Anacronismo e Arte
A propósito da exposição de Tamás Kaszás que esteve patente na Fundação Calouste Gulbenkian.
Junto à entrada da sala polivalente da Fundação Calouste Gulbenkian, esteve montada uma estrutura em madeira que reconheci. Julgo que Tamás Kaszás já utilizou este formato algumas vezes para mostrar ora o seu trabalho ora o trabalho de outros.
Nesta estrutura estavam fotografias, textos e desenhos de um primeiro projeto, desenvolvido em 2008, Projeto 270, na Costa da Caparica com Sophie Dodelin.
Tamás e Sophie desenvolveram sob a memória do Projeto Morro uma construção ou abrigo cavado no horto biológico. Traziam consigo um texto de Henry Thoreau que falava das primeiras casas dos colonos americanos, sem meios e com a necessidade de se abrigarem - construir como necessidade, pré arquitetura. Durante o processo, algumas imagens descritas no livro, aconteceram à frente deles, como bolsas de terra que desabavam e que funcionavam como alegorias de uma experiência que almejavam incorporar.
A Disco batata era um buraco que nos permitia olhar para as couves e erva daninha a partir da linha terra. “Afinal somos da altura daquilo que vemos e não da nossa altura” - escrevi-lhes na altura, parafraseando Pessoa.
Havia uma carta.
Estava agrafada a esta estrutura. Tinha o meu nome. A Sophie tinha partido no dia seguinte e escreveu-me (mais à frente falaremos de afetos).
O espaço da galeria está livre e recorda-me os espaços das exposições do Ernesto de Sousa (que dizem ter influenciado o desenho do CAM), com todas as obras em contaminação. Uma estrutura em madeira, suportava uma grande quantidade de trabalhos mais pequenos sob a égide: “É a força intuitiva pela sobrevivência que nos une”. Algumas esculturas e desenhos ocupavam o restante espaço, simplificado nos extremos pela criação de duas salas de projeção. As salas eram negras e tinham bancos de pinho que nunca tinha visto. Reconheci-os contudo, como desenhados ou apropriados (tal como o dispositivo no exterior) por Tamás. Tinham aquela qualidade exótica de um conhecimento popular imbuído pelo Construtivismo russo, que contaminou a Hungria durante o Socialismo (o Comunismo não aconteceu ou não se realizou, disseram-me).
Na primeira sala negra, um vídeo reproduzia uma projeção de slides. As imagens da natureza, que presumo terem sido tiradas de caminhadas pelo campo são transcendentais: O Tamás dá-nos a ver mais à nossa frente dada a disponibilidade e intensidade do seu olhar. As legendas destas imagens deixam-nos perceber esta intensidade ou intencionalidade, afectando a forma como olhamos as imagens, territorializando-as.
A obra de Tamás é uma ficção e não um qualquer projeto religioso ou político entre o anarco-primitivismo e a antroposofia. Tamás não nos apresenta uma solução para o mundo. Apresenta-se como desejo ou experiência vivida por uma pequena comunidade, que não se impõe sobre nós como verdade absoluta.
Deixa-nos no entanto sonhar!
Regressei ao campo do tangível com as esculturas e desenhos no espaço principal que funcionavam quase como um museu arqueológico de ideologias resgatas ao passado projetadas sobre o futuro filtradas pelo artista, utilizadas/iniciadas na vida real através da inserção de posters nas ruas, utilização de obras em protestos e intervenções públicas ou realizadas para o espaço da arte que é o espaço do simbólico.
No segundo e último espaço escurecido, os mesmos bancos e uma série de vídeos que constroem ficções da sua vida familiar dando a ver atividades quotidianas, sobretudo técnicas e processos ligados a um modo de vida fora do contexto em que vivemos e que tem que ver com a possibilidade de uma escassez de água e comida futuras.
A ideia de que estamos unidos pela intuitiva força de sobrevivência reforça a ideia de anacronismo na obra do artista, pois no plano social, económico e político em que vivemos torna-se estranha a potência da frase. A primeira tentação é a de reescrever a pergunta de George Orwell em The road to Wigan Pier - Meanwhile what about Socialism? - Entretanto, e o Capitalismo?
Mais acertado porém é entender o anacronismo como forma de libertação temática possibilitando encontrar um outro significado na ideia - o mundo e as coisas no mundo estão a priori preparados para nos comunicar algo. A arte nas suas variações prática e intelectual, criam situações cognitivas. A arte torna-se sujeito com a ajuda da linguagem e, ao mesmo tempo, permanece contra a insistência de que existe uma mensagem dentro da obra. No caso de Tamás a linguagem é utilizada pré e pós experiência, organizando um conjunto de diferenças entre aquilo que vivemos e aquilo que nos é proposto sob a forma de texto, escultura, poster ou vídeo. A linguagem pré-experiência da obra é resgatada de outros autores, momentos históricos, movimentos artísticos e políticos e incorporada/filtrada pela realização da obra. Ela refaz a história, através do sensível e fora dos aprisionamentos da história e da memória.
O anacronismo de que falo é melhor apresentado nos vídeos da última sala: são quadros com determinadas respostas anticapitalistas que parecem por vezes andar para trás. E ver a forma como cozinham pipocas ou se transformam os carros das crianças para um género híbrido telecomandado com paus e arame resulta no anacronismo de que falo.
Tamás Kaszás e Anikó Loránt (Ex-Artists Collective – outro anacronismo) vivem com os seus filhos - outro quotidiano - e este atua sobre nós, propondo uma outra forma de estar e de ser. E nós articulamos a diferença. A sua existência não implica em qualquer momento a negação da nossa vida, nem codifica a diferença como no programa democrata-capitalista em que estamos inseridos.
“Nós podemos estar todos juntos” (Álvaro Lapa), parece dizer Tamás, - pela diferença; entre aquilo que vemos e aquilo que vivemos. Entre a forma ficcionada de Tamás, que utiliza a linguagem da arte para ficcionar; para imaginar novas possibilidades, resgatando a seu bel-prazer a história, que é reescrita parcialmente, mas que não deve ser utilizada como verdade em si, fixa.
A linguagem é apenas uma ferramenta, que livre de imposições históricas e de um antropomorfismo próprios, lhe permite avaliar e projetar os valores de uma determinada comunidade sobre aquilo que está à nossa frente.
Tamás trabalha como quem faz gravura (técnica aliás muito utilizada por si) que marca o que se passou e o que se está a passar à nossa frente, o que implica uma abertura ao todo e uma determinada velocidade – daí a minha nomeação dos vídeos para exemplificar o que aqui tento explicar, libertando a leitura da sua obra da linguagem como memória.
A memória é o que parece assombrar uma possível leitura da obra de Tamás, porque nos prende às grandes narrativas. O modo como Tamás transmite a sua obra encontra-se no plano dos afectos e este é o plano das micro narrativas, o plano da coexistência entre unidades que criam um todo, que são a única possibilidade de existência para além de um modo capitalista de ideias de género, sexualidade, ambiente, etc.
A real matéria da arte de Tamás Kaszás não são os seus artefactos, vídeos ou desenhos. A real matéria da arte é a forma como inter-relacionamos aquilo que estamos a ver e o mundo cá fora -onde vivemos.
Hugo Canoilas
Licenciado em Artes plásticas pela ESAD em Caldas da Rainha. Como artista tem vindo a expor regularmente com destaque para Frankfurter Kunstverein, De Appel, Le Magasin, Fundação Calouste Gulbenkian, Bienal de São Paulo, Kunsthalle Wien e Museu do Chiado Lisboa. Dirige conjuntamente com Nicola Pecoraro e Christoph Meier o projecto Guimarães em Viena onde vive e trabalha.