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Almada: Performer?

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Mariana Viterbo Brandão

É supinamente cómodo resolver uma complicação como o fazem os simplistas, excluindo todas as outras complicações que não sejam aquela. Mas isso é do que nós já estamos fartos.

Almada Negreiros i

 

Almada foi moderno. E, portanto, paradoxal.

O exercício e apologia da contradição fizeram parte do seu modus operandi: somemos a provocação e violência como estratégia para alcançar a intensidade, a constante insurreição contra a letargia nacional, a ironia, a exaltação da experiência e da excentricidade e – aí está – temos uma "maneira de ser". [1]

Desta maneira de ser, constantemente sobressai um carisma extraordinário, uma destacada qualidade de presença cuja memória continua a ser um dos mais recorrentes aspectos associados ao artista.

No caminho da Direcção Única, ii Almada – caso também único no grupo de artistas com quem convivia e trabalhava - pulverizou a sua actividade por múltiplos campos, sempre com um ímpeto totalizante, mas com resultados da Pintura ao Vitral, da Literatura ao Design Gráfico, e (enfim) "TUDO". iii

Avesso à ideia de especialidades artísticas (e não é por acaso que esse outro "especialista de ideias gerais", Ernesto de Sousa, se aproximou e interessou tanto pela figura e trabalho de Almada), Negreiros acabou por reconhecer ser o Espectáculo o seu maior interesse, como afirmou numa entrevista concedida em 1968 à RTP: «Eu enganei-me muitas vezes na minha vida e sobretudo com a palavra “teatro”… Ainda hoje estou absolutamente subjugado pela palavra “teatro”. Mas expliquei-me a mim mesmo do que se tratava. Não é o Teatro que me interessa, não é a Escultura, não é nenhuma Arte especial. O que me interessa a mim é o Espectáculo» IV.

Importa, no entanto, elaborar um pouco em que acepção terá esta palavra sido utilizada.

Não dirá certamente respeito à ideia de palco em sentido literal, até porque esse foi esporadicamente pisado [2]. Podemos, por outro lado, considerar a criação - em que Almada parece ter sido mestre - do espaço cénico (não tradicional, pois claro) sediado no quotidiano, como aconteceu no seu encontro na Brasileira com Eduardo Viana, que em Outubro de 1915, relata a Robert Delaunay um encontro com Almada na Brasileira do Chiado: «Ele fica contente de me ver; grita aos transeuntes que são chatos e que eu sou um tipo chic, e de vós, diz que vós sois simplesmente maravilhosos (...) Logo a seguir faz danças rítmicasno passeio. Ficaria encantado se fizesse ballets russos – danças simultâneas –com um fato colorido feito por Madame» V,ou numa primeira leitura do Manifesto Anti-Dantas e por extenso de 1916, declamada no café Martinho para um grupode amigos, ou ainda no seu (para já) misterioso trabalho em Paris e Biarritz (1919-20) [3],como bailarino de danças de salão e acompanhante de senhoras de sociedade edançarino no clube nocturno Patapoom, gerido pelo seu amigo Homem Christo Filho [4].

De toda a maneira, o Espectáculo é da ordem do dar a ver, tornar visível, e implica portanto uma atitude (uma intenção, um propósito).

Se a atitude - centralíssima em Almada - pode certamente fazer dele um performer, na medida em que implica um investimento regular numa destacada qualidade de presença e desempenho ao vivo, por outro lado, não faz dele bailarino nem autor de Performance.

Este ponto de vista faz sentido se considerarmos que a Dança se impõe por afirmação e a Performance por relação, e que, enquanto a Dança existe apenas em si, a Performance está ancorada no estabelecimento de relações, no pôr em perspetiva. A Dança gera novas dimensões de tempo e espaço e está mais ancorada na experiência, ao passo que a Performance reconfigura os diversos elementos que convoca e elabora mais “em conceito”, favorecendo uma recepção analítica, ou seja, não predominantemente sensorial, frequentemente instando o espetador “a produzir a posteriori as condições de uma experiência já efetuada” [5]. Os elementos de uma Performance são relacionais: a concretude do que acontece orienta-se para a formulação de relações com outras coisas; convoca aspetos, noções, conceitos, categorias e experiências que lhe são externas.

É assim possível afirmar que, em Performance, a presença e desempenho do corpo é normalmente fundamental, não por proporcionar a experiência única que caracteriza a Dança, nem por aquilo que esse desempenho tem de excepcional, mas por aquilo que representa dentro de um sistema que o confronta com outros elementos. A Performance trabalha com o corpo, mas sobretudo com o discurso sobre o corpo.

Aceitemos este quadro conceptual para problematizar a condição de Almada como autor nestes domínios, e comecemos pela Dança, pela simples razão de que, ao contrário das ideias gerais, trata precisamente do que existe de particular e extraordinário no movimento do corpo humano num dado tempo e espaço, como já vimos, simultaneamente transformando estas dimensões.

Atentemos então na actividade de Almada enquanto “bailarino” e “coreógrafo” para palco, limitada às iniciativas de Helena da Silveira de Vasconcelos e Souza, Condessa de Castelo Melhor [6]. Embora não seja possível ter sequer uma noção aproximada das coreografias idealizadas por Almada, uma criação de um amador para um conjunto de amadoras [7], tudo leva a crer que estivessem afastadas da atitude moderna que Almada revelou noutros trabalhos. Almada parece ter sido, de facto, o coreógrafo encarregue das laudatórias danças encomendadas pela condessa [8], tudo indica que subordinando os diversos elementos dos espectáculos, do cenário ao libreto, às condições oferecidas pela sua patrona.

Independentemente da dificuldade em avaliar a prestação de Almada enquanto coreógrafo ou bailarino, parece justo considerar a sua produção neste âmbito como conservadora, na medida em se orienta mais para a permanência e consenso, ao contrário do que acontecia noutros ramos da sua actividade, nos quais promoveu a exaltação do espírito revolucionário dirigido ao colectivo, implícito na forma do manifesto, incluindo o Sarau Futurista, realizado no Teatro República a 14 de Abril de 1917.

Como «bailarino de palco», Almada teve uma única experiência documentada, desempenhando os papéis de bruxa e diabo em A Princesa dos Sapatos de Ferro; e mesmo nos «bailados» por si dirigidos, a sua relação com a coreografia era de uma grande ligeireza [9].

Consciente das suas limitações, Almada depressa desistiu de ser bailarino. Conforme Vítor Pavão dos Santos relembra, Dulce Carvalho, uma amiga de Almada (citada por Ana Paula Guimarães no Jornal da Exposição Almada, no CAM da FCG, 1984), contou: «…ele podia experimentar tudo, ele tinha audácia para isso. Mas soube evidentemente que não atingia a força que queria conseguir e que conseguia naturalmente. Caminhava como um príncipe ou como um mago, mas não dançava como um príncipe ou como um mago, e ele sentia perfeitamente isso, e por isso deixou de dançar. Foi uma aventura; para ele era até um bocadinho triste falar dela na medida em que não tinha sido conseguida como ele conseguia fora do palco» VI. Esta decisão parece atestar um considerável grau de exigência, dada a incipiência da Dança no contexto português.

Convém lembrar que em Portugal, o panorama associado a este género artístico foi paupérrimo até há bem pouco tempo, tanto em termos de produção [10], como de fruição [11] e – sobretudo - formação, e o contexto modernista não inverteu a conjuntura. Repare-se que, quando em Novembro de 1917, Portugal Futurista é publicado por Pessoa, Almada-Negreiros e Santa Rita, incluindo um panfleto de saudação aos “Bailados Russos”, assinado por Almada, Ruy Coelho e José Pacheko [12], Almada nunca tinha presencialmente assistido a uma das suas peças, embora conhecesse relatos transmitidos por diversos amigos que passavam longas temporadas em Paris (tais como Mário de Sá-Carneiro, Amadeo de Souza-Cardoso, regressado a Portugal em 1914, Santa-Rita ou o casal Delaunay), ou que tinham contactado com a produção dos Ballets Russes noutras capitais, como Ruy Coelho, que assistiraaos Ballets Russes em Berlim, ou Raul Lino VII. Logo depois, a trupe de Diaghilev apresenta-se de facto em Lisboa, num momento particularmente mau da companhia e com um programa desinteressante, quando enquadrado na produção vanguardista que os Ballets Russes incluíram [13].
 

O forte impacto e atracção que a companhia de Diaghilev provocou em Almada, é assim resultante de uma ideia e não de uma experiência, tal como aconteceu com os projectos para os “ballets simultaneistas” [14] a realizar em parceria com Sonia Delaunay, nunca concretizados.

Os Ballets Russes apresentaram-se em Portugal em Dezembro de 1917, com um programa que espelhou a sua faceta mais tradicionalista e conservadora. Nessa altura, tinham já passado cinco anos desde que Vaslav Nijinsky e o seu Fauno abalaram alguns dos mais tradicionais pilares da Dança de Palco, como a tradicional hierarquia do espaço cénico ou o primado do en dehors. Inspirando-se em representações bidimensionais da Grécia Antiga, Nijinsky põe em cena “frisos dançantes”, algo semelhante a pinturas ou baixos-relevos em movimento, que levantaram desde logo forte agitação, não só entre o público, como entre os artistas envolvidos.

É neste mesmo ano – 1912 -, que Oskar Schlemmer dá início ao Ballet Triádico, a sua opera magna, na qual durante vinte anos trabalhará [15], comprovando tratar-se de um laboratório onde testou o seu inesgotável tema de eleição - O Homem no Espaço. Convém não esquecer que o método criativo de Schlemmer na Oficina de Palco da Bauhaus implicava partir da concepção e construção dos figurinos, para a escolha da música e, por fim, a coreografia, composta frequentemente por um vocabulário de movimento severamente limitado pelas características dos figurinos, i.e., esculturas. Está fácil de ver que, embora incluísse a palavra ballet no seu título, a obra deste autor não tinha a Dança como questão central. De facto, Schlemmer, pintor e escultor de formação, sempre esclareceu conceber o “palco” como o lugar por excelência propício à síntese das dimensões pictórica e escultural, assim como defendeu ser eminentemente visual a fruição deste tipo de obras.

A redução do corpo humano à “essência” geométrica, e consequente subordinação da obra cénica à especialidade das Artes Visuais, levou a que, por exemplo, Schlemmer tivesse necessidade de se defender publicamente da acusaçãofeita publicamente por Ernst Kállai, ex-aluno da Bauhaus e editor da revista Bauhaus [16], de utilizar bailarinos “mecânicos”, e rechaçar a exaltação da máquina e, claro, da sua aproximação ao corpo, ou seja: a marioneta, cuja apologia foi sendo feita, em diferentes contextos e circunstâncias, por autores tão diversos como Adolphe Appia, Edward Gordon Craig, Enrico Prampolini, Fortunato Depero, Gilbert Clavel, Heinrich von Kleist ou Sophie Taueber. Nenhuma das suas justificações pode, contudo, ocultar que «A passagem da ideia de corpo, do corpo abstrato, para o corpo concreto, único e limitado é feita em tensão: a “carne” é o problema de Schlemmer» viii.

 A este propósito, é curioso reparar que, se a superação dos limites humanos através da máquina preconizada pelos futuristas teve consequências vanguardistas no campo da Música (como com os intonarumori de Luigi Russolo), noterritório da Dança tudo foi diferente. Embora advogando a ultrapassagem daspossibilidades musculares ou da necessidade de acompanhamento musical, a Dança Futurista não só foi praticamente inexistente, como – veja-se o conteúdo domanifesto que Marinetti lhe dedicou em 1917 -, resultou naquilo que parecem ser exercícios primários de mímica representacional, que talvez por isso mesmo não deixaram qualquer lastro relevante. O corpo, sempre em mutação, único e particular, resistiu aqui, mais uma vez, a uma redução totalizadora.

A tensão decorrente destas incompatibilidades manifestou-se também na actividade dos Ballets Suédois, uma companhia terminologicamente associada à Dança, mas onde nem sequer existia a figura do Mestre de Dança e os bailarinos constantemente se queixavam de não dançar. Por vezes, o seu corpo nem era tampouco visível, funcionando de facto como suporte possibilitador da deslocação dos elementos cénicos, o que favoreceu a perspectivação da actividade da companhia como uma interpretação dinâmica das Artes Visuais.

Fundada por um colecionador de Artes Plásticas, contou com a colaboração de artistas como Jean Cocteau, Fernand Léger ou Francis Picabia, que não só conceberam cenários e figurinos, como atuaram ao nível da direção de palco e coreografia, numa clara assumpção do desejo de explorar as possíveis relações, não só entre Artes Visuais e Performativas, como investindo em incursões noutros campos, como aconteceu com o Cinema.

Nos referidos casos internacionais, verifica-se um desejo de totalidade a partir da consagração da autonomia dos vários géneros artísticos [17], que embora se oriente diversamente, pretende sempre comunicar com o espectador mais eficazmente do que cada um desses géneros isoladamente seria capaz, e que, ao propor uma nova concepção de Dança, acabou por resultar numa outra coisa: a Performance (Art).

Tanto em parte do reportório dos Ballets Russes, na actividade dos Ballets Suédois, no Ballet Triádico de Schlemmer, como no Ballet Mécanique de Fernand Léger, o termo ballet reporta a uma tónica no movimento, concretizada em inovadoras experimentações ancoradas num desejo de totalidade que acabou por explorar o potencial do movimento a partir de problemáticas oriundas das ditas Artes Plásticas, afastando-o do corpo, por natureza único e individual.

A possibilidade de articulação, que permitiu a criação de um discurso problematizador de diversas dimensões da existência humana e da própria Arte, dentro de um quadro de pensamento e acção que desvaloriza a especialização técnica e o virtuosismo implícito, fez com que a opção pela Performance consubstanciasse um desvio, no sentido em que surgiu de uma necessidade de alternativa, correspondendo a um afastar-se de um território ou género considerado insuficiente para cumprir um determinado programa artístico.

Regressando a Almada, importa constatar um contexto muito diferente, e que torna ilegítima a expectativa de uma produção artística que simultaneamente convoque e reflicta todas estas frutíferas questões acerca dos territórios, possibilidades e limites dos vários campos artísticos.

Muito superficialmente, basta recordar que em Portugal nunca existiu um empresário com a bagagem, contactos e meios de um Diaghilev; um mecenas como Rolf de Maré ou uma escola como a Bauhaus.

Aceitando que «a conferência é a arte-síntese de Almada», e que é este o formato mais sintético do seu Espectáculo - sempre desejo de comunicação e intervenção na vida colectiva - podemos concordar que «é num face-a-face com o poder que Almada se coloca, reivindicando o direito à existência dos artistas enquanto “raridades de excepção”, a possibilidade de resistirem à asfixia do “sistema burocrático-administrativo português”, ou até, mais simplesmente, a de conservarem a sua liberdade».

A reactividade é, portanto, um eixo central da atitude Almadiana e, embora isto não possa ser simplisticamente conotado com facilitismo [18], é concebível que o seu isolamento [19] e apurada percepção do marasmo artístico nacional tenha conduzido – na dimensão ao vivo - a uma necessidade de afirmação mais ancorada em enunciados do que numa prática artística autonomizada do discurso que a acompanha.

A Obra de Almada é de tal maneira prolífica e diversificada, que pode propiciar o comodismo - por um lado -, de uma abordagem generalista em que se faça equivaler o que não se pode confundir ou – por outro -, se retalhe aquilo que não se pode separar.

As exigências levantadas pelo estudo e aproximação a uma Obra desta natureza, que implica uma abordagem global a partir de experiências e pontos de vista especializados, pode bem ser um dos seus mais importantes legados.

Assim, e no que toca à actividade Almadiana ao vivo, parece inevitável aceitar a complicação que é conhecermos melhor algo que já não existe nessa condição, simultaneamente atentando sobretudo na especificidade dessa circunstância. Em Arte, excluir a complicação, a dúvida e a especificidade é à partida redutor e desajustado. E «isso é do que nós já estamos fartos».

Mariana Viterbo Brandão 

Nasceu em 1976 no Porto. Formada em Dança, licenciatura e mestrado em História da Arte. Foi professora de Dança e História da Dança. Colaboradora do Serviço Educativo do Museu de Serralves de 1999 a 2011. Colaboradora da Direcção-Geral das Artes entre 2008 e 2011. É desde 2008 docente universitária no âmbito da Dança e Performance, campos sobre os quais concluiu na FBAUL uma tese de doutoramento como bolseira da FCT. 

 

Notas:

[1] «Isto de ser moderno é como ser elegante: não é uma maneira de vestir,mas sim uma maneira de ser» (Martins [et al.], 2006: 156). 

2 Mais concretamente nas declamações de textos emteatros, e por motivo do seu trabalho enquanto cenógrafo/figurinista, ouencenador/participante nos saraus promovidos pela Condessa de Castelo Melhor, sobretudo.

2 Esta altura parece ter sido particularmente difícil navida de Almada, embora neste momento exista pouca informação divulgada acercadeste período. Convém, contudo, lembrar que a ida de Almada para Paris – a suaprimeira viagem ao estrangeiro - se segue à morte de Mário de Sá Carneiro (1916), bem como de Santa-Ritae Amadeo Souza-Cardoso (1918).

4 Ainda em1920, após o regresso a Lisboa, Almada Negreiros apresenta-se no Maxim’sdançando com a bailarina Lili.

5 Como de Thierry deDuve referiu a propósito da Performance que Robert Morris apresentou em 1961 noLiving Theater, em Nova Iorque: “L’actionest littérale, soit. La colonne tombe, et sept minutes sont sept minutes. Mais ce théâtre “entemps réel” n’a pas dit le dernier mot de sa specificité, pas plus que Stella,prenant Greenberg à la lettre, n’a dit le dernier mot de la peinture. Le croireserait s’illusioner encore, et confondre objectité avec objectivité,littéralité avec matérialité. Non, la littéralité du Minimal, dont nous avonsvu qu’elle obligeait le spectateur à produire a posteriori les conditions d’une expérience déjà effectuée, brisela contiguité de l’avant et de l’après” (de Duve 1987: 204-205).

6 Designadamente: OSonho da Princesa na Rosa (apresentado a 7 de Março 1916), com música deRuy Coelho e mise-en-scène de AlmadaNegreiros com interpretação de “gentis damas da Aristocracia de Portugal”.Conforme o programa, o argumento era: «A Princèsa vem entrando com as suas aiasprecedida de dois pagens que espalham pétalas de rosas pelos tapetes e queimamperfumes. A Princèsa senta-se no divan e as aias ajudam-lhe a toilette. Depoisde promta, manda entrar a bailadeira. Entra a bailadeira com venias ereverencias. Em seguida, começa a dança e todos tomam a cadencia da bailadeira.A Princèsa ordena a bailadeira que lhe ensine a linda dança. E a Bailadeiradança com a Princèsa. Depois com as aias e a seguir bailam os pagens. Ouve-sesó uma harpa. De repente começam os sinos fóra e o cortejo, fechado pelaPrincèsa, vai saindo lentamente. Fim».

Festa de Caridade a Favor das Madrinhasde Guerra (11 de Abril 1918),totalmente concebida por Almada Negreiros, compreendendo dois bailados, amboscom música e libreto de Ruy Coelho. O primeiro e mais longo, intitulado Bailado do Encantamento (dois atos, oprimeiro com onze cenas com coreografia e mise-en-scènede Almada e o segundo, de sete cenas e mise-en-scènede Lois Symonoff, com o concurso de David Bromberg), contou com cenário efigurino de Raul Lino, argumento baseado num poema de Martinho Nobre de Melo, eo desempenho de diversos nomes sonantes da aristocracia lisboeta (HelenaCastelo melhor como Rainha, EmíliaCastelo Melhor como Fada do Mau Presságio,Maria da Luz Mello Breyner como BrancaAssucena, Maria da Conceição Mello Breyner como Princesinha Eulália, Henrique Gonçalo Mello Breyner como Poeta e Mademoiselle Margarida Street Caupers como Luar, Perfume e Dança Profana) acompanhados por algunsintelectuais, como Cottinelli Telmo ou Luís Reis Santos (que adotou LuisTurcifal como nome artístico), ambos desempenhando os Bobos. O segundo bailado, APrincesa dos Sapatos de Ferro teve cenários de José Pacheko e coreografia,figurinos e mise-en-scène de Almada,que desempenhou os papéis de Bruxa e Diabo, sendo o único bailarino adulto;Maria da Conceição Mello Breyner (Tatão) foi a Princesa e quatro outras meninas os Diabinhos. A música (onzeminutos de duração) tinha sido composta por Ruy Coelho em Berlim, em 1912.

O Jardim da Pierrette (Junho de 1918) é apresentado no Teatro da Trindade,antecedendo a peça de Teatro também amador Michetteet sa Mère. Argumento de Madalena Amado; figurino, coreografia e cenário deAlmada Negreiros, música de Grieg e Chopin. Os personagens foram interpretadospor cinco meninas: Maria Adelaide Soares Cardoso foi Pierrot, Maria Teresa Moraes Amado foi o Poeta, Maria Madalena Moraes Amado foi a Pierrette, Maria José Soares Cardoso foi Arlequim e Maria da Conceição de Mello Breyner foi a Arlequina.

O Sonho do Estatuário (Verão de 1918), bailado dirigido por Almada Negreirosna Quinta das Laranjeiras, com João Carlos Reis e Maria da Conceição de MelloBreyner.

Bailado de Peles-Vermelhas (27 de Março de 1920), «grande baile de caridade em S.Carlos», com a participação de Almada.

7 Em 1983, Vítor Pavão dos Santos, então director do MuseuNacional do Teatro, conversou com Maria da Conceição de Mello Breyner(conhecida como Tatão), uma das bailarinas de A Princeza dos Sapatos de Ferro, de Almada, que declarou: «A HelenaCastelo Melhor gostava muito dessas grandes festas, mas os bailados eram umasbrincadeirazinhas. Antes de começar o grande baile, estava armada uma sala dotrono e havia uma espécie de palco, onde dançámos um bailadozinho grego. Nessetempo dançava-se muito. As minhas irmãs mais velhas, lembro-me de dançarem umasdanças gregas com outras senhoras, nos jardins da casa dos meus tios, naJunqueira [Palácio Burnay], ensaiadas por um senhor chamado Zenóglio» (Santos,1993: 12).

8 «Nesse espectáculo, que ficou célebre, e ao qualconstava que os russos tinham dado uma ajuda, Almada-coreógrafo tentava aquiloque poderá parecer impossível: pôr a dançar um grupo de jovens sem outra preparaçãoque não fosse alguma ginástica, agilidade própria da idade e muito entusiasmo,movimentando uma “multidão” de 66 bailarinos improvisados, no sumptuoso Bailado do encantamento, música de RuyCoelho, cenário e figurinos de Raul Lino, onde a mecénica Castelo Melhor erauma rainha de bicudo henin, rodeadade fadasprincesas, tocadoras de harpa, perfurmes, escravas, cavaleiros, numconjunto que dos Ballets Russes parece ter assimilado apenas o seu aspecto maisdecorativista» (Santos, 1984: 11).

9 Como se adivinhaatravés do testemunho de Maria da Conceição de Mello Breyner: «Nesse Verão,houve uma grande festa na nossa Quinta das Laranjeiras. Para animar a festafizemos um bailado, chamado O Sonho doEstatuário, que foi dançado no sítio onde estão as colunas da antiga portade Lisboa, no pinhal, onde havia uma espécie de casa de jantar ao ar livre. Oestatuário era o João Carlos, filho do pintor Carlos Reis, que adormecia edepois sonhava que duas estátuas se animavam e dançavam com ele, no seu sonho.O Almada fez a coreografia. Ele ensaiou a dança, mas a mim não me ensaiou nada.E eu disse-lhe: ’Ó Zé, então e eu?’ E ele respondeu-me: ’Tu não precisas que tediga nada. Já sabes, tens de acabar ali em cima, portanto inventas, danças epronto’. E eu não sabia nada, mas os outros também não sabiam e quando meapanhava no palco queria lá saber se havia gente na plateia ou não, como era acoisa que mais gostava, queria era dançar’» (Santos, 1993: 31-32).

[1] «Bem sabemosque não atingiu ainda o Ballet português uma categoria, um desenvolvimento e umnível artísticos que expliquem ou proporcionem estudos profundos; […] Existe,realmente, algo a que se possa chamar Ballet português? Há, realmente, emPortugal uma actividade balética notável? Tem, realmente, o bailado clássico umdesenvolvimento em Portugal? Eis algumas perguntas necessárias mas de difícil ecomplexa resposta.

À primeira responderemos: “não”; não há, por enquanto,qualquer conjunto de características estéticas que dêem uma fisionomianitidamente portuguesa ao Ballet. É evidente que um agrupamento como o dos Bailados Verde Gaio não pode ser, pelassuas características, tomado como um agrupamento de Ballet. Contudo, naestética dos Bailados Verde Gaio estáa base daquilo a que um dia – quando essa estética vier a ser enformada pela técnica clássica –poderemos chamar o Ballet português.

Quanto à actividade balética portuguesa, poderemos dizer queela não é notável no ponto de vista técnico e artístico mas que o esforço paraa criação de uma tradição clássica em Portugal tem sido notável.

Finalmente, à última das perguntas seremos obrigados aresponder que, por enquanto, ainda o bailado clássico não tem entre nós umdesenvolvimento brilhante» (Ribas, 1959: 235-236).

10 As grandesestrelas internacionais não passavam por Lisboa, já que o S. Carlos não tinhacorpo de baile, e, até ao advento dos Ballets Russes, as grandes companhias nãofaziam digressões. A apresentação em Portugal (Lisboa, melhor dizendo) decompanhias ou bailarinos internacionais era de tal maneira rara, que, após apassagem de Ana Pavlova em 1919, apenas em 1930 surgiria uma outra “bailarina” (LeaNiako), e dois anos depois o alemão Alexander von Zwein.

11 Único texto colectivodo futurismo português, embora Almada tenha afirmado tê-lo redigidointegralmente, o que parece ser comprovado por um documento recentementepublicado em Ferreira, 2013: 58-59.

12 A I Guerra e a Revolução Russa reduziam cada vez mais onúmero de contratos e mecenas. Para além disso, Nijinsky, estrela da companhiae amante de Diaghilev, tinha-se casado com Romula de Pulsky durante a digressãoà América Latina e abandonara a companhia. Em Portugal, depois de se depararcom um teatro que “parecia um circo e se chamava mesmo 

 

Bibliografia:

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