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A curadoria como meio de expressão, reflexão e intervenção

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Vista da exposição Who Owns the Street. Van Abbemuseum, 2016-2017. Cortesia de Van Abbemuseum.

Mariana Roquette Teixeira

Ao longo das últimas décadas, o curador de exposições tem vindo a ocupar um lugar cada vez mais influente no mundo da arte. Na realidade, este é o culminar de um processo de transformação da profissão cujo início remonta ao final da década de 1960 e início de 1970, e que está associado a um fenómeno de contra ou anti-museu. Muitas das práticas curatoriais a que hoje assistimos têm as suas raízes, consciente ou inconscientemente, de forma assumida ou não, no trabalho desenvolvido por curadores que dirigiram de forma heterodoxa importantes instituições como Willem Sandberg (Stedelijk Museum Amsterdam), Knud W. Jensen (Louisiana Museum, Humlebaek), Pontus Hultén (Moderna Museet Stockholm), Harald Szeemann (Kunsthall Bern), Peter F. Althaus (Kunsthalle Basel), Jean Leering (Van Abbemuseum, Eindhoven), ou que desenvolveram outras formas de resistência às estruturas institucionais através da exploração de novas estratégias de apresentação e distribuição da arte contemporânea, como Seth Siegelaub e Lucy Lippard. Por outro lado, a influência de alguns destes profissionais é igualmente visível no modo como os curadores contemporâneos constroem os seus percursos e procuram criar imagens de marca através do seu corpo de trabalho. Às funções da exposição, conservação e divulgação da arte contemporânea, o curador dos nossos dias acumula outras tantas que lhe conferem poderes de legitimação e até financeiros, contudo, é na prática expositiva enquanto meio de expressão, reflexão sobre o mundo e intervenção que se centra este artigo e em particular no legado da geração de 1960.

Alguns dos star curators da actualidade, como Hans Ulrich Obrist e Jens Hoffmann, têm apresentado, na forma de livro, relatos pessoais sobre os seus próprios percursos curatoriais. “Ways of Curating” (2014) de Obrist e “Theater of Exhibitions” (2015) de Hoffmann seguem sensivelmente a mesma lógica, a uma análise de momentos chave da história da curadoria dos séculos XX e XXI e à reflexão de uma série de problemáticas por esta levantadas, juntam-se revelações sobre os seus próprios modus operandi, influências, e motivações que os conduziram a determinadas linhas de actuação.

Independentemente dos objectivos editoriais associados a estas publicações, através da revisão e reflexão sobre os seus projectos, em diferentes momentos do seu percurso, os curadores constroem um discurso no qual o seu corpo de trabalho é apresentado enquanto um todo, como uma obra, que reflecte uma série de preocupações e interesses pessoais. Podemos apontar como exemplo pioneiro desta prática de auto-análise, mas neste caso na forma de exposição, duas mostras de Harald Szeemann, nas quais o curador suíço apresenta e/ou reflecte sobre o seu trabalho e anuncia os seus planos para uma fase seguinte.

“8 1/2: documentation 1961-1969” (1970), a primeira mostra que Szeemann realizou após a sua saída da Kunsthalle Bern, pode ser vista, como um marco de transição entre o “período Kunsthalle” que terminara e o “pós-Kunsthalle” que então se iniciava, e simultaneamente, a apresentação ao público da recém-fundada “Agência para o trabalho espiritual estrangeiro”, que acabava por ser uma espécie de institucionalização do próprio curador. Apresentada na Galerie Claude Givaudan (Paris), esta mostra conjugava uma área marcadamente documental, onde eram apresentados catálogos, cartazes e documentos diversos referentes às suas exposições anteriores, e uma série de environments criados por Klaus Rinke, os quais, de certo modo, remetiam para aqueles conturbados oito anos e meio na Kunsthalle. Na fachada fora pendurado um estandarte com o brasão do cantão de Berna, simbolizando a ideia “Agentur für: In Berne leben, nicht von Bern leben.” (Agência para: Vivendo em Berna, não vivo de Berna”). Este exercício retrospectivo, sugere que Szeemann não pretendia levar a cabo uma total ruptura com o passado, encontrando aí, como o seu percurso demostraria, uma série de territórios que ambicionava explorar com maior profundidade no futuro. Quatro anos mais tarde, num momento em que repensava o seu papel de ausstellungsmacher (“fazedor de exposições”), termo por ele definido para caracterizar a sua profissão, Szeemann experimenta uma exposição como representação do íntimo, que surgia como reacção à grande Documenta 5, mas que continha em si uma continuação das mitologias individuais que tinham dominado essa mostra. “Avô: Um pioneiro como nós” (1974) era dedicada ao seu avô, um revolucionário maître-coiffeur, e foi apresentada num espaço não convencional, o seu apartamento em Berna, de onde se preparava para sair. Esta combinava uma área documental, onde Szeemann procedera a uma interpretação dos documentos de Etienne Szeemann, e um environment, criado com os seus pertences, através do qual o curador pretendia não só documentar uma existência, mas evocar uma presença. Esta exposição funcionava como uma crítica às práticas burocráticas e autoritárias das instituições culturais e simultaneamente como reivindicação da autonomia e liberdade de expressão na realização de exposições. Aqui, o curador suíço deixou claras as suas visões, princípios orientadores, intenções e ideias sobre o uso da exposição como meio de expressão pessoal e evento para ser experienciado livremente.

Curiosamente esta mostra terá servido de inspiração para “The Kitchen” (1991) de Hans Ulrich Obrist e, consequentemente, contribuído, tal como os projectos de Lippard e Siegelaub, para as suas pesquisas sobre diferentes modos de exposição, que marcam a primeira fase do seu percurso. Por outro lado, o discurso referente à exposição enquanto experiência criada pelo curador e nesta medida uma obra autoral, tem alguns pontos de contacto com o posicionamento de Jens Hoffmann.

Hofmann, que com Szeemann partilha um background na área do teatro, afirma “A minha prática curatorial tem-se sempre baseado, especificamente, em criar uma experiência para uma audiência em vez de situar objectos em narrativas de história da arte. (...) Considero a minha prática uma reflexão alargada sobre o tipo de experiência que pode ser criada com a arte no espaço de uma exposição.” [1] Szeemann experimentou inúmeros modos de exposição, procurando dar prevalência à experiência e libertar a expressão subjectiva da forte carga informativa que a acompanhava, alcançando um ponto alto com “When Attitudes Become Form” (1969) que serviu, por sua vez, de ponto de partida para “When Attitudes Became Form Become Attitudes” (CCA Wattis Institute for Contemporary Arts, 2012) comissariada por Jens Hoffmann, que consistia, nas palavras do curador, “numa sequela, e numa reavaliação da lendária exposição” [2].

Ao reflectir sobre a exposição como meio criativo, subjectivo, e sobre o curador como autor, Hoffmann é bem menos radical que Szeemann, explicando que “A maneira como eu uso a ideia de autor na minha prática tem em consideração e segue a ideia de autoria como ‘um certo princípio funcional através do qual, na nossa cultura, limitamos, excluímos e escolhemos’, como definido por Michel Foucault (...). O resultado deste processo de selecção pode ser chamado uma criação única e nova (...)” [3]. Por sua vez, a qualidade autoral do trabalho do curador suíço assentava não só na temática, de forte interesse pessoal, como na selecção do material e no modo de exposição desenvolvido, que incorporava muitas vezes estratégias artísticas. Esta obra seria o resultado da acção de obsessões pessoais. Neste caso, o curador estava no centro da produção, surgia como figura primordial. Tal postura terá desencadeado em 1972, aquando da Documenta 5, a acusação dirigida a Szeemann de usar as obras de arte ao serviço dos seus propósitos, ou seja, para ilustrar a sua própria teoria. Por sua vez, aos olhos de Hofmann e Obrist a figura do curador surge como uma parte da grande estrutura, apesar da posição que ocupa. Deste modo, o director artístico da Serpentine Galleries (Londres) considera que a afirmação de que actualmente os curadores se tornaram artistas ou que competem com estes últimos pela primazia na produção de significado foi longe de mais, defendendo que do mesmo modo que a actividade do artista sofreu muitas alterações ao longo do século passado, chegando a entrar em áreas próximas da curadoria, também o papel dos curadores tem vindo a expandir-se.

Este debate leva-nos por outro lado à questão da liberdade. Ao longo da sua carreira, Szeemann reivindicou constantemente a sua liberdade de acção no campo da curadoria. Decidiu afastar-se das instituições, criando a “Agência” e o “Museu das Obsessões” de forma a desenvolver um trabalho como curador independente, posição que logo se manifestou muito difícil de manter.

Com a chegada do novo milénio vários foram os curadores independentes que passaram a dirigir importantes instituições de arte procurando introduzir nas suas programações algumas das linhas que haviam marcado a sua actividade anterior, nomeadamente, a crítica às instituições e ao sistema da arte.

Um exemplo paradigmático é o programa levado a cabo por Charles Esche no Van AbbeMuseum (Eindhoven). Assente nos conceitos de “experimental institucionalism” e “museu disperso”, este consiste, de certa forma, na adaptação ao contexto institucional do posicionamento alternativo, à margem da norma, que marcara o seu percurso anterior.

Com base nos pressupostos do “New Institutionalism”, que recusava “o discurso da obra de arte como mero objecto” e “todo o modelo institucional a ele associado”, [4] Esche trabalha uma ideia de museu como espaço de questionamento, de crítica, “(...) que mediante a arte apresenta diferentes formas de imaginar o mundo, abrindo-as à experimentação”, [5] e no qual exposições, conferências, screenings, debates, workshops possuem a mesma relevância. Os projectos que tem comissariado ou integrado na programação do museu, aprofundam temas essenciais da actualidade e procuram desafiar o público a reflectir e a agir, a procurar alternativas aos modelos dominantes. Aqui está subjacente uma ideia do curador enquanto agente de mudança social, que usa a exposição e outras práticas, como forma de pensamento, reflexão e consciencialização do público para o estado do mundo.

Apesar de, nos seus ensaios e entrevistas, Charles Esche não fazer referência ao conceito de “museu aberto” desenvolvido por um conjunto de curadores (Hultén, Szeemann, Althaus, Leering) em colaboração com artistas no final da década de 1960, é evidente a influência deste nas suas ideias. Num momento de grande agitação social e política, o “museu aberto” surge associado a uma forte vontade de transformação do modelo tradicional dominante, marcado pelo elitismo, conservadorismo e autoritarismo, de modo a ser empreendida uma renovação que tivesse em conta as necessidades e interesses da sociedade de então, bem como as exigências da nova produção artística. Com claras influências vindas do outro lado do Atlântico, nomeadamente, das ideias e projecto de Alfred H. Barr para o MoMA, bem como de pioneiros europeus de uma “nova” museologia como Alexander Dorner (Landesmuseum, Hannover), esta reacção procurava redefinir o papel das instituições de arte na sociedade. Nas acções empreendidas encontramos influências dos situacionistas, nomeadamente, a incitação ao experimentalismo, como forma de combate à passividade e alienação urbana, a defesa de uma pedagogia assente na liberdade, partilha e criatividade, a transformação da cidade e a intervenção no quotidiano.

Grande parte deste léxico é adoptado por Esche no seu discurso, tornando-se claro que, na busca por alternativas à instituição museológica como local de lazer e consumo, o curador inglês recupera a essência do conceito original de “museu aberto”, antes deste ser absorvido pela máquina do capitalismo e corrompido pelo sistema, como acontecera primeiro no Centre Georges Pompidou e depois um pouco por todo o mundo. Apesar do curador inglês não assumir retrabalhar esta ideia de forma a expandi-la e conferir-lhe uma nova vida, na sua programação são vários os indícios desta forte referência. Por exemplo, “A Rua: Forma de Sociedade” (1972), com curadoria de Jean Leering, a qual procurava “(...) investigar modos de convivência” [6] centrando-se na rua como “forma de ambiente visual” [7] foi revisitada em “Living Archive” (2005-2006) e, mais recentemente, referenciada, pela sua relevância, em todos os projectos de “Who Owns The Street?” (2016-2017). Aquando desta mostra Leering explicara que: “A rua é o lugar por excelência onde as opiniões e as ideias tornam-se públicas e podem ser desenvolvidas” [8], “Ao escolher um tema desta natureza, o Van Abbemuseum procedeu a partir do ideal de que as atividades de um museu podem ser um meio de estimular a consciencialização do público e participação em acontecimentos socialmente relevantes” [9].

A programação do Van Abbemuseum, desde que Esche assumiu a direcção, manifesta uma particular preocupação pelo debate de questões sociais e políticas da actualidade, defendendo a necessidade de desenvolvimento de pensamento utópico. As relações entre arte e política, como a arte pode ser posta ao serviço da política, e por outro lado, como o poder político pode actuar de forma censória quando vê na arte uma ameaça foram aprofundados em “Art, Property of Politics IV: Freethinkers’ Space Continued” (2012). Com esta e outras mostras como “Political weather forecast: Informational Weather by Sarah van Sonsbeeck” (2012/13), Esche pretende que o museu intensifique a sua posição na sociedade, fomentando o debate político, tal como, quase meio século antes Pontus Hultén ansiara com a apresentação no Moderna Museet de “Poetry Must Be Made By All! Transform the World!” [10] (1969), comissariada por Ronald Hunt. O título, ao citar o poeta francês Conde de Lautréamont (“A poesia deve ser feita por todos. Não por um.”) e o filósofo e revolucionário alemão Karl Marx (“Os filósofos limitaram-se a interpretar o mundo de diversas maneiras; o que importa é modificá-lo”) remete para a união entre arte (práticas artísticas de vanguarda) e política (partidos revolucionários), para o papel da arte na transformação de realidades sociais e políticas. Através de uma abordagem à desmaterialização da arte esta mostra procurava mostrar a arte como um bem ao serviço de todos com o poder de intervir no quotidiano e contribuir para a criação de uma sociedade nova, não-hierárquica [11]. Paralelamente, às manifestações históricas, que Hunt escolhera documentar, o museu abrira-se a organizações políticas, a dissidentes, soldados desertores e à opinião pública.

Com o fracasso político dos long 60’s e com o retorno do conformismo surge a proclamação do fim das utopias que em diálogo com o pensamento histórico haviam definido os “tempos modernos”. Apesar do pós-modernismo duvidar das utopias falhadas e opressivas da modernidade, há quem defenda, como Marianne DeKoven, recuperando o legado de Jürgen Habermas e de Frederic Jameson [12], que o desejo utópico persiste, já não revolucionário, e sim em condições “limitadas”, “pós-utópicas” e “anti-utópicas”, passando a assumir formas silenciosas, múltiplas, difusas, locais [13].

Em “Be[com]ing Dutch - Gatherings” (2008), Charles Esche procurou reunir artistas, pensadores e público de forma a desafia-los a imaginarem formas alternativas e criativas de viver em sociedade. Alguns anos mais tarde, com “Lissitzky – Kabakov: Utopia and Reality” (2013), o curador procura reflectir sobre duas dimensões sociais da arte: a arte como reflexo da sociedade contemporânea e, por outro lado, como revelação de outros mundos possíveis.

De facto a radicalidade das iniciativas desenvolvidas ainda no espírito de 1968, já não se volta a sentir. Em 1971, Pontus Hultén comissaria “Utopias & Visões 1871-1981”, a qual reflectia sobre tentativas e propostas de transformação da sociedade. A uma parte documental, centrada no quotidiano dos setenta dias de existência da Comuna de Paris, seguiam-se “três situações utópicas contemporâneas”. A primeira, “Världsspel” (“Jogo Mundial”, 1961) de Buckminster Fuller, era um plano que visava criar soluções para a superpopulação e desigualdade na distribuição dos recursos globais, num momento em que esses problemas ainda não tinham o impacto de hoje. Uma das invenções de Fuller no campo da arquitectura e engenharia – a reinvenção da cúpula geodésica como abrigo – foi trazida para a exposição [14]. Construída no jardim do museu, aquele exemplar serviu para albergar os espectáculos de música e cor de Don Cherry e Moki (sua mulher), para além de uma série de actividades educativas, dando vida a outra situação utópica: “The life exploring music force” [15]. Por último, o grupo E.A.T (Experiments in Art and Technology) contribuiu com uma situação de comunicação, intitulada “Utopia Q & A”, que consistia numa ligação telex entre as cidades de Nova Iorque, Estocolmo, Bombaim e Tóquio, que permitia ao público colocar questões e responder a outras tantas sobre como seria o mundo em 1981. A relevância desta situação assentava na possibilidade de diálogo e troca de ideias sobre o futuro, entre pessoas de culturas bastante distintas, alcançando-se assim, um universo extremamente rico de possibilidades. Sobre as visões do mundo em 1981, Hultén constata que “Os indianos foram sobretudo naïfs, os americanos sofisticados, os suecos políticos e os japoneses pessimistas... mas mesmo no pessimismo, há uma função criativa...”. [16]

Os projectos desenvolvidos com vista à implementação da ideia de “museu aberto” eram mais arrojados, desafiantes e impactantes do que aqueles que nos dias de hoje seguem essa linha, quer em contexto institucional como alternativo. Esta mudança pode ser parcialmente explicada pela transformação da sociedade e consequentemente de uma oferta cultural superabundante. Terá a arte, no cenário actual, com a preponderância do mercado, a capacidade de manter-se como campo de resistência, ou haverá o risco de ser tornar um simulacro de oposição?

Ao longo da última década, tem-se assistido a uma forte insistência na politização da arte. Tal situação é comummente associada, como seria inevitável, à grave crise, não só económica e financeira mas também política e social, que assolou o planeta. Muitos curadores, em grande parte das novas gerações, apresentam uma postura de compromisso social e político, classificando o seu trabalho como alternativo, anti-burguês, activista, anti-institucional. Assim, um cada vez maior número de exposições, projectos, bienais ocupam-se de grandes temas como a democratização da arte, a igualdade de género, de raça, centros e periferias.

Contudo, a esta tendência estão associados dois aspectos que, a nosso ver, podem torná-la contraproducente: por um lado, muitos destes projectos curatoriais recuperam um tipo de discurso e soluções ensaiadas durante a década de 1960, reutilizando, por vezes, acriticamente algum do seu léxico; e por outro, manifestam uma enorme insistência nas mesmas problemáticas e modos de abordagem, correndo o risco de virem a provocar uma espécie de banalização da crítica.

Como podem então tais projectos social e politicamente comprometidos assumirem-se como experimentais, interventivos, catalisadores de mudança? A maioria destes prometem escrutínio crítico e reflexão, integração do público como participante activo no debate, e alargamento da área de actuação de forma a chegar a uma audiência alargada. Mas na realidade quais são os seus resultados? Não estarão estes projectos a canonizar os contra-modelos de outrora?

Esta avalanche de revivalismos tende a produzir “discursos numa língua morta” [17], ou a valorizar de tal modo a forma que não se apercebe da perda de conteúdo direccionado para o presente. Não será esta uma outra forma de espectáculo? O espectáculo contra o espectáculo? Um dos maiores desafios dos curadores ao tratar determinados temas, como os anteriormente mencionados, é precisamente encontrar novas formas de o fazer, que tenham presente a constante transformação dessas mesmas problemáticas. Por exemplo, num momento em que nos Estados Unidos, as políticas anti-imigração de Donald Trump, intensificam o debate sobre a descriminação contra cidadãos nascidos no estrangeiro, o Davis Museum do Wellesley College, através da iniciativa “Art-Less”, procurou demonstrar como a nação seria bem mais pobre se ao longo da história não tivesse permitido a entrada de imigrantes no país. Este inovador gesto de protesto consistiu na desinstalação ou ocultação com panos pretos de todas as obras criadas ou doadas por emigrantes e que integravam a exposição da colecção. No lugar destas foram colocadas legendas com a seguinte informação: “made by an immigrant #art-less” ou “given by an immigrant #art-less”. Durante seis dias, os visitantes do museu foram privados de ver 20% da colecção exposta, da qual faziam parte, desde um vaso grego do séc. IV a.C. doado por John e Halina Klejman, passando por peças de arte africana doadas por Gustave Schindler até uma pintura de Willem de Kooning ou uma escultura de Ana Mendieta. O museu disponibilizava ainda as referidas legendas no seu website para todas as instituições que se sentissem identificadas com o protesto e se quisessem juntar à iniciativa.

Esta atitude com vista a uma tomada de consciência fora bem mais arriscada do que aquela empreendida pelo MoMA ao incluir nas galerias da colecção obras de artistas provenientes dos países maioritariamente muçulmanos, cuja entrada nos Estados Unidos fora proibida pelo presidente Donald Trump. Enquanto, esta última atrairia mais visitantes ao museu, a primeira poderia, entre outros prejuízos, desencadear desagrado por parte daqueles que eram surpreendidos pela impossibilidade de ver uma determinada obra que tinha sido a razão da sua visita.

À pergunta se será ainda possível reconhecer inovação na prática curatorial, Hoffmann responde: “é impossível para qualquer campo progredir verdadeiramente sem compreender o seu próprio passado. (...) Inovação curatorial, novas teorias da curadoria, e discurso crítico devem ser bem vindos e encorajados” [18]. Assim, não podemos confundir a importância do aprofundamento do conhecimento sobre o passado com uma obsessão fetichista e saudosista de dado momento histórico, a qual não nos deixará prosseguir. Como refere Hoffmann, “Somente podemos esperar que a verdadeira inovação encontre o seu caminho independentemente de quão complexas ou difíceis forem as condições do actual mundo da arte.” [19]

Mariana Roquette Teixeira

Investigadora no Instituto de História da Arte da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, e doutoranda em História da Arte – Museologia na mesma Universidade, tendo-lhe sido atribuída uma bolsa de doutoramento pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia. Licenciada em História da Arte e mestre em Museologia, encontra-se a terminar a sua tese, Expor a História: O passado no presente. Paris-New York 1908-1968 (1977) e Monte Verità 1870-1970 (1978), para a qual levou a cabo investigações no Getty Research Institute e no Pôle Archives do Centre Pompidou. Ao longo dos últimos anos tem participado em seminários e conferências sobre história das exposições e da curadoria. É autora de textos publicados em revistas, catálogos e publicações académicas.

a autora escreve de acordo com a antiga ortografia

 

1. HOFFMANN, Jens – Theater of Exhibitions. Berlin: Sternberg Press, p.27. Tradução livre.

2 “CCA Wattis Institute Presents: When Attitudes Became Form Become Attitudes” [online] 2012. https://www.cca.edu/news/2012/08/08/cca-wattis-institute-presents-when-attitudes-became-form-become-attitudes [Consultado a 01-04-2017]. Tradução livre.

3 HOFFMANN, Jens – op.cit., p.33. Tradução livre.

4 EKEBERG, Joans – New Institutionalism. Oslo: Office for Contemporary Art, Oslo, 2003, p.9.

5 ESCHE, Charles – “Instituição artística desviante”. In Performing the Institution(al), ed. João Mourão e Luís Silva, Lisboa: Kunsthalle Lissabon, 2011, p.37.

6 OBRIST, Hans-Ulrich – A Brief History of Curating. Zurich: JRP | Ringier Kunst Verlag, 2008, p.72. Tradução livre.

7 BRAMS, Koen, PÜLTAU, Dirk – “Once it’s gone, it’s gone: Interview with Jef Cornelis about the television films Mens en agglomeratie (1966), Waarover men niet spreekt (1968) and De straat (1972)”, 2006. http://jefcornelis.janvaneyck.nl/interview_02.php. [Consultado a 06-06-2013]. Tradução livre.

8 Who Owns The Street?. https://vanabbemuseum.nl/en/programme/programme/who-owns-the-street/. [Consultado a 06-04-2017].

9 POYNOR, Rick – Jan van Toorn: Critical Practice. Trad. Jan Wijnsen. Rotterdam: 010 Publishers, 2008, p.103.

10 A exposição itinerou por Munich (Kunstverein), Dusseldorf, Vancouver.

11 HUNT, Ronald – “Introduction”. In Poesin måste göras av alla! Förändra världen!/Poetry must be made by all! Transform the world!. Moderna Museet Stockholm, 1969, p.6.

121 JAMESON, Fredric – Postmodernism, Or the Cultural Logic of Late Capitalism. Durham: Duke University Press, 1991.

13 DEKOVEN, Marianne – Utopia Limited. Durham and London: Duke University Press, 2004, pp.16, 23, 25.

14 Uma versão desta construção geodésica – Bucky Dome – foi construída pelo Moderna Museet no verão de 2012 para funcionar como pavilhão de música, arte, arquitectura e design.

15 1871-1981 utopier & visioner Moderna Museet Stockholm. Moderna Museets untställningskatalog nr. 94. Skånetryck AB Malmö, 1971, pp.12-13.

16 NERET, Gilles - Mais qui est Monsieur Pontus Hulten? (entrevista a Pontus Hultén). L’Oeil. N.220, novembre 1973, p.33.

17 JAMESON, Frederic – Postmodernism and Consumer Society. http://art.ucsc.edu/sites/default/files/Jameson_Postmodernism_and_Consumer_Society.pdf. [Consultado a 06-04-2017]. Tradução livre.

18 HOFFMANN, Jens – op.cit., p.82. Tradução livre.

19 Ibidem, p.82 

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