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Quando a mão domina a selva

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Paloma Bosquê. Vistas da exposição "O Oco e a Emenda". Pavilhão Branco - Galerias Municipais / Egeac. Foto: Bruno Lopes. Cortesia da artista e Galerias Municiapais / Egeac.

Maria Beatriz Marquilhas

Em O Oco e a Emenda, as obras nunca se separam da mão que lhes deu forma, falam-nos da sua verdade enquanto organismos vivos e abertos. A primeira exposição individual institucional de Paloma Bosquê, patente no Pavilhão Branco, apresenta um conjunto de novos trabalhos da artista brasileira que, em 2017, é pela terceira vez consecutiva indicada para o Prémio PIPA, numa introdução com a assinatura curatorial de Luiza Teixeira de Freitas.

Cera de abelha, lã de ovelha, algodão, o espinho de um cacto e chifres de boi ou de búfalo fazem parte da sintaxe de O Oco e a Emenda. Nesta, sobre blocos negros de cera de abelha com breu e ligados ou pendurados em finas hastes de latão, diversos elementos de origem animal e vegetal são oferendas ao olho e ao espírito. O visitante deambula pelo espaço luminoso do Pavilhão Branco como se tomasse parte de um ritual pagão. A sensualidade dos objectos reclama uma presença corporal íntima, toda pele, mãos e ossos. A fertilidade da Natureza e a criatividade da artista são um e o mesmo gesto e a sua obra continua o ciclo de violência e sensualidade que tudo transforma.

Altar aos cacos (2017) é, efectivamente, um altar onde se poderia praticar o culto dos cacos e materializa a atmosfera pagã presente no trabalho de Paloma Bosquê. Os títulos de Bosquê dão à simplicidade das formas e dos materiais a tonalidade da organização do mundo, de um fazer que torna simbólico. As formas repetem-se e é nessa observação repetida que o significado das coisas ganha densidade. O ritmo é por isso a pedra-de-toque, a condição de toda a poesia. Em Cruzeiro com rede (2017), a forma é talvez a mais repetida pelos homens: uma haste em latão na horizontal é intersectada por uma na vertical, o feltro de lã pendurado e a pedra de cera de abelha com breu transfiguram a cruz e subtraem-lhe o peso da sua história.

Aos diversos materiais correspondem diferentes forças que sobre e por eles são exercidas. Em cada obra, a encenação dos elementos condensa a realidade, torna-se o laboratório de todas as possibilidades. O equilíbrio é frágil mas persistente e as ligações são de tensão, oscilação, encaixe ou suspensão. Ponte pênsil (2017) e Trampolim (2017) são composições orgânicas e quase musicais: a madeira, a cera, o latão ou o chumbo protagonizam uma dança no espaço, no compasso das leis da física. A sua observação é um exercício matemático e sinestésico.

Numa das salas do pavilhão, Cipoal com pedras (2017) transporta-nos para o sertão do interior brasileiro, numa quadra em que diversos fios em colagénio, lã e latão caem do tecto, uma paisagem que mimetiza a desordem de uma densa selva. Numa elipse relativamente à obra anterior, seguem-se as três Das interacções provisórias (2017). São formas básicas, como o quadrado ou o triângulo, tecidas sobre peneiras de classificação de café e que, no cruzamento dos filamentos, conservam a sua origem no mundo vegetal. Passamos da ordem selvagem para o gesto civilizador que subjuga a trama dos fios numa quadrícula ordenada de intersecções regulares e ritmadas. Nestas obras, tal como em Conselheiro #2 e Conselheiro #3 (2017) - duas peças em lã de carneiro com um quadrado negro de algodão tingido no centro -, ecoa a depuração formal do movimento neoconcretista desenvolvido no Brasil, no final da década de cinquenta, por artistas como Lygia Clark, Hélio Oiticica e Lygia Pape.

O que poderia parecer uma mera arqueologia museológica do mundo animal e vegetal é antes uma inversão simbólica, como se a origem de cada um dos elementos apenas pairasse sobre os mesmos, agora transfigurados noutras narrativas. Em Curva amparada (chifre) (2017), o chifre parece nunca ter pertencido a um búfalo, como se tivesse sido esculpido por um qualquer demiurgo de outras selvas, na elegante ferocidade com que desenha a sua curvatura, sustida pelo negro bloco de cera. O mesmo acontece em Unha (2017), onde a curva é a de um chifre de boi, prolongado pela haste de latão. Ou em Espinho #3 (2017), na qual um espinho de mandacaru, uma planta da família dos cactos oriunda do nordeste do Brasil ocupa, num traço recto e afirmativo, o centro de uma tela translúcida, tão próxima de um exercício de geometria como de um estudo de botânica.

O Oco e a Emenda (2017), obra que dá nome à exposição, é um tear de fio de lurex. Através da larga quadrícula do fio metalizado, conseguimos ver o jardim do pavilhão branco. No centro, abre-se um círculo, um acidente que desenha uma forma simples na urdidura dos fios. Como em todas as obras de Paloma Bosquê, esse círculo estabelece uma relação com o corpo do observador, ao surgir à altura do seu olhar. O corpo responde à interpelação da obra porque falam uma língua comum, natural e silenciosa.

O trabalho de Paloma Bosquê é um regresso aos gestos da mão. A mão trabalha sempre voltada para o mundo, actua num movimento de dentro para fora a que damos o nome de criação. Em O Oco e a Emenda, exposição a visitar no Pavilhão Branco até ao dia 8 de Outubro, a mão regressa ao trabalho de urdir, de criar na repetição. Porque é nesse ritmo e nessa, recorrendo às palavras da curadora, "falta de pressa com o mundo acelerado", que encontramos novos nomes para as coisas.

 

Maria Beatriz Marquilhas

Licenciada e mestre em Ciências da Comunicação pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, tendo-se especializado em Comunicação e Artes com uma dissertação sobre o conceito na experiência artística. Contribui regularmente com artigos e ensaios para revistas. Vive e trabalha em Lisboa.

a autora escreve de acordo com a antiga ortografia

 

Paloma Bosquê

Galeria Municipais de Lisboa

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Paloma Bosquê. Vistas da exposição "O Oco e a Emenda". Pavilhão Branco - Galerias Municipais / Egeac. Foto: Bruno Lopes. Cortesia da artista e Galerias Municiapais / Egeac.

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Paloma Bosquê. Vistas da exposição "O Oco e a Emenda". Pavilhão Branco - Galerias Municipais / Egeac. Foto: Bruno Lopes. Cortesia da artista e Galerias Municiapais / Egeac.

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