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Yo Nunca he Sido Surrealista Hasta el Día de Hoy

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Isabel Nogueira

A Galeria Oval do Museu de Arte, Arquitectura e Tecnologia (MAAT), tem presente uma exposição do artista cubano Carlos Garaicoa (n. 1967), com curadoria de Pedro Gadanho e Inês Grosso. Segundo as informações disponibilizadas no texto que recebe o visitante, trata-se de uma instalação, que inicialmente tomou forma numa maqueta, em 2008, tendo sido posteriormente adaptada ao espaço em questão. Por outras palavras, tenderá a ser um trabalho na linha do designado site-specific work of art, conceito – ou expressão – usado para referenciar obras de arte – normalmente instalações – construídas especificamente para o local onde são apresentadas, e que poderão ter um carácter mais ou menos duradouro.

Comecemos justamente pelo espaço expostivo, que não é um lugar fácil à partida, nomeadamente, pela forma ovalada de considerável dimensão e pelo modo como o visitante acede a ele: através da parte superior. O espaço do museu é, esclareçamos, uma singular, elegante e visualmente apelativa obra arquitectónica. Mas voltemos à questão do espaço interior, do espaço expositivo, que implica uma ocupação desafiadora, a qual, no caso desta peça, é francamente conseguida. E é efectivamente conseguida devido, de modo mais evidente, à grande dimensão da obra, que acompanha a dimensão espacial do lugar da exposição, mas também devido à curiosidade e expectativa que o visitante vai experimentando à medida que desce a rampa para aceder à totalidade da instalação. Ou seja, o espectador caminha no sentido de desvendar a obra, de a descobrir. Esta descoberta vai sendo pontuada pelas lâmpadas dos candeeiros de rua e postes de iluminação pública, que se vão apagando e acendendo, convergindo para a revelação do espaço arquitectónico – modificando-o ao interagir com ele –, e, naturalmente, da obra no espaço. Do ponto de vista da maneira de mostrar arte, nesta exposição, é um aspecto ganho.

Contudo, além da obra no espaço – questão relevante e implicativa nesta exposição, como já referimos –, importa igualmente entrar na obra em si. O título reporta-se ao surrealismo, ou, pelo menos, há uma clara referência ao surrealismo. Curiosamente, assinala-se um século sobre o aparecimento da palavra, ainda antes da publicação do Manifeste du surréalisme, de André Breton, no primeiro número de La Révolution Surréaliste, em 1924. “Surrealismo” parece ter sido usada pela primeira vez por Guillaume Apollinaire, em 1917, no contexto da apresentação do bailado Parade (1917) – coreografado por Léonide Massine, com libreto de Jean Cocteau, música de Erik Satie e figurinos, cenários e adereços de Picasso –, quando se referia a uma arte que ultrapassava a “superficialidade da aparência”. O “legado surrealista acolhido na peça”, como se observa no texto que apresenta a exposição, e que pretende estabelecer uma relação com “a crise bancária e ecológica global” não será absolutamente evidente, mas compreendemos que se relacionará com a perplexidade sentida pelo artista perante estas questões, nomeadamente, perante a crise financeira, ecológica e outras, que o planeta vive. Reconhecemos, contudo, e a título de paradigma, uma possibilidade de evocação do avião a destruir e a destruir-se do surrealista Max Ernst, autor da obra Murdering airplane (1920).

Outras problemáticas se vão levantado, como a proposta – e trata-se de algo bastante recorrente nas opções curatorias dos últimos anos, para não dizer décadas – de reflexão sobre o conceito de “antropoceno”, fortemente difundido nos anos noventa, entre outros, pelo cientista Paul Josef Crutzen, e que resumidamente adverte para as problemáticas do aquecimento global, para a escassez de recursos naturais e para o impacto sério da intervenção do Homem na Natureza. De resto, questões que Carlos Garaicoa se propõe trabalhar e que se afiguram efectivamente oportunas. Uma outra questão importa evidenciar na obra de Garaicoa, que tem que ver com a reflexão sobre as cidades, concretamente, sobre a arquitectura, os jardins e outros espaços verdes na vida da cidade e na relação com os seus habitantes. A este respeito, faz sentido evocar alguns teóricos das cidades e do Homem nas cidades, como o socialista utópico Charles Fourier e os seus “falanstérios”, ou seja, unidades harmónicas específicas de vida em comunidade. Finalmente, a pairar sobre tudo isto, a inevitável presença da recorrente ideia de falhanço da modernidade, que fora lançada em debate filosófico, de modo público, nomeadamente por Jean-François Lyotard na obra La condition postmoderne: rapport sur le savoir (1979).

Contudo, não obstante todas as importantes questões evocadas, sente-se que esta instalação habita artisticamente um limbo de difícil resolução. Quer dizer, nem se apresenta absolutamente impactante nem declaradamente subtil, poética, metafórica. Trata-se de uma exposição bem conseguida, que claramente funciona no espaço desafiador que a acolhe, de um trabalho que pretende levantar problemáticas importantes de fundo, mas que, como obra final, operatória, se situa num enfoque que não alimenta até ao final a conseguida antevisão e proposta iniciais que – bem – lançou.

 

Isabel Nogueira

(n. 1974). Historiadora de arte contemporânea, professora universitária e ensaísta. Doutorada em Belas-Artes/Ciências da Arte (Universidade de Lisboa) e pós-doutorada em História da Arte Contemporânea e Teoria da Imagem (Universidade de Coimbra e Université Paris 1 Panthéon-Sorbonne). Livros mais recentes: "Teoria da arte no século XX: modernismo, vanguarda, neovanguarda, pós-modernismo” (Imprensa da Universidade de Coimbra, 2012; 2.ª ed. 2014); "Artes plásticas e crítica em Portugal nos anos 70 e 80: vanguarda e pós-modernismo" (Imprensa da Universidade de Coimbra, 2013; 2.ª ed. 2015); "Théorie de l’art au XXe siècle" (Éditions L’Harmattan, 2013); "Modernidade avulso: escritos sobre arte” (Edições a Ronda da Noite, 2014). É membro da AICA (Associação Internacional de Críticos de Arte).

a autora escreve de acordo  com a antiga ortografia 

 

Carlos Garaicoa

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Carlos Garaicoa, Vistas da exposição "Yo Nunca he Sido Surrealista Hasta el Día de Hoy". MAAT.  Fotos: Bruno Lopes. Cortesia de Maat.

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Carlos Garaicoa, Vistas da exposição "Yo Nunca he Sido Surrealista Hasta el Día de Hoy". MAAT.  Fotos: Bruno Lopes. Cortesia de Maat.

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