Óptica, com Louis Henderson, no Hangar, Centro de Investigação Artística, — partilham uma metodologia assente em investigação, aliada a uma visão crítica, férteis para a criação de constelações visuais e teóricas.

Crioulo Quântico é um projecto que desenvolve uma triangulação entre os conceitos de trama têxtil — através da produção artesanal guineense dos panu di pinti (panos de pente) —, trama linguística (e cultural), do crioulo guineense, e trama computacional. O filme é projectado numa tela que constitui o epicentro de numa instalação de prateleiras em madeira, sobre as quais estão dispostos, dobrados ou pendurados, os coloridos panos de pente, e diversos objectos relativos à sua produção, como rolos de linha, esteiras, a fibra do tronco de uma palmeira ou uma flor de algodão.

Nos dois cantos da sala, duas mesas expandem o momento expositivo ao convidar o visitante a sentar-se. Numa delas, diversas publicações sobre o tema, de dicionários de crioulo a obras de autores como Édouard Glissant, Wade Davis ou Hui Kyong Chun (que participa no filme) são apresentadas para leitura. A outra disponibiliza um texto escrito pela artista, que parte de dois mapas: um apresenta as rotas de diversos furacões atlânticos, o outro documenta o trajecto do furacão Irma, uma onda tropical que, em Setembro de 2017, se formou na costa ocidental africana dando origem ao segundo maior furacão do Oceano Atlântico já registado, que acabaria por atingir a costa leste dos Estados Unidos. As travessias destas enormes massas de ar, muitas delas com efeitos catastróficos sobre as populações costeiras atingidas, surgem como reverberações das rotas dos navios negreiros, num remapeamento — agora desenhado por forças naturais —  da que ficou conhecida como “passagem do meio”; um percurso a que Glissant dá o nome de "fibrila", “uma fibra vívida, uma criatura que evolui a partir de fluxo e recorrência”.

Crioulo Quântico (2019) é, antes de mais, uma confluência de vozes. No filme-ensaio, narrativas e testemunhos ligados ao surgimento e à manufactura dos panos de pente, ao passado colonial da Guiné-Bissau e à sua neo-colonização por um sistema global capitalista articulam-se com leituras performativas, apresentadas por autores como Odete Semedo, Marinho Pina, Olivier Marboeuf, Wendy Hui Kyong Chun, Nelly Yaa Pinkrah e Joana Barrios, entre outros, e filmadas em Janeiro na Haus der Kulturen der Welt, em Berlim. Com a plasticidade visual de um palimpsesto, o filme sobrepõe às imagens captadas gráficos, esquemas e grelhas digitais que se multiplicam e que parecem invadir a tela, por vezes pontuada por strobes de luz. O tom maquínico de algumas das leituras contrasta com a teatralidade de outras e com as imagens de uma ruralidade insular. Na génese destas aproximações encontramos a linguagem em permanente possibilidade de ser reescrita.

Historicamente associadas às vivências domésticas e a uma sensibilidade e intuição femininas, as práticas têxteis são operações lógicas que partilham a sua genealogia com os processos algorítmicos da computação. O exercício de criar uma superfície a partir da combinação, mais ou menos complexa, de dois elementos cromaticamente distintos enuncia uma “poética da relação” que permite pensar criticamente o processo da crioulização, definido por Èdouard Glissant como “o choque mais totalmente conhecido entre os poderes do escrito e os impulsos da oralidade" e estabelecer afinidades com o código binário computacional, um enunciado em permanente metamorfose, espécie de organismo vivo, reescrito a cada leitura. Para o autor francês, o símbolo mais evidente da crioulização “é o da língua crioula, cujo génio consiste em abrir-se sempre, ou seja, em só se fixar segundo sistemas de variáveis que teremos tanto de imaginar como definir." [1] Linguagem e tecelagem são aqui abordadas como “técnicas culturais" [2] “interligadas por cadeiras de elementos híbridos”, equivalentes no modo como articulam matéria e forma.

As leituras apresentadas criam ligações entre a teoria do fetichismo da mercadoria na sociedade capitalista, desenvolvida por Marx, e o animismo, também presente nas lendas associadas aos panos de pente. Na teoria de Marx, o fetichismo é uma relação social mediada por coisas, na qual o processo de produção se torna autónomo relativamente à vontade do ser humano. Num movimento circular, a dissolução das diferenças entre mercadoria e humano recoloca-nos na realidade do comércio de escravos, no qual este animismo se inverte, pela atribuição, ao humano, do estatuto de mercadoria. A alienação do humano outrora tornado mercadoria é a mesma que agora cede à mercadoria uma autonomia vivificante, dotada de uma vontade sem lei. 

Numa abordagem comprometida, a artista explora as similaridades entre a abstracção binária de uma prática artesanal com cinco séculos, fortemente enraizada nas comunidades onde se desenvolve, e a do algoritmo computacional como protagonista de um sistema capitalista cada vez mais tecnológico, em que o elemento humano se tornou alienável. A mesma matriz generativa é explorada, nas suas duas forças antagónicas: se uma humaniza, a outra é potencialmente desumanizadora.

 

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Se Crioulo Quântico é já uma chegada, a entrada num território particular, Op-Film: Uma Arqueologia da Óptica, situa-nos na travessia que sempre a precede, na aproximação que permite avistar uma linha costeira. Esta segunda exposição aborda as tendências ideológicas que determinam o desenvolvimento dos instrumentos de orientação e vigilância, sobretudo no contexto da navegação. A arqueologia traçada estabelece uma causalidade entre a visibilidade — e a iluminação que a torna possível — e uma compreensão dominadora relativamente ao que é visto.

Em Sunstone (2017), aos testemunhos de Roque Pina, faroleiro-chefe do Farol da Roca, associam-se filmagens subaquáticas e imagens criadas digitalmente em 3D, bem como imagens de arquivo ligadas ao movimento artístico Op art na Cuba pós-revolucionária, uma corrente cuja força política é inseparável da ideia de uma ilusão de óptica. A combinação de diferentes suportes de captação de imagem permite acompanhar uma trajectória dos modos de ver, na qual à visibilidade é implícita uma ideia de captura e de possessão, de ocupação visual de um território, que fica dominado pela sua imagem. O filme, que integrou a programação do DocLisboa em 2018, é agora apresentado com Refracted Spaces (2017), uma instalação que reúne documentos relativos à investigação, imagens de arquivo, mapas marítimos, plantas de faróis, livros e textos, sobre uma mesa, sobrepostos por fragmentos de lentes de Fresnel, as lentes utilizadas nos faróis de sinalização marítima.

Por oposição a uma superfície exposta à luz e ao olhar, o fundo do oceano surge como lugar-fronteira da visibilidade. Resguardado pela ausência de luz e inalcançável até recentemente, é hoje habitado por uma panóplia tecnológica que permite colonizar até as áreas mais recônditas do mundo subaquático. A imagem da "fibrila" de Glissant, a tradução gráfica de um trajecto marítimo repetido exaustivamente, volta a ser central em Sunstone. O território mapeado por essa "fibrila" — o oceano Atlântico — está hoje detalhadamente cartografado, numa conquista do suposto inviolável.

Nos mitos do Afrofuturismo, um termo cunhado por Mark Dery em 1993, as profundezas dos oceanos anunciam-se como topografia de eleição para a redenção do passado. Um desses mitos acredita na existência de cidades no fundo do mar, "Atlântidas" erguidas pelos filhos dos escravos, que nasciam nos navios negreiros para serem de seguida atirados ao mar, e que teriam desenvolvido a capacidade de sobreviver no meio aquático. Estes seres mutantes superpoderosos, filhos do passado, submergiriam para libertar os negros da sua condição. [3] Hoje, estas mesmas planícies subaquáticas são mensuradas e filmadas, os seus níveis e componentes são monitorizados ao detalhe e financiam-se estudos para a exploração dos seus recursos. Mas, até hoje, nenhuma sonda sonhou uma cidade.

Filipa César

Fundação Calouste Gulbenkian

Hangar, Centro de Investigação Artística

Maria Beatriz Marquilhas. Licenciada e mestre em Ciências da Comunicação pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, tendo-se especializado em Comunicação e Artes com uma dissertação sobre o conceito na experiência artística. Contribui regularmente com artigos e ensaios para revistas. Vive e trabalha em Lisboa.

 

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Imagem de capa e primeiro bloco de imagens: Filipa César, Crioulo Quântico, stiil do filme. Vistas gerais da exposição no Museu Calouste Gulbenkian. Cortesia da Fundação Calouste Gulbenkian.

Último bloco de imagens: Vistas gerais da exposição OP-Film: Uma Arqueologia da Ótica de  Filipa César e Louis Henderson. Hangar, Centro de Investigação Artística. Fotos: João Ferro Martins. Cortesia de Hangar.


Notas:

[1] Édouard Glissant, Poética da Relação. Sextante Ed., Lisboa, 2011.

[2] Bernhard Stiegert, "Após os Média. A textilidade das técnicas culturais" in Tecnologias Culturais e Artes dos Media, UnYLeYa e CECL, Lisboa, 2016.

[3] Sobre as narrativas mitológicas do Afrofuturismo na música e, em particular na dupla de Detroit Drexciya, veja-se Afrofuturism and the Myth of Drexciya, disponível aqui.

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