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Retrato da artista enquanto menos jovem   

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Ana Vidigal, vistas da exposição na Galeria Baginski. Fotos: Bruno Lopes. Cortesia da artista e Galeria Baginski. 

Isabel Carlos

Isabel Carlos: Ana, disseste a propósito desta exposição que são obras feitas a partir de materiais-coisas que foste pondo de lado nos últimos dez anos e que agora te ficaram nas mãos porque este é um tempo político, gostaria que aprofundasses um pouco mais esta afirmação? 

Ana Vidigal: Tenho aqueles cartazes políticos e as estampas de propaganda Maoísta faz bastante tempo. Nunca me interessaram muito, nem em termos de conteúdo, nem formalmente. Guardei-os porque representavam uma época que vivi muito nova (os cartazes) e os livros e estampas do Mao porque representavam uma ideologia que nunca me foi próxima (como aliás ainda hoje não é). Coisas que possivelmente nunca mais seriam feitas, objectos únicos e com um lado pessoal e afectivo importante para quem mos deu.

Entretanto o mundo foi mudando e eu também. Centrei sempre o meu trabalho na minha experiência pessoal (e a dos que me são próximos) e tentei sempre reflectir sobre o tempo da perda, o tempo da ausência e do abandono, o tempo da poesia.

Cheguei até a reflectir já sobre a finitude, coisa que quer queiramos quer não, com a minha/nossa idade nos assola nos tempos mortos de atelier. Naqueles tempos em que podemos pensar, pois fazemos o trabalho manual que pode ser feito por qualquer pessoa, mas que permite pensar muito a quem não tem assistente. Tenho noção que essa finitude me chegou também de repente em 2008, e me modificou.

Mas voltando ao tempo em que escolhi estes objectos em vez de outros (e eu tenho tantos outros): nunca temi tanto pelo futuro.

Nunca imaginei que o mundo em que vivia pudesse mudar de um dia para o outro. Nunca imaginei que os valores e as conquistas que dei sempre por adquiridos pudessem de um dia para o outro ser postos em causa. Sempre acreditei que a Europa era o local do mundo onde os direitos humanos eram mais respeitados (excluindo o Vaticano obviamente), em que as mulheres eram descriminadas, mas que haveríamos de lá chegar. O meu herói era um jovem negro chamado Basquiat.

Belos tempos.

Os tempos últimos são bem diferentes

Tal como a geração Maoísta assistiu à falência dos seus ideais, viu ruir os "amanhãs que cantam" (e a fraude da revolução cultural) refugiando-se num silêncio magoado - diria mesmo, acobardado, porque poucos o admitem - assisto a uma Europa que contra todos os valores de solidariedade humana escorraça os povos que fogem da guerra, fecha fronteiras, faz campos de concentração para homossexuais e defende políticas económicas neo-liberais, que não passam de demagogia de partidos de extrema direita que aproveitando a democracia se instalam no poder indo aos poucos dando cabo dessa mesma democracia que lhes permitiu chegar ao poder.

Possivelmente daqui a dois domingos saberemos, se a França tal como sempre a conheci, continuará a existir. Nos EUA, depois de um milagre chamado Obama, dependemos de "uma coisa" completamente imprevisível.

Foi por tudo isto, que me ficaram nas mãos as imagens que estão nestes últimos trabalhos.

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Ana Vidigal, vistas da exposição na Galeria Baginski. Fotos: Bruno Lopes. Cortesia da artista e Galeria Baginski. 

IC: “Só a poesia nos pode salvar. Há lugar para mim? (Bambi a fugir de lá)” é um dos títulos de uma obra da exposição que como todas as outras é sobre papel e recorre a uma multiplicidade de materiais, desde sacas de plástico até imagens oriundas da banda desenhada, cartoons, cartazes políticos, sempre em regime de corte e montagem e com textos de diversas proveniências. É porventura a tua exposição mais interventiva em termos de mensagens político-sociais e formalmente também a mais dura. O papel recebe manchas e drippings como marcas de sangue, há imagens de corpos cortados, rostos escondidos, braçadeiras de plástico e os agrafes, que usastes noutras obras, aqui surgem quase como cicatrizes que unem feridas e cortes.

Mas voltando ao título, só a poesia nos pode salvar?

Fala um pouco da tua relação com a literatura. Na exposição há excertos de textos de poetas diferentes, o que surge primeiro: a citação textual ou a citação visual? O texto ou a imagem?

AV: Em processo/método de trabalho, sempre a imagem.

Mas o texto já foi lido. Quando o vou buscar não perco muito tempo, porque sei onde o li, quando o li e está assinalado, pronto a ser utilizado quando eu achar que se encaixa no conteúdo formal, e logicamente, mas inconscientemente, no processo conceptual, pois é sempre por instinto que o vou buscar.

Quanto à poesia, é um amor antigo, que vem dos tempos do liceu quando estudei as Cantigas Medievais Galego-Portuguesa (estudávamos o D.Dinis). Ainda hoje me lembro desta frase: "O que vos nunca cuidei a dizer”. E depois Kavafis, que já li mais tarde, já adulta e que talvez seja o meu poeta de eleição, aquele a quem mais recorro, porque é tão belo que me comove :

"Feito os corpos que morrem juvenis e belos,

chorados à clausura de um mausoléu magno,

com pétalas à testa, com jasmim nos pés,

assim transcorrem os desejos que abortam,

alheios à volúpia de uma noite única,

ao rútilo clarão do seu amanhecer."

Como também me comove a Emily Dickinson, na qual utilizei um texto/poema inteiro no project room VOID (2007).

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Ana Vidigal, vistas da exposição na Galeria Baginski. Fotos: Bruno Lopes. Cortesia da artista e Galeria Baginski. 

IC: Sem querer reduzir as problemáticas, a questão dos refugiados atravessa toda a exposição, porque é que é uma realidade que te interessa em particular?

AV: Em primeiro lugar porque há uma identificação clara com, por exemplo, os refugiados da Síria. Uma classe média: profissões liberais, famílias inteiras a fugirem da guerra. Podia ser eu, podiam ser os meus irmãos. A quem iríamos deixar os nossos pais que já não têm capacidade física para se deslocar e muito menos nas condições duríssimas em que são feitas essas rotas. Quem se sacrificaria por eles? Enviaríamos primeiro as minhas sobrinhas adolescentes, jovens adultas? Como se gerem prioridades em tempos de fuga a guerras? E logicamente isso leva-me à fuga dos judeus dos países europeus durante a ocupação nazi, perante a indiferença do cidadão comum. Quantas pessoas poderiam ter sido salvas nessa época se se tivessem acolhido e não fechado fronteiras? O ultimo livro da Irene Pimentel, O Comboio do Luxemburgo, impressionou-me muito.

Porque não acredito no destino, ainda quero acreditar que somos nós que definimos o que fazer das nossas vidas. E ao tomar conhecimento desse episódio que se passou em Vilar Formoso, aqui ao lado por assim dizer, fiquei ciente que numa guerra e numa situação de fuga, por muito que nos esforcemos, não somos nós que comandamos as nossas vidas, mas quem, por pequenos poderes, estratégias maiores ou simplesmente valores económicos, decide se morremos ou vivemos. E porque, mesmo que se chegue vivo fisicamente a um local que nos acolha, chegaremos sempre como mortos e seremos mortos vivos durante todo o resto. O resto do que poderá ser o calvário da sobrevivência.

IC: Como é que plasticamente traduzes esse calvário da sobrevivência? Há claramente menos padrões decorativos nestas obras, os materiais que usas em regime de colagem, sobreposição, recorte, como desde sempre fizeste, assumem agora contornos menos suaves e marotos, as preocupações temáticas impuseram também uma outra recolha de signos e tratamento plástico?

AV: O calvário da sobrevivência nem sequer ouso tentar traduzi-lo plasticamente. Posso tentar percebê-lo e colocar dúvidas, perguntas, mas plasticamente as respostas seriam sempre uma recriação daquilo que eu possa imaginar que é. Dou-te um exemplo, não sei se teria orgulho ou vergonha de ter no braço um número tatuado, pois por vezes a sobrevivência pressupõe a não sobrevivência do outro e como falar, principalmente em termos plásticos, do outro?

Trato os materiais quase sempre da mesma maneira, quase sempre instintivamente. O que existe nesta exposição é que as "pistas" que vou dando são possivelmente mais reconhecíveis pela maioria das pessoas. Mas, por exemplo, o poema do Kavafis tem uma enorme carga sexual, assunto tabu quase sempre quando se fala de guerras e refugiados (a menos que esses assuntos se integrem em casos de crimes contra a humanidade, como a violação em massa de mulheres na ex-Jugoslávia).

Tudo o que existe em tempo normal, existe em tempo de guerra. Do amor, ao sexo, ao abandono, à traição. Mas tudo o que em tempos normais nos é primordial, em tempos de guerra torna-se secundário.

Agora que fiz estas obras, sinto uma enorme libertação, é como sair de uma febre.

 

Isabel Carlos

Licenciada em Filosofia pela Universidade de Coimbra e mestre em Comunicação Social pela Universidade Nova de Lisboa com a tese «Performance ou a Arte num Lugar Incómodo» (1993). Crítica de arte desde 1991. Assessora para a área de exposições de Lisboa’94 – Capital Europeia da Cultura. Foi co-fundadora e subdirectora do Instituto de Arte Contemporânea, tutelado pelo Ministério da Cultura. Foi membro dos júris da Bienal de Veneza (2003), do Turner Prize (2010), The Vincent Award (2013), entre outros. Co-seleccionadora do Arts Mundi, Cardiff (2008). Entre as inúmeras exposições que organizou, destacam-se: Bienal de Sidney «On Reason and Emotion» (2004), «Intus» de Helena Almeida, Pavilhão de Portugal, Bienal de Veneza (2005), «Provisions for the Future», Bienal de Sharjah (2009). Entre 2009 e 2015 foi directora do CAM-Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa.

 

Ana Vidigal                                                                                                                               

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Ana Vidigal, vistas da exposição na Galeria Baginski. Fotos: Bruno Lopes. Cortesia da artista e Galeria Baginski. 

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Ana Vidigal, vistas da exposição na Galeria Baginski. Fotos: Bruno Lopes. Cortesia da artista e Galeria Baginski. 

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