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Rúrí: And now what?

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André Silveira

 

And now what? — exposição da islandesa Rúrí (1951) que pode ser vista no Museu Internacional de Escultura (MIEC) de Santo Tirso até 25 de Junho — junta seis peças da artista que dão desde logo conta da multiplicidade de meios de expressão a que esta recorre, da performance à instalação, passando pela fotografia ou vídeo. Visão de conjunto do trabalho de Rúrí que com o vídeo Items traça a elipse até ao momento inicial do seu longo percurso, que recua a Golden car e How to change the icelandic costume to meet with the modern icelandic society. Duas performances de 1974, realizadas na capital da Islândia, Reiquiavique, no ano em que termina a sua formação inicial na Escola Islandesa de Artes e Ofícios. Daí prossegue os estudos em Haia, entre 1976 e 1978, realizando no ano seguinte a primeira versão de Items, vídeo reconstruído em 2005 e exibido no piso inferior do MIEC.

Em Items, Rúrí expõe um entendimento do mundo como incomensurável, ainda que refira que a proliferação de objectos, materiais ou ideias não torna menos necessários para a construção da sua imagem completa, mesmo quando aqueles elementos permanecem ininteligíveis. Uma imagem que, de resto, diferirá tanto quantas as diferentes experiências de contacto com os diversos itens, duplicando assim a impossibilidade de um exercício de circunscrição ou fixação da totalidade do mundo. Acercamento que em Items depende do encadeamento de palavras isoladas que vão compondo frases sucessivas, em que se fixam oposições que eventualmente tornam obsoleto ou dão conta dos limites de qualquer sistema de conhecimento. No mais, é precisamente no jogo entre oposições, diferentes perspectivas ou, de modo eventualmente mais preciso, na possibilidade de densificação do significado dos seus diversos componentes que as peças de Rúrí aparentam estabelecer uma continuidade não só entre elas, mas igualmente ao longo dos processos seriais em que estas radicam.

Assim, à semelhança da reconstrução de Items, também Elimination II (2006), Future cartography XIII (2023), World map laboratory (2023) e Water balance IV (2023) retomam práticas ou prolongam séries de trabalhos anteriores. Elimination II, com que se inicia o percurso expositivo, é uma instalação composta por vinte e oito impressões de fotografias de cascatas islandesas recuperadas da peça que Rúrí levou à 50ª Bienal de Veneza, em 2003, Archive – endangered waters. Nesta última obra, um conjunto de cinquenta e duas cascatas em perigo de destruição ou desaparecimento podiam ser vistas e ouvidas ao manusear um dispositivo semelhante a um armário metálico com gavetas na vertical, denotando como a passagem a arquivo pode também corresponder a um momento de elisão. Por sua vez, Elimination II mostra já o grupo de vinte e oito cascatas entretanto destruídas ou severamente afectadas na sequência da construção da barragem na zona de Kárahnjúkar, uma infraestrutura cujo único propósito visou o fornecimento energético de uma fundição de alumínio detida por investidores internacionais.

Se esta peça dá já conta do impacto ambiental e social provocado pela exploração de recursos naturais, no caso o acesso a água como fonte de energia, do modo como movimentos globais podem ser sentidos localmente, tanto no que diz respeito à circulação internacional de capital, como no que concerne aos efeitos da sua actividade sobre territórios e populações em concreto, a temática é continuada e acrescenta um novo plano de discussão em Water balance IV. Numa versão anterior, Water balance II, de 2017, Rúrí referiu a disposição dos frascos de vidro como remetendo para o processo migratório de refugiados, numa montagem em que esta peça era exibida junto de Future cartography VIII. Esta última, tal como nas restantes versões, entre as quais Future Cartography XIII, exposta no MIEC, apresenta mapas cartográficos redesenhados tendo em conta a projecção da subida de cota do nível da água do mar no caso do derretimento do permafrost da Antárctida. Se esta é uma projecção apocalíptica, cifrada em várias dezenas de metros e em contraste profundo com as previsões de uma subida de cerca trinta centímetros até 2050, a identificação em mapa de zonas povoadas torna desde logo clara a dimensão dos movimentos populacionais implicados por qualquer um dos cenários.

 

 

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É ainda nesta linha que se pode colocar World map laboratory, performance e instalação que também encontra relações evidentes com peças anteriores. Já em Termining, instalação de 2008, Rúrí havia construído um dispositivo em que uma impressão de sete metros de comprimento de uma fotografia de Tötrafoss, uma das cascatas que desapareceu na sequência da construção da barragem de Kárahnjúkar, é destruída por uma trituradora de papel accionada à passagem do espectador. Aí, coloca em jogo a relação directa entre a aproximação à instalação e o desaparecimento da imagem como eventual metáfora do efeito destrutivo da ocupação e exploração de mais e mais território, a que acresce a impossibilidade de antecipar a extensão triturada a cada passagem por via de uma programação que torna aleatória a quantidade de papel destruído. Já em Termining III, de 2018, Rúrí recorre novamente a trituradoras de papel para planeada e sistematicamente desfazer imagens de um atlas mundial. Exercício agora continuado no MIEC em Worl map laboratory a partir de A terra vista do céu. Em ambos os casos, os restos de cada folha são colocados dentro de um saco de celofane etiquetado, onde constam as informações geográficas relativas à área coberta pelo mapa, sendo estes depois dispostos em parede. Destruição necessária pelo próprio refazer da cartografia futura, mas que coloca igualmente em cima da mesa o modo como o acercamento é já possível eliminação, denotando eventualmente que também a cartografia foi e é parte essencial do exercício de poder colonial e neo-colonial e da sua expansão global. De resto, a exatidão pretendida por Rúrí na identificação precisa da georreferenciação daqueles locais é extensível a Archive — endangered waters, ao cuidado aparente no modelo de projecção da subida da água mar nos diversos Future cartography ou, ainda, à catalogação da água nos frascos de Water balance.

Mas And now what? apresenta ainda Forest, instalação inédita criada a partir de cinzas e fragmentos de árvores queimadas, recolhidas nas áreas afectadas pelo incêndio que lavrou em Santo Tirso em 2022. Forest é composta por diferentes elementos: a recolha de restos do incêndio em sacos de celofane etiquetados e fixados em parede — como no caso de World map laboratory; o arranjo de detritos ao longo do corredor que dá acesso às salas do MIEC onde, em exposição permanente, se percorre a história da região; encontrando-se ainda nessas salas diversas frases que remetem para memórias sensitivas ou estéticas do percorrer de uma floresta, que recordam a obra de Alberto Carneiro pela possibilidade de reactivação dessa mesma memória. A opção por colocar Forest junto a um acompanhamento cronológico da ocupação humana da zona de Santo Tirso, do seu desenvolvimento social e industrial, contribui ainda para um possível cruzamento com o debate em torno das noções de antropoceno, plantatianoceno e capitaloceno.

Em parte, ainda que não constituindo o seu tópico mais decisivo, este debate é marcado pela definição da baliza inicial de cada periodização de uma era geológica definida pela acção humana. Seja aquela o surgimento do homo sapiens, a sedentarização resultante do desenvolvimento da agricultura ou um modelo de produção baseado nas plantações, uma conformação político-económica de base capitalista que tornou indissociável a afirmação do estado-nação moderno e o aprofundamento de redes de comércio sustentadas na circulação de capital, ou, por fim, marcando o começo com a primeira revolução industrial. Porém, todas as propostas confluem na identificação da segunda metade do século XX como o momento em que os efeitos da acção humana sobre o globo entram simultaneamente em aceleração e se começam a fazer sentir persistentemente. E que, actualmente, com o aprofundamento da financeirização da economia em toda a cadeia produtiva e de consumo, a expansão e intensificação da revolução verde, os novos processos de mineração necessários a uma inovação tecnológica dependente do recurso a metais raros, entre outros, parece comprometer ou dificultar qualquer amenização ou reversão das alterações climáticas. Contradição identificável entre as bases infraestruturais e regulatórias de algumas das propostas para uma nova economia verde e os objectivos que esta pretende cumprir, paradoxo igualmente presente em Archive, na série Elimination ou mesmo em World map laboratory enquanto possíveis constatações por outros meios da segunda lei da termodinâmica: o regresso ao zero absoluto é uma impossibilidade, a entropia um dado adquirido.

É também neste sentido que enquanto informação, conhecimento, proposição ou mesmo enquanto prática artística, pouco ou nada do que se encontra em And now what? é exactamente novidade — o que diz menos acerca da exposição do que da necessidade de reiterar os problemas que levanta. Os meios plásticos a que recorre e os dados para que aponta estão aí há décadas. Encontram-se na crítica a um modelo de desenvolvimento que se funda na desigualdade, no extrativismo (incluindo o homem nos recursos naturais), sustentável apenas num horizonte de crescimento infinito e que, nesse movimento expansivo, anula ou descarta materiais, temporalidades, relações sociais, expressões culturais, modalidades de conhecimento. Se é essa a interpelação que resulta do título da exposição, que também com ela se opere o que Alberto Carneiro definia como “o necessário volume de transformações para que a renovação se codifique e se torne eficaz no quotidiano colectivo”.

 

Rúrí 

MIEC 

 

André Silveira é licenciado em História da Arte, pós-graduado em História da Arte Contemporânea e doutorado em História da Arte—Teoria da Arte pela FCSH/NOVA. É investigador colaborador do GI ArtTHC do IHA: FCSH/NOVA e investigador do GI Estudos de Arquitectura do CEAA-ESAP. Colaborou com a revista L+Arte e, entre outras instituições, com a FLUC, a Escola de Artes da UCP, as Fundações Santander, Serralves, Calouste Gulbenkian ou Culturgest.

 

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.

 



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Rúrí: And now what?. Vistas da exposição no MIEC (Museu Internacional de Escultura de Santo Tirso. Fotos: cortesia de MIEC.

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