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Panorama: fantasmas latentes

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Paula Nascimento

“aqui tudo parece

que era ainda construção

e já é ruína”

Caetano Veloso

 

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Mónica de Miranda, Cinema Karl Marx, da série Cinema Karl Marx, 2017. Vista da exposição Tyburn Gallery. Cortesia da artista e Tyburn Gallery.

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Qualquer conversa ou reflexão sobre a história da arquitectura e do Urbanismo em Angola não pode iniciar sem que se reflicta sobre o projecto colonial e o seu impacto na formação das cidades Angolanas.

Por um lado, podemos afirmar de forma mais geral que qualquer cidade é fruto de uma articulação do tempo – passado, presente e futuro, e como tal um objecto de múltiplas identidades e experiências; por outro lado, esta interacção nem sempre acontece de forma pacífica.

A história das cidades em Angola é, como diz Isabel Castro Henriques “a expressão de um processo de domínio colonial, revelado na materialidade do espaço urbano e dos seus edifícios, assim como na organização social, permeável aos ritmos da história económica e política”. O processo de urbanização foi um dos princípios activos da política do Estado-Novo e permitiu e legitimou um processo de produção arquitectónica e urbanística que, no contexto Angolano, deu origem a obras que contêm em si uma linguagem estética particular, tropicalista, assente em princípios da arquitectura do movimento moderno, adaptados ao lugar, à geografia e ao clima locais.

Este legado arquitectónico Moderno-Tropical não representa de todo os princípios colonialistas do Estado novo, e serviu de base para uma ruptura e para a construção de uma narrativa de um ideal de sociedade igualitária e democrática que nunca realmente se instalou. Não só o plano urbanização significou um apagamento dos lugares existentes e a imposição de novos ideais de sociedade, como a utopia de liberdade do movimento moderno aqui, falhou consideravelmente.

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Mónica de Miranda, Ticket Office, da série Cinema Karl Marx, 2017. Vista da exposição Tyburn Gallery. Corteaia da artista e Tyburn Gallery.

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O período pós-independência vê o surgimento de outras edificações, reflexo de novas ideologias políticas Marxistas, tais como complexos habitacionais construídos por Russos e por Cubanos, entre outros.

Após o término da guerra civil, Angola viveu um boom económico, resultado da subida do preço do petróleo e da emergência de um modelo económico capitalista. Estas mudanças permitiram o florescimento de projectos sob a sigla da reconstrução nacional, como grandes projectos habitacionais, infra-estruturas; e também de projectos grandes imobiliários de cariz privado.

O surgimento e escala dos novos projectos imobiliários e no campo da intervenção urbana é proporcional ao estado de abandono em que se encontra o legado arquitectónico. A ineficácia de projectos de preservação e/ou ao restauro das antigas edificações, neste contexto, não se restringem a concepção e ao restauro técnico, mas esbarram em questões políticas e desinteresse económico, assim como na impossibilidade de dissociar o património edificado do seu contexto histórico.

Restaurar aqui não significaria somente a recuperação das formas edificadas, mas um olhar crítico para à história e o estabelecer de uma dialéctica entre o passado e o futuro, estabelecer laços entre a forma edificada e novos usuários, a criação de novas memórias.

Estes conceitos, apesar do muito que se têm discutido em relação ao património edificado, acabam atropelados por interesses comerciais e por uma relação conflituosa com a história – se o legado arquitectónico representa ainda um passado que se quer cada dia mais distante, os crescentes arranha céus e centralidades são o simulacro da “nova angola”, carregam um subtil desejo de apagamento da história e da memória.

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Resquícios dos diferentes intervenientes – políticos, económicos e sociais são visíveis e materializados na morfologia das cidades, é o que as torna singulares; é também nestes espaços que se desenham (novas) relações de identidade, cada vez mais distintas e singulares, fruto da acção da memória de diferentes grupos socais.

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Mónica de Miranda, Untitled, from the series Fall, 2017. Vista da exposição Tyburn Gallery. Corteaia da artista e Tyburn Gallery.

É esta geografia de tensão entre o passado presente e um presente incerto, com as descontinuidades espácio-temporais, típicas das locações trans-históricas (pós-coloniais) que servem de ponto de partida para Panorama, o projecto de investigação pós-arquivo de Mónica de Miranda, e que explora as ligações passadas e presentes de memórias coloniais e pós-coloniais. Trabalhando com e sobre uma multiplicidade de meios – fotografia, vídeo e instalação – a artista cujo percurso académico e artístico se articula à volta de temas como arqueologias urbanas e geografias pessoais desenha um processo crítico de desconstrução histórica e (re) construção da memória colectiva Angolana.

Panorama é o título do projecto e também o icónico hotel construído na década de 70 na Ilha de Luanda, com uma vista panorâmica sobre à Baía de Luanda e sobre o Mar, um dos mais emblemáticos e charmosos hotéis em Luanda, há muito desactivado e relegado ao abandono. O hotel traz consigo a simbologia da viagem, dos trânsitos diaspóricos, é um dos elementos arquitectónicos recorrentes nas explorações da artista. Em Hotel Globo (2015), o edifício adquire um status de quase resistência às mudanças aceleradas em seu redor; Panorama materializa a decadência, é um navio naufragado, resignado à própria sorte.

A dualidade entre passado e presente (e futuro), permeia o projecto como um todo, e está patente em obras como Fall (Queda) ou Angolan House (Casa Angolana). A primeira uma alusão directa à queda do império e ao contexto para o qual somos transportados, as quedas de Kalandula. Aqui, uma antiga pousada colonial, engolida pela natureza. A paisagem repousa intacta e imponente e absorve a arquitectura “estrangeira”.

A segunda remete imediatamente à “Casa Portuguesa”, reflexo do debate sobre a identidade política, cultural e artística e das manifestações de procura de uma identidade original portuguesa. Aqui, somos confrontados com a ideia de uma casa Angolana, totalmente preservada, mas que não se assume completamente como tal. A Casa Angolana é moderna e reflexo do debate sobre a origem desta arquitectura e sua autenticidade. O tratamento dado às imagens, com uma intervenção em cera dão às imagens uma dimensão temporal de eternidade, remetendo à urgência de preservar o estado físico e consequentemente, a memória.

A inclusão de personagens como as Gémeas em “Karl Marx” e “When words escape, flowers speak” amplificam o significado de identidade, gémeas carregam em si uma dupla identidade que confunde ou se sobrepõe, mas é sempre distinta e individual; a ficcionalização da história com micronarrativas acrescenta dimensões temporais que remetem não só ao passado colonial, mas também à história mais recente de Angola e ao futuro.

Panorama não é uma arqueologia urbana, nem somente uma meditação sobre a presença dos passados coloniais em contextos pós-coloniais, sobre a memória individual versus memória colectiva. As imagens não são um registo, elas existem num espaço fronteiriço, que permite uma reflexão mais ampla sobre estratégias de formação das identidades individuais e colectivas que, tal como antecipado por Homi K. Bhabha “initiate new signs of identity, and innovative sites of collaboration, and contestation in the act of defining the idea of society itself”.

Ao sublinhar a forma como o império adquiriu uma feição material no quotidiano urbano, permeando e condicionando o imaginário colectivo, Panorama revela fantasmas latentes, por vezes escamoteados pela aceleração do tempo e do espaço e lembra-nos a necessidade de distintas interpretações da realidade envolvente, e de se concentrar nos momentos produzidos na articulação de diferenças culturais enquanto momentos de confronto, em contraponto com a amnésia histórica, cruciais para a construção de um Estado Nação.

Paula Nascimento

 

Mónica de Miranda

Tyburn Gallery

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Mónica de Miranda, When words escape, flowers speak, da série Twins Cortesia da artista e Tyburn Gallery.

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Mónica de Miranda, Plateau, da série Cinema Karl Marx, 2017. Vista da exposição Tyburn Gallery. Corteaia da artista e Tyburn Gallery.

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Mónica de Miranda, Pool, da série Swimming Pool, 2017. Corteaia da artista e Tyburn Gallery.

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Mónica de Miranda, Fall, da série Fall, 2017. Corteaia da artista e Tyburn Gallery.

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