Canibalia (redux)
Consta que na primeira viagem às Caraíbas, realizada em 1492, Cristóvão Colombo terá ouvido falar de uma tribo perigosa conhecida por “cariba” constituída por homens híbridos de um só olho e cara de cão que devoravam carne humana. Colombo regista o facto nos seus diários e com isso cria um neologismo derivado do termo espanhol can, cão, donde a expressão canibal radica: “(...) Toda a gente que encontrou até hoje diz que sente o maior medo dos “caniba” ou “canima” que vivem nessa ilha de “Bohio””.
Ora esta figura antropofágica, alvo de variadíssimos estudos, análises e ficções, é hoje retomada pela curadora Julia Morandeira Arrizabalaga na exposição coletiva Canibalia (redux) que reúne vários artistas e autores sediados na América do Sul e do Norte, em Portugal e Espanha. Em apresentação no Hangar – Centro de Investigação Artística, cuja programação se tem destacado pelo enfoque atribuído às discursividades pós-coloniais, Canibalia (redux) surge na continuidade de uma exposição apresentada, em 2015, na Kadist Art Foundation, em Paris, já centrada na imagética do canibal ameríndio, mas que aqui se alarga a novos nomes, estreitando o relacionamento com o contexto artístico local (embora já presente de raiz), assim como com as características do espaço expositivo.
Longe de literalizar o ato de ingestão implícito nas práticas canibais, preocupa-se em construir uma narrativa que, apoiada na arqueologia foucaultiana e na antropologia de Viveiros de Castro, procura simultaneamente desnaturalizar a ideia ocidental de canibal e extrair desta figura de alteridade uma poética que apreenda as contradições do presente histórico global fora de um olhar instrumentalizador do outro. Os agentes da narrativa são 21 trabalhos de natureza diversificada (esculturas, instalações de vídeo, fotografia e texto, documentos, desenhos, workshops) que se vão organizando fluidamente no espaço em torno de três grandes vetores intercomunicantes, nos quais diferentes tempos e paradigmas confluem. Enquanto o primeiro e o segundo vetor incidem sobre as representações do corpo e a organização dos saberes associados à modernidade, lembrando como o canibal resultou de uma construção europeia com múltiplas conotações (morais, de género e epistemológicas) sob as quais o poder colonial se exercia; o terceiro desloca a questão do canibalismo para o presente, encontrando nos mecanismos de reversibilidade subjacentes àquela prática uma metáfora suscetível de desencadear visualidades críticas sobre os atuais processos de extração capitalista da terra.
Arrizabalaga introduz-nos nesta narrativa arborescente com recurso a um painel de MDF de dupla face disposto na diagonal que tende a fechar a entrada da exposição e a dificultar a passagem do espetador. Mas o que parece cumprir a função de uma barreira física, rapidamente volve como separação simbólica, a partir da qual se começam a manifestar os primeiros eixos da exposição. Na primeira face do painel, pintada de branco, o espectador defronta-se com a cabeça de um monstro marinho de boca aberta, moldada em baixo relevo, numa placa branca de silicone. A peça é de Candice Lin e intitula-se Large Lovecraftian Glory Hole (for Ernst Haeckel), 2013. Na simulação de dispositivo sexual que encena institui um corte não entre dois parceiros, mas entre duas geografias, como a peça de texto conceptual de Runo Lagomarsino, inscrita a meio da parede, sugere: “This wall has no image but it contains geography”.
É o ato de contornar o painel que nos indica as geografias em causa. A segunda face está pintada de verde alface escurecido e tatuada de imagens representativas de grupos indígenas, servindo de fundo para um conjunto de peças e documentos que invadem a superfície de iconografias ligadas ao mundo canibal. Estamos virtualmente posicionados no interior da selva, como o facsimile do livro America 1590-1634 do gravador Theodor de Bry, aqui apresentado para consulta, assinala com as suas célebres ilustrações dos rituais de canibalismo ameríndio. E embora tenhamos deixado para trás a atmosfera acética característica da geografia anterior, que agora associamos à Europa colonizadora, é ela, com os seus temores, desejos e vontade de poder, que se encontra projetada e interrogada deste lado verde.
Veja-se, por exemplo, através das peças de Carlos Motta, da segunda escultura de Lin e do trabalho de Manuel Segade, como a figura do canibal permitiu aos europeus construírem uma série de estereótipos sobre o(a) índio(a) na base de uma moral patriarcal, homofóbica e fetichista e de um saber racionalizado que serviram de instrumentos para explorá-lo(a) e separá-lo(a) da ideia de humanidade. Se o vídeo de Motta, La visión de los vencidos (The defeated), 2013, nos devolve um travelling pela selva colombiana, enquanto narra em voz-off a história de um comandante colonizador espanhol que decide assassinar um grupo de homens índios depois de observá-los num ritual homoerótico; a escultura The Moon/Inside out, 2013 de Lin, rebaixa a cena da tela L’Origine du monde de Courbet a um peep show para interrogar a condição feminina numa linguagem caricatural que vem baralhar as atribuições humana/animal, digna/lasciva, virgem/prostituta, patroa/criada, ao mesmo tempo que expõe os fantasmas culturais ocidentais sobre o corpo da mulher índia. Já Segade, atual diretor do CA2M, em Madrid, traz-nos um texto e um conjunto de slides, Countless Species: Souveniers from the Africa Museum Tervuren, 2015, que indagam a ideologia discursiva novecentista do museu belga mandado construir sob a égide do conhecimento positivista, durante o reinado de Leopoldo II, com o propósito de celebrar a hegemonia imperial sobre o Congo e retratar as suas populações, ora como corpos selvagens, não civilizados, ora como corpos privatizados e escravizados.
Ao entender que a modernidade europeia aprendeu a dominar a alteridade cultural através de violentos processos de exclusão, a exposição não deixa de revelar também que, na atualidade, o poder capitalista ocidental deixou a sua forma moderna repressiva para assimilar a diferença do outro e passar a atuar através de preceitos de aglutinação, que lhe permitem um domínio mais subtil, mas não menos hegemónico. A escolha do vídeo Where to sit at the dinner table?, 2013, de Pedro Neves Marques é exemplar a este título, já que nele o artista desenvolve uma narrativa visual e textual bastante intrincada onde dá conta de como certas cosmologias ecológicas, fundadas em princípios autorreguladores com paralelos em tradições índias, foram apropriadas pelo capital e reorientadas para a mais-valia económica. A “lição” do perspetivismo ameríndio, na qual a barreira nós/eles já não se sustém, parece ganhar aqui terreno como ferramenta visual de inquirição crítica na qual a diferença cultural subsiste em conflito até encontrar um sentido poético nos trabalhos de Joana Escoval ou Daniel Steegman Mangrané. As duas conchas que Escoval insere no interior de uma coluna da arquitetura da sala de exposição, Untitled (for André), 2015, revertem a perspetiva tradicional ocidental e instalam um jogo de olhares que se desdobra nos dois sentidos (observador/coluna; coluna/observador), apelando a uma reciprocidade que encontra os seus ecos noutras instalações. É o caso de Kiti Ka’aeté, 2011, de Mangrané, uma retroprojeção de um só slide, que documenta uma árvore da floresta amazónica envolta por uma vinha estranguladora. O efeito de aperto é simultaneamente reforçado pela técnica da colagem utilizada e pelos losangos inscritos a laser sobre a imagem, dos quais resulta um padrão abstrato que remete para a simbologia indígena. Mas da abstração linguística rapidamente passamos para a do capital, tanto mais que o título da peça significa um corte feito por um instrumento afiado criado pelo homem sobre a floresta profunda onde habitam os deuses. Ao indissociar a técnica e a economia da própria natureza, é a atual política de expropriação capitalista do ethos das populações indígenas que esta mesma imagem indaga como ferida social.
Não tão feliz é a inclusão do workshop teórico-prático gastronómico Ancestros Indigestos, 2016-, conduzido por Carlos Monleón, que tende a contrastar com a dimensão conflitual que atravessa a exposição. Se, por um lado, tem o mérito de alastrar a imagética do canibalismo à sala de refeições do Hangar, um lugar votado à alimentação, por outro lado, opta por sair de uma lógica de dissensão em busca de um corpo social reconciliado e sarado por uma relação recíproca com os inventos comestíveis criados à base de fermentos. Pena também que a exposição não amplie o problema da hegemonia sobre as alteridades a partir das próprias contradições internas às práticas sociais das comunidades índias, como acontece por exemplo no vídeo de Neves Marques a partir do levantamento que faz das hierarquias e desigualdades implícitas na cultura antropofágica (“o matador não podia comer a sua vítima”). Desse modo, implicaria o olhar perspetivista sobre o outro com um sentido desmistificador por ventura mais acossado, indo ao encontro do trabalho de desnaturalização que faz da figura do canibal.
Não obstante, Canibalia (redux) é bem sucedida naquilo a que se propõe, resultando numa muito boa e premente exposição. Para além de uma afinada seleção de artistas/obras, trata o seu problema sem dogmatismos e com elevado sentido especulativo, qualidades que permitem a emergência de diferentes ressonâncias entre os trabalhos e uma discursividade crítica que, embora sustentada em bases teóricas bem delimitadas e de grande atualidade para o nosso presente artístico/histórico, permite linhas de fuga menos expectáveis, evitando linearidades curatoriais pouco produtivas. Num momento em que as diferenças são sistemática e exasperadamente anuladas em moeda de troca, esta é uma exposição que atribui nova vitalidade à questão da alteridade.
Sofia Nunes
Crítica de arte e doutoranda em História da Arte/Teoria da Arte na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas - UNL e na Université Paris 1 Panthéon-Sorbonne. Exerceu assistência de curadoria e produção de exposições no Museu do Chiado – MNAC, Ellipse Foundation e Centro de Exposições do Centro Cultural de Belém (2000 a 2007). Foi professora convidada no Mestrado de Arte Contemporânea da Universidade Católica Portuguesa de Lisboa (2009 a 2011). Escreve com regularidade para publicações de arte contemporânea e académicas.