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Espaço de Fluxos

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Sara Castelo Branco

A expressão latina manus, ‘mão’, cinge a génese comum das palavras verbais manifestar e manipular – enunciações que, embora com aparentes sentidos dissemelhantes, determinam-se em significados paralelos na sua ascendência: se a primeira, acrescenta ao manus, o festus (“agarrado, apanhado”) – o que se prende com a mão; a segunda, une-lhe o pleo (encher) – aquilo que se sustém na mão ou que pode ser contido e maquinado por ela. É assim deste modo simultâneo entre a manifestação (dúplice e potencial da obra), e a sua possível manipulação (aludida, por exemplo, num maneio perceptivo sobre ela) que deriva Espaço de Fluxos (2017) de Diogo Evangelista (Lisboa, 1984), uma exposição que, principiada e findada pela comparência das mãos, molda-se em torno das noções de percepção e abstracção. As mãos assomam, assim, em Espaço de Fluxos como motores e formas de convergência magnética de potência psíquica, que imbricadas numa evolução biológica, antrópica, técnica, e, por fim, simbólica, revelam uma sutura inerente entre o corpo e a técnica. Implicando-se portanto numa passagem do biológico ao técnico, do óptico ao háptico, do arcaico ao contemporâneo, a presença das mãos parece versar, identicamente, a relação entre a vontade do artista e o movimento emancipado das imagens, evocando os enredamentos desta era de transversalidades na qual se tenta articular o passado analógico com o presente digital, detido também neste trânsito de uma humanidade que sempre perdurou no curso de se encontrar.

A exposição Espaço de Fluxos, presente na Galeria Zé dos Bois, numa curadoria de João Laia realizada no contexto da BoCa – Bienal de Artes Contemporâneas, cumpre-se em ordens distintas, embora intrinsecamente relacionadas, que vão da relação entre a exterioridade da figura humana à intangibilidade da sua representação interna em ideias como a invisibilidade e a introspecção. A exposição procura constituir-se numa experiência perceptiva imersiva, praticada na convergência entre o abstracto, o concreto e o real. Abordando o carácter eminentemente abstractizado da própria expressão perceptiva – sem olvidar que toda a imagem é a percepção de uma imagem –, a forma instalativa da exposição, engendrada entre Evangelista e Laia, reúne trabalhos antigos e inéditos, embora não se encerre na circularidade da retrospectiva, abrindo-se antes na potencialidade da re-significação, assumindo como fio condutor as dissemelhanças entre as obras para concretizar um exercício de inversão da experiência que, anteriormente, estas tinham gerado: trata-se não apenas da afirmação do corpo-identidade próprio de cada obra, mas também de lhes dar outras possibilidades de ser-estar-agir, concebendo-as assim numa dimensão curto-circuitada, descontínua e potencial.

O trabalho de Diogo Evangelista tem vindo a desenvolver-se numa indagação sobre as circunstâncias de produção, difusão e recepção das imagens, interpelando uma exploração do potencial da imaginação humana, através de perspectivas especulativas acerca do real e da cognição humana. Para Espaço de Fluxos, o artista e o curador idearam um percurso que convoca a ciclicidade, através de uma série de obras que concentram um ritmo de fechamento circular, manifesto na presença da representação de um agigantado disco compacto, de uma bicicleta invertida ou de uma sombra-escultura suspensa e rotativa. Num movimento cíclico entre a inércia da escultura e o objecto em movimento, Roda Gira (2017) indaga a triangulação entre o corpo, a mecânica e a visibilidade, utilizando uma bicicleta para gerar imagens a partir de energia física que deriva aqui de uma ligação entre corpo e mente. Roda Gira é uma obra activada em performance, numa acção constituída por gestos repetitivos que emitem espirais de luz – embora a peça se encontre, sobretudo, no seu estado em repouso, ou seja, como escultura em potência, num sistema latente que existe antes e depois, activo e desactivado. Se a bicicleta e os rolos sugerem uma ideia de velocidade e rotatividade, a forma imobilizada da obra convoca um particular compromisso com a potencialidade da imaginação – um encontro com o presente e o passado da peça que nasce da estrutura especular da mesma: um dispositivo dúplice de execução e peça escultórica, latência e acção, em negativo e a positivo. Por outro lado, esta performance-instalação apresenta-se sob um chão quadriculado, parecendo convocar um jogo cinético axadrezado, bem como, de acordo com o artista, a evocação de uma ideia de transcendência ritualística de transformação, utilizada frequentemente em ambientes isotéricos que procuram praticar viagens inter-dimensionais de comunicação.

Convocando uma mesma ideia-arquétipo hipnótica da mão manifesta em Sem Título (Mão #1) (2014), o vídeo Sem-Título (Mãos) (2017) assoma desta circularidade da exposição, onde uma peça leva sempre a outra, aqui, especificamente, na evocação do esforço físico da performance de Roda Gira e na presença de luvas brancas, que existem também para amplificar o som gestual do filme. Propondo um momento de pausa e introspecção hibridado entre o corpo e o espírito, este vídeo apresenta uma visão fragmentada, ampliada e subjectiva das mãos – convocando um devir háptico onde, tal como diagnosticou Walter Benjamin a propósito de dispositivos cinematográficos, a dimensão óptica se vê dobrada em dimensão táctil, culminando numa abstração do corpo e numa subjectividade imagética – que descrevem aqui uma série de movimentos de regularidade coreográfica visual e sonora, numa experiência próxima de “um sonho lúcido” hipnótico, ritualístico e xamânico.

Partindo da percepção como discernimento intrinsecamente abstracto através da relação com universos científicos, Volunteers (2016) acentua esta subjectividade perceptiva também por via da montagem da peça, onde o primeiro contacto do visitante com a mesma acontece de forma invertida, na medida em que esta se encontra disposta em sentido inverso, num movimento do fim para o início. Ao alterar a leitura original da obra, que só é vista de frente ao retorno do visitante, Volunteers não apenas se inscreve na forma circular da exposição, onde um antes se torna depois e o depois se torna antes, como versa a própria narrativa inscrita na obra, que também trabalha um certo deslocamento do aparato perceptivo do sujeito. Volunteers parte de uma terapêutica proposta por uma farmacêutica a um grupo de voluntários diagnosticados com depressão, tendo por objectivo introduzir-lhes doses medicinais de psilocibina – substância natural e alucinogénia, que origina distúrbios sensoriais e visuais –, com o intuito de diminuir as causas incitantes da depressão, fazendo com que o cérebro gere mais ligações do que em estado normal. A obra parte formalmente de uma das questões realizadas durante o teste, onde se propunha que os voluntários associassem uma cor ao número cinco, sendo que todos, à excepção do placebo, mencionaram o azul. A associação entre cor e expressão subjectiva convoca, de acordo com o artista, essa “proposta futurista de sinestesia e hipersensibilidade”, onde um nível de abstracção pode ser transversal aos humanos, libertando-os de uma das doenças mais crónicas da sociedade contemporânea através de uma substância natural e proibida, associada ao consumo de drogas e aos rituais ancestrais devido ao seu efeito de sinestesia e desrealização.

Em valor de um sentido de suspensão, Volunteers assume uma natureza quase impalpável, incorpórea, como se estivesse simbolicamente a flutuar no espaço, parecendo portanto habitar simultaneamente entre o material e o etéreo. Esta duplicidade visual da obra parece interpelar fenómenos visuais como a anamorfose ou a diplopia – uma visão duplicada, fantasmagórica e repetida, que inscreve a percepção de duas imagens a partir de um único objecto. Deste modo, Volunteers convoca uma extensão comum na obra de Evangelista, que se relaciona com a reprodução de estados hipnóticos e de transe baseados numa relação corporal e visual como forma de questionar modos acostumados de compreensão. Neste sentido, de acordo com João Laia, a “prática de Evangelista posiciona o corpo como um instrumento expandido de consciência e, ao citar estados induzidos por drogas, quebra paradoxalmente o nosso modo mundano letárgico de interação com as imagens, fazendo de cada representação um novo objecto, sublinhando o seu potencial e estimulando a nossa lucidez.” Desta forma, esta expansão da consciência revê-se num "abrir as portas da percepção" afirmado por Aldous Huxley, onde o artista parece propor trabalhar sobre uma zona intermédia entre inconsciência e consciência racional – ou seja, o que está além do corpo e para além do corpo –, mas, acima de tudo, libertar-nos das primeiras imagens, para transformar as imagens: conceber um exercício livre de possibilidades do real. Se, como afirma Bernard Stiegler, "a percepção é um tipo de tela de projecção para a imaginação" – esta aufere, portanto, um carácter transcendente, no sentido que ultrapassa as potencialidades que surgem num primeiro plano, não esgotando a realidade daquilo que é percebido. Por outro lado, esta concepção transitiva de superação e deslocamento da transcendência parece manifestar-se em Espaço de Fluxos intimamente vinculada ao seu próprio antitético, a imanência, um principio igualmente metafísico que, ao invés de provir do carácter daquilo que tem uma causa que lhe é exterior e superior, designa a índole daquilo que tem em si o próprio princípio e fim, um existir ou permanecer no interior. Desta forma, a exposição realiza-se neste movimento simultâneo entre a interioridade e a exterioridade: uma projecção interior transcendente rumo a um sentido de superação dos limites perceptivos, e, por outro lado, o reconhecimento de uma realidade ou sentido da realidade, que sendo exteriores ao sujeito, por essa razão, o transcendem.

Numa dobra entre o físico e o virtual, a escultura Sem-Título (2017) é um retrato giratório formado por três perfis faciais que projectam três sombras simultâneas. Embora deferindo a incorporeidade da sombra, esta obra parece convocar a sua capacidade em deter uma percepção dos corpos em toda a sua extensão física e psíquica. A tridimensionalidade volumétrica do objecto e a sua projecção a negativo são mobilizadas num trânsito entre o olho e a mente, entre a experiência real e virtual: uma circularidade contínua de reflexos e duplos, inscrita numa imagem redobrada em constante movimento de rotação. Por outro lado, sendo o espelho e a sombra as mais paradigmáticas representações arcaicas do corpo, estas despontam ainda hoje como arquétipo essencial por via das mais avançadas tecnologias que “simulam os corpos no disfarce de sombras transitórias ou imagens insubstanciais de espelhos.”

Tal como a intangibilidade desta sombra projectada, e os ambientes isotéricos e alucinogénios já referidos, esta exposição parece inscrever uma utopia do transparente e do desaparecimento do visual pela convocação da atomização de fluxos, influxos e refluxos – onde a invisibilidade e a transparência tornaram-se figuras por excelência da estética contemporânea. É justamente neste contexto que se situa a denominação da exposição, uma apropriação do conceito ‘espaço de fluxos’ de Manuel Castells, que “descreve uma tipologia cultural de grande abstracção”. O conceito de ‘espaço de fluxos’ conceptualiza as configurações espácio-temporais estabelecidas pelo novo paradigma tecnológico, o qual permite interações síncronas à distância por meio de redes comunicacionais, determinando um desdobramento e aproximação imediata entre o espaço e o tempo, que se desenvolve dentro de uma lógica da indeterminação, volatilidade, efemeridade, incerteza, do que é instável e transitório.

Partindo de linhas perceptivas de proporções micro e macro entre o visível e a virtualidade, o vídeo 84% (2016) ficciona a actividade de um laboratório científico, oscilando entre diversas imagens numa gradação de perspectivas entre o humano e o microscópico. 84% é exibido num pequeno e discreto tablet, divergindo assim da sua apresentação anterior realizada num ecrã de grandes dimensões, para se inverter aqui no tamanho e na possibilidade sonora, na medida em que o som contamina toda a sala e os restantes trabalhos. O filme forma-se num jogo de montagens interiores e exteriores, bem como focalizações e des-focalizações que oscilam entre imagens de peixes que contêm uma proteína florescente e uma chuvosa Times Square. Este entendimento entre imagens exteriores e outras de índole interna, parece versar certas técnicas de intervenção visual sobre dimensões que, conservando-se intrinsecamente invisíveis, tornam-se observáveis pela utilização de instrumentos, usáveis tanto na biologia molecular como no espaço sideral – transfigurando, assim, a condição humana pelo diálogo entre o orgânico e o inorgânico, o natural e o artificial, a interioridade e a exterioridade. Tratam-se portanto de instrumentos que, não somente usam a tecnologia, como são inteiramente dependentes dela para volver esses mundos presentes à nossa visão. Por outro lado, e retornando ao trabalho sobre a expansão da consciência perceptível noutros trabalhos do artista, podemos também convocar aqui o conceito introduzido por Freud para identificar as alucinações, onde avança que a nossa relação com o mundo exterior depende da capacidade de distinguir as percepções das representações mentais, ou seja, o que acontece "fora" e o que acontece "dentro" de nós.

Assomando quase como prelúdio da exposição ao deter-se literalmente à frente da sua entrada, a impressão fotográfica An Individual Note on Images, Sounds and Technologies (2016), situa-se entre a falsa materialidade de um CD e a intenção espiritual da sua circularidade e espelhamento. A obra forma-se numa mise-en-abyme que perscruta a instabilidade tecnológica através do desequilíbrio da escala de um compact disc (CD) que “ilumina a sua constituição compósita entre profecia e memória”. Compreendendo uma dimensão utópica dos arquivos digitais de informação comprimida que aqui ninguém consegue aceder, Evangelista convoca este interface utilizado pela hipermédia – separador da fronteira do cá e do lá – numa relação que, de acordo com o texto da folha-de-sala, se relaciona com a mandala, um diagrama circular representativo das forças que regulam o universo usado como apoio à meditação. Desta forma, o CD torna-se aqui uma superfície simbólica para a contemplação, onde a sua ciclicidade espelha as propriedades meditativas da mandala: objecto que sendo uma manifestação espacial do mundo, é, simultaneamente, uma imagem psicológica de transcendência – um universo espiritual e material, que supera as oposições do múltiplo e do uno, do decomposto e do integrado, do exterior e do interior, do difuso e do concentrado. Desta forma, esta obra integra-se na índole das restantes imagens de Espaço de Fluxos que, num sentido de reversibilidade, parecem deter a capacidade de se potenciarem sempre a si mesmas, onde um novo sentido pode sempre nascer do sentido precedente, revolvendo-se assim em fluxos e refluxos, tensões e distensões, aproximações e distanciamentos.

[1] http://www.thenaked.nl/contributors/joao-laia/1984(tradução livre da autora)

[2] BELTING, Hans. Imagem, Mídia e Corpo – Uma Nova Abordagem à Iconologia. Revista de Comunicação,Cultura e Teoria da Mídia, São Paulo, Julho, 2006, nº 8, p. 44

 

Sara Castelo Branco

Doutoranda em Ciências da Comunicação/Arts et Sciences de L’Art na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas - UNL e na Université Paris 1 Panthéon-Sorbonne. Mestre em Estudos Artísticos – Teoria e Crítica da Arte pela Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto (FBAUP) e licenciada em Ciências da Comunicação e da Cultura (ULP). Na área da crítica e da investigação sobre as áreas do cinema e da arte contemporânea, tem colaborado regularmente com textos para revistas, catálogos e outras publicações de âmbito académico e artístico.

a autora escreve de acordo com a antiga ortografia 

 

Diogo Evangelista

ZDB - Galeria Zé dos Bois

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Diogo Evangelista. Espaço de Fluxos. Vistas da exposição. ZDB. Cortesia do artista e ZDB.

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Diogo Evangelista. Espaço de Fluxos. Vistas da exposição. ZDB. Cortesia do artista e ZDB.

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Diogo Evangelista. Espaço de Fluxos. Vistas da exposição. ZDB. Cortesia do artista e ZDB.

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