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Nasci num dia curto de Inverno

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Nuno Sousa Vieira. Vistas da exposição "Nasci num dia curto de inverno". Fundação Portuguesa das Comunicações. Foto: Nuno Sousa Vieira, Cortesia do artista.

José Marmeleira

Na sua nova exposição, na Fundação Portuguesa das Comunicações, Nuno Sousa Vieira restitui aos sentidos uma dignidade por vezes esquecida. Com uma experiência das obras de arte que proporciona ao espectador um pensar sobre a perceção da realidade das coisas e do mundo.

Há em Nasci num dia curto de Inverno elementos que um espectador familiarizado com a obra de Nuno Sousa Vieira (Leiria, 1971) reconhecerá. O gosto intelectual pelas correspondências e as analogias, a rememoração dos objectos de uso mediante a sua transfiguração em objectos artísticos, a memória enquanto faculdade essencial à fabricação, ao trabalho com as formas e os volumes. Pode-se falar de uma certa continuidade, como sugerem a evocação de momentos passados (a exposição Somos nós que mudamos quando tomamos efetivamente conhecimento do outro, entre 2010 e 2011, no Pavilhão Branco do Museu da Cidade, em Lisboa) e a relação omnipresente com o ateliê, esse espaço físico e imaterial que é a Fábrica de Plásticos Simala (em Leiria) no qual o artista continua a recolher materiais, objectos e ideias. Mas se nesta exposição, patente na galeria da Fundação Portuguesa das Comunicações, há uma recorrência, também se verifica um pequeno e vincado desvio. Por um lado, dela está ausente a menção directa a uma autobiografia, por outro, a relação com o quotidiano surge mediada por outras preocupações. É como se agora Nuno Sousa Vieira quisesse solicitar ao espectador uma experiência menos condicionada pela referencialidade, que permita um pensar sobre os fenómenos da percepção, sobre os limites e as possibilidades dos sentidos (nomeadamente a visão).

Os objectos, intervencionados ou não, os desenhos e as esculturas constroem no espaço uma constelação de ligações, de deslocamentos, de feixes. E é no interior dessa constelação que Nuno Sousa Vieira coloca o espectador, na expectativa que ele possa pensar sobre o que vê e sobre o modo como vê. Comece-se pela série de desenhos “Baixa as pálpebras e vê” que mostra uma gradação do escuro ao excesso de luz. Rapidamente repararemos falta um desenho à sequência. Desapareceu? Não pode ser visto? Não foi realizado pelo artista? A impossibilidade de ver, de dar sentido ao que aparece é uma situação que se repetirá tal como o seu inverso: a descoberta de associações ou relações, de significados. Repare-se nas duas imagens fotográficas que apresentam o mesmo nome (“Ícone). O hábito cultural dirá que representam uma superfície lunar, mas a inscrição palavra sunspots instala a dúvida. Talvez não seja a lua, mas o astro que a vista humana nua não consegue fixar: o Sol. À certeza seguir-se-á assim incerteza e a esta, a decepção. 

Nuno Sousa Viera não pretende desvelar o que se esconde por detrás das aparências ou forçar os fenómenos a revelar qualquer tipo de verdade. Pelo contrário, através da experiência da obra de arte, devolve aos sentidos uma dignidade esquecida, pois são estes que oferecem uma realidade à repetição e reprodução das imagens ou à presença física dos trabalhos. Interessa-lhe enfatizar a pluralidade e a fluidez dos pontos de vista, a irredutível riqueza das perspectivas. Em Nasci num dia curto de Inverno, toda a atenção é pouca. Assim, porventura o espectador mais apressado não reparará nos peculiares aquecedores feitos de derivado de madeira. Não funcionam, mas aparecem como obras de arte. São réplicas um do outro e, como os títulos “You (and)” e “(And) me” indicam, obras singulares, absolutamente distintas. Ready-mades falsos que as ideias e as mãos do construíram.

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Nuno Sousa Vieira. "Nasci num dia curto de inverno". Fundação Portuguesa das Comunicações. Foto da perfomance: Paulo Lisboa. Cortesia do artista.

Se nestes trabalhos é o acto de nomear que afirma a singularidade, nas versões de Guarda corpo é a transfiguração realizada pelo artista e a sua disposição no espaço. Do ateliê, Nuno Sousa Vieira retirou dois gradeamentos de ferro, utilizados nas fábricas para evitar acidentes. O primeiro, não intervencionado, conserva ainda as marcas da ferrugem e, colocado contra a parede, sugere o desenho de um novo espaço, de um novo percurso ou recanto. O segundo, pintado de azul, mas disposto no chão, pelo contrário, aparece como barreira. Ambos, exatamente iguais, ganham propriedades, formas e sentidos diferentes, de acordo com a sua localização.

A este desafio à percepção, Nuno Sousa Viera acrescenta situações que se poderiam considerar inusitadas ou misteriosas. Qual é o significado da farda cor de laranja que repousa sobre aquela escultura. Por que razão se encontra aberta aquela caixa de ferro? Quem a abriu? O que aconteceu? E quem deixou a porta entreaberta numa das salas? O que significa? Neste momento, o visitante encontra-se a sós com a sua interpretação e imaginação. Terá sido o artista que encenou estas situações? Atendendo ao trabalho de Nuno Sousa Vieira, é plausível que a exposição tenha sido o lugar de uma acção ou de várias acções. E, assim, para aqueles que as testemunharam, a presente exposição foi, durante um período de tempo, outra exposição. Não se reduz apenas a única identidade.

Entre outras peças jogam-se relações mais complexas, que exigem um olhar mais demorado, atento às dessemelhanças definidas pela geometria e pelos volumes. Note-se a relação entre “Family window #2”, produzida a partir de uma janela de ferro do ateliê, e “Family sculpture #2”, em que volume parece memorizar e reificar um movimento no espaço, para o exterior. Uma vazada, vazia, a outra monolítica, cheia e preenchida, são distintas e, contudo, iguais. A mesma escultura aparece em dois estados, duas formas, sem deixar de ser a mesma.

 

José Marmeleira

Jornalista e crítico nas áreas da música pop e da arte contemporânea. Colabora no jornal Público e na revista Time Out Lisboa. Lecciona Fundamentos do Jornalismo na Universidade Europeia e está a realizar o doutoramento em Sociologia no Instituto de Ciências Sociais (ICS-UNL).

o autor escreve de acordo com a antiga ortografia

 

Nuno Sousa Vieira

Galeria Bessa Pereira

Fundação Portuguesa de Comunicações

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Nuno Sousa Vieira. Vistas da exposição "Nasci num dia curto de inverno". Fundação Portuguesa das Comunicações. Foto: Nuno Sousa Vieira, Cortesia do artista.

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Nuno Sousa Vieira. Vistas da exposição "Nasci num dia curto de inverno". Fundação Portuguesa das Comunicações. Foto: Nuno Sousa Vieira, Cortesia do artista.

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