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Notas de rodapé para um estudo semântico do espaço 

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Maria Beatriz Marquilhas

Ocupar un lugar y no tener medida:

no sera esto el espacio?

Eduardo Chillida

 

Quando, em 1952, o pianista David Tudor interpreta quatro minutos e trinta e três segundos de suposto silêncio, o compositor da peça, John Cage, parece deixar manifesto que a experiência de certas condições incorre invariavelmente na negação das mesmas. O mesmo acontece com o “vazio” de Teresa Henriques na exposição Footnote que, ao ser percepcionado, deixa de o ser. Empty (2017) é uma sala vazia. O vazio define-se sempre pela possibilidade da sua negação, de se preencher ou povoar, de ser interrompido, como agora acontece. Inscritas no rodapé da sala, vamos lendo as definições da palavra "empty", que nos conduzem num movimento circular em redor do espaço, cuja geometria é apenas quebrada pela luz do exterior que emana da janela.

A palavra constitui o vazio não apenas ao enunciar os seus diversos significados, mas também porque, ao desenhar o perímetro desse vazio, o circunscreve no espaço. A imaterialidade da linguagem respeita o aparente vazio da sala, mas apenas porque a ideia tem uma leveza que escapa às leis da espacialidade, aqui perscrutadas pela artista. A polissemia da linguagem vai estabelecendo ligações improváveis como as de estômago vazio, palavras vazias de sentido e cabeça ou coração vazios. Alguns dos significados mencionados e dos respectivos exemplos indiciam uma abertura para a auto-reflexão em torno da obra e da sua concepção, como é o caso de having no value or purpose: "this piece is empty and meaningless" ou de to discharge contents, as a river: "The artist emptied herself."

A obra revela o seu paradoxo no instante em que é interrompida pelo espectador. E, num último grau, compreenderíamos que, em rigor, o vazio não existe, uma vez que o sobrepovoamos com as nossas ideias e conceitos.

Na sala seguinte, Weight (2017) devolve-nos o conceito de peso: uma placa rectangular em ferro com apenas quatro milímetros de espessura ocupa todo o centro da sala. Sobre o negro do ferro, Teresa Henriques elenca diferentes significados e exemplos de uso da palavra "weight". O recurso à linguagem, aqui aliado à materialidade do ferro, parece recordar-nos o insustentável peso do imaterial.

O texto, grafado a tinta epoxy branca sobre o rectângulo negro, dita ao olhar do leitor um movimento historicamente repetido – de cima para baixo e da esquerda para a direita – e que, aliado ao espírito enciclopédico expresso na enunciação e reprodução de significados, compõe um retrato do mundo ocidental. Uma imagem que nos remete para a tábua dos dez mandamentos de Deus, gravados na pedra, e que parece ilustrar a definição da palavra peso – neste caso, histórico e cultural.

A concepção científica de peso modifica-se radicalmente no século XVII com as leis de Newton, momento em que o peso passa a ser reconhecido como força gravitacional com uma intensidade, uma direcção e um sentido determinados. O peso passa a ser definido como uma acção – a força sofrida por um corpo relativamente à atracção exercida por outro. Por outras palavras, este torna-se relacional e não essencial, como anteriormente afirmara a física aristotélica.

As derivações da palavra apresentadas pelo dicionário e que podemos ler na placa de ferro confirmam o carácter relativo – e subjectivo – do conceito de peso. No entanto, os exemplos ilustrativos seleccionados pela artista apontam para o efeito opressivo de um peso que condiciona, esmaga e que bloqueia os movimentos, como demonstra a alínea to burden with or as if with weight (often followed by down): “Financial worries have weighted down for years”. A escolha de situações relativas à esfera da criação artística, numa denúncia da precariedade que nela se vive, é concomitante com a afirmação de um compromisso proactivo quanto a opções de ordem política e social, aqui expresso na acepção: to bias or slant toward a particular goal or direction; manipulate: “The artist weighted the options for the piece.”

Por último, Wings (2011) dá título a uma escultura de parede que materializa os binómios peso/leveza e vazio/cheio, ao lhes dar um corpo e uma direcção horizontal e ascendente. Ao rodarmos uma manivela, uma estrutura mecânica é activada, o que coloca um par de asas negras em movimento. O exercício do voo não se opõe ao peso do corpo, mas supera-o, coloca-o ao serviço da sua própria libertação. A sua relação com o espaço requer o vazio e quanto mais vasto este for, mais alto é o voo. Da mesma forma, o espaço é esvaziado pelo corpo que, pelo voo, o abandona.

Num estudo semântico do espaço, patente na galeria Caroline Pagès até ao dia 27 de Maio, Teresa Henriques confere à relação do corpo com a arquitectura do espaço a mesma plasticidade que existe na linguagem. Nesse exercício poético, cada vocábulo, objecto, forma ou ideia dão origem a uma constelação de referências que se contaminam, numa sinestesia em que a palavra ocupa o seu lugar no espaço e em que a matéria que dá forma às ideias afirma a sua força gravitacional – a da agilidade do voo.

 

Maria Beatriz Marquilhas

Licenciada e mestre em Ciências da Comunicação pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, tendo-se especializado em Comunicação e Artes com uma dissertação sobre o conceito na experiência artística. Contribui regularmente com artigos e ensaios para revistas. Vive e trabalha em Lisboa.

a autora escreve de acordo com a antiga ortografia

 

Teresa Henriques

Galeria Caroline Pagès

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