Entrevista a Filipe Marques
Olhar de frente e persistir é combater o caos
Artista plástico, Filipe Marques (1976, Vila do Conde) estudou na Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto e na Escola de Düsseldorf. Tem vindo a desenvolver uma prática artística consolidada, na qual as relações entre memória, identidade, história, sexualidade e poder ocupam um lugar estruturante. Are we all museums of fear?, exposição apresentada na galeria Lehmann + Silva marca o ponto de partida para esta conversa.
Eduarda Neves (EN): Are we all museums of fear? — frase de Charles Bukowski da qual te aproprias e transformas em pergunta — constitui-se como o primeiro momento de uma trilogia que integra um programa expositivo mais vasto. Queres falar sobre este projecto e os espaços aos quais estará associado?
Filipe Marques (FM): A grande lição de Ulisses é a de que o autoconhecimento será sempre um autoreconhecimento. Ora, isso tanto é válido para as pessoas como para as comunidades. O grande perigo que nos assola cada vez mais é a falta de memória. Perder a memória é perder o sentido e andar pelo mar sem uma Ítaca que dê sentido à nossa viagem, é simplesmente andar pelo mar. Resta saber para quê, se não sabemos quem somos e o que andamos por lá a fazer. A poesia dramática. A causa principal da vida humana e do mundo “finalis”. Este é o motivo, o amplo motivo para a Trilogia destas exposições. Debrucei-me sobre uma aula que vi e ouvi da Maria Filomena Molder, em 2020, em Vila do Conde. O mundo nasce ou morre conforme o predomínio do Amor ou da Discórdia. O meu grande sonho é poder vir um dia a exprimir toda a complexidade da humanidade numa fórmula tão simples que dê para a percepcionarmos numa exposição, literalmente, sem Obra. A procura desta simplicidade radical leva-me até à desconcertante forma como se exprimiam os filósofos pré-socráticos, como é o caso de Empédocles. Uma simplicidade tão estranha, a fazer lembrar aquela lucidez arcaica que só as crianças e os poetas têm o privilégio de conseguir alcançar. Este é o primeiro momento de uma trilogia expositiva na qual se seguirão, a All Animals Are Bad, All of Them are a Meal Away from Barbarity a ser apresentada no CCB e a And When I Die I Won ́t Stay Dead a apresentar no MNAC. Três momentos que incidem na dramatização do logos, onde haverá em cena alguém que faz perguntas e alguém que responderá ou reagirá às questões. Não pretenderei colocar-me no plano da dissimulação. Pretenderei atuar para provocar uma reação no público. Um fingimento. Não mentir. Uma técnica dramática. Uma poética. Infelizmente, é também isso que acontece num mundo de gente estúpida e inteligente. Vivem assim, lado a lado, iguais num mundo de pessoas supostamente iguais, apesar de iguais terem muito pouco. Infelizmente, juntar a perfeição da estupidez à perfeição da inteligência não dá uma perfeição ainda maior. Na verdade, acontece muitas vezes que somar implique subtrair. Dá, digamos, uma valente dor de cabeça antropológica que teima em resistir ao longo de um processo histórico que teve o seu início há muitos milhares de anos e que nunca terá um fim. Aproprio-me de um verso de um poema do Bukovski, do Poem for Nobody, um inusitado e longíquo poema de aragem sem se perceber que nos cospe na boca.
EN: Através de uma manifesta poética apropriacionista convocas a arte, a cultura e a história. Citações, viagens pelo pensamento e história da filosofia ocidentais, leituras em torno da ruína, tal como esta nos é proposta na obra de Walter Benjamin, uma conferência da filósofa Maria Filomena Molder, a ópera “Die Soldaten” de Bernd Alois Zimmermann, a “Salomé” de Oscar Wilde (via Strauss), fragmentos de mitologias contemporâneas, imagens de revolta e violência ou de filmes porno vintage, excertos de algumas coreografias de Martha Graham, Merce Cunningham, Trisha Brown e Pina Bausch, são materiais que esta exposição partilha. Se, por um lado, ela nos transporta para um certo “excesso” conceptual ou, se preferires, “intensidade”, por outro, a sua configuração aproxima-se de alguma economia ou contenção formal. Reconheces esta ambivalência ?
FM: Vazio e ardor. Talvez dizer muito. Atenuando o crocitar dos corvos. Essa intensidade. Como quando se morre sem nada e sem memória e os poemas passeiam no interior do fosso da orquestra ouvindo o terror da violação na DIE SOLDATEN e o cumprido desejo na SALOMÉ. Como se tal se confundisse no interior dos meus ossos e fosse possível ali haver poesia. Isto tudo é nada, quase nada. Há contacto, apego entre nós e os outros. Sedução, violência, atração, manipulação, sexualidade. Tudo o que a união representa, que caminha, corre, dança e toca-se, onde a mulher perde-se sob a opressiva presença masculina. As mãos de Bresson. Alguma reserva temos que ter quando se fala em manipulação e em poder. Há manipulador e há manipulado, sim. Mas também é preciso perceber as situações em que o manipulado o deseja ser. Nem sempre o manipulado é conduzido a pensar o que o manipulador quer que ele pense. O que pode antes acontecer é o manipulador dizer o que o manipulado quer ouvir, significando isto que também este tem mãos [manus] que moldam o discurso do manipulador propriamente dito, sendo, por isso, à sua maneira, igualmente manipulador. Os Myhtoi, a origem, não é um conceito que diga respeito a uma génese, a uma coisa que se formou. A origem é relativa a um conceito histórico. Tem a ver com um devir, uma coisa que está a fazer-se, no que se está a destruir, no que está a perecer e no que está a crescer pela primeira vez. A origem da tragédia é um mito. E o mito é na tragédia aquilo que está a perecer e está a renascer ou nascer pela primeira vez enquanto resultado do acto poético. O Oráculo, o transe provocado por substâncias alucinogénicas. As mulheres que entram em transe e dizem palavras, que convocam onomotopeias. Glossolalia, esquizofasias, neologismos e a anti-militarização da palavra que estão presentes entre o delírio, James Joyce e John Cage. O excesso. A presença do Punk na sua contra-cultura. Recriar a experiência do sono e dos sonhos. Um apelo a diversas técnicas como fluxo de consciência, alusões literárias, associações de sonhos livres e abandono das convenções narrativa. O prender-se a todo o processo de eclosão e declosão, desdobramento de estímulo e representação sensível do jogo de ideias sob atenta e repetida visualização das tragédias contemporâneas. Erotismo, orgias e epopeias. Édipo-Rei. Estados transcendentes há muitos. Umas vezes agónicos, outras suaves, ou ainda, por vezes, assertivos e hesitantes. Talvez sejamos todos, protagonistas e figurantes, demasiado pequenos para este grande filme que é a vida. Um filme sem realizador e produtor.
EN: A colagem e a assemblage têm uma grande presença no trabalho em papel, no filme e som que dominam esta exposição e materializa uma estética simultaneamente fragmentária e híbrida. Situam-nos perante uma espécie de corte, de fenda produtora de estranheza e sentidos, mais do que uma ferida que se subtrai à materialidade simbólica do corpo. Que jogo é este que se esconde no que se propõe mostrar?
FM: Um estranhamento do mundo. Nenhum dos meus projetos está dissociado da escolha das massas signícas, como é óbvio. Mas a pertinência da escolha é sempre indiferenciada. As minhas opções não são doxas, são paradoxas. Os materiais e suportes que escolho para o meu trabalho não se deixam capturar por eixos paradigmáticos. É uma matéria semiótica, uma matéria composta por vários tipos, veículos, signos, e é com ela que consigo criar o que pretendo, o tipo de imagens e objectos ou potenciar o interesse expositivo. O meu trabalho propõe fazer-se semelhante, com meios dissemelhantes. Meios dissemelhantes estes que têm sempre uma dimensão afectante e perceptual que nos ajudam, como um reflexo, a ver as coisas e não as discutir; através delas compreendemos melhor, ou não. É pegar, ou largar. Promovem sempre uma dimensão crítica, nunca puramente argumentativa.
EN: Recorrendo ao conceito de fenda para abordar criticamente a tua obra, pensas que a estratégia da apropriação e o cruzamento disciplinar que a atravessa pode constituir um processo que, formal e conceptualmente, te permite, no território da arte, unir o que está dividido, superar uma qualquer falha originária, fazer comungar o que, do ponto de vista da existência, talvez apenas reconheças como mise-en-abîme?
FM: De todo, sim. Bela conotação. Julgo que não seria possível outro diálogo mesmo tendo a consciência de que posso incorrer em graves incongruências nesse próprio cruzamento disciplinar, isso também é sofrimento. Mas é nesse esventrar, extravasar, nesse liquidificar de todas as compossibilidades de anomia que me desgasto a persistir, sobrevivendo no mundo. Com pessimismo e repudia. A minha vida tem sido uma pequena tragédia insignificante que terá uma significante e inevitável morte. Um culminar da humilhação.
EN: Em Are we all museums of fear?, figuras imóveis e narrativas fílmicas evocam não só a objectivação do fardo e o peso da história comum que todos carregamos — um qualquer arquivo do medo — mas também parecem sublinhar, através de alguma tensão, indisciplina e condição espacialmente disruptiva, a possibilidade de reimaginar o mundo. Concordas?
FM: Sim. Concordo. Volto, de novo, as costas para todos, para a minha fragilidade e vulnerabilidade. Reimaginar a desestruturação de um mundo. Uma sublevação originada por traumas com lutos não cumpridos. Relevada de um abandono. Uma disposição do abandono, de infelicidade, luto, lágrimas e humilhação, na qual a alegria também é possível e que me leva a perscrutar incessantemente os ecos que ficam dessa desestruturação. A minha obra a florir no interior, num lugar fora da natureza e tentar juntar os sítios separados. Fazendo aos poucos desvelar questões que têm estado escondidas nos enunciados artísticos que até hoje produzi. Tenho vindo a tentar criar um novo sentido de necessidade, um novo sentido de intimidade. Uma intimidade intra exógena. Como alguém disse, de fora para fora. A partir da periferia do centro. Talvez definir-me pelo uso de estratégias que exploram as zonas limite entre a arte e o meu quotidiano exterior. Tentar moldar a minha autopoiesis como autor e como indivíduo. Uma espécie de tentativa para colar, peça a peça, o despojo fragmentário da minha vida. Ir criando um referente de possibilidade e objetividade absoluta, uma cura. A origem das minhas falhas não tem retorno e a desestruturação do mundo, o reimaginar, poderá ser uma cesura sem retorno possível. Não tenho capacidade. Não tive culpa. Tento alçar pontes, alçar, alçar ainda. Talvez procure um absoluto não partilhável.
EN: Thomas Hirschhorn escreveu que não era filósofo mas precisava da filosofia para viver. Na tua obra os enunciados filosóficos são recorrentes. Lembro-me, entre outras, das exposições Knife and Wound ou Pandemic. Que sentido adquire essa inscrição na tua prática artística?
FM: Não sei. Não sei se será por fragilidade ou até, por alguma incapacidade minha que me faço acompanhar pela filosofia. A arte é, para mim, representação sensível da ideia, e os registos mais fiéis da filosofia, pelo menos para mim, são pontos de partida para a representação. A filosofia orienta-me para que o meu trabalho continue a subtrair-se a qualquer hipótese de reduzir os objetos a meros objetos, ajuda-me a transportar para a prática artística a experiência de sentir e pensar enquanto marcas do sujeito. Completa-me no sentido de organizar o meu caos e assim o materializar na arte, sem que tal signifique a subordinação a uma qualquer ordem de fins. Continuar como uma “finalidade sem fim” ou, ainda, poder explicar, talvez primeiro compreender, como é que a finalidade sem fim se articula com o meu caos e a minha anárquica autoscopia de origem clínica instável. Neste confronto procuro uma nova práxis artística, reivindicar um domínio permanente da arte. Tensão e combate. E neste caminho penso que a filosofia me pode favorecer. Pela minha fragilidade. Com a fragilidade de quem foi impossibilitado de anteriormente mais fazer e agora com a vertigem de ter que o fazer quanto antes.
EN: Um certo sentido do trágico, a experiência do sagrado, da violência física e simbólica no território do corpo, da sexualidade, da política, da cultura e da arte ou até do poder, são frequentemente visíveis no teu trabalho. A efectiva proximidade ao sofrimento, à doença e à morte, conferem à tua obra, ainda que indirectamente, um sentido autobiográfico e a sombra de uma certa estética da catástrofe. É nesse confronto que descobres o sentido extramoral, o fascínio e a potência da vida ou, se preferires, a tua “luz do meio dia” — para usar a metáfora solar de Nietzsche, um filósofo que tanto privilegias?
FM: Sim, claro! A pele que pende para dentro de si mesma cede e está dormente. Na ausência de um princípio objetivo que distinguisse a minha obra artística, abre-se objetivamente o espaço para o aparecimento de um sujeito que não distingue nada de nada. A violência. Representa um debate por vezes com limitações nem sempre ultrapassáveis. Sim, o sagrado, sem querer ressuscitar a religião, nem a conter nos limites da razão. Abrir a simples razão ao ilimitado que produz a sua verdade. Por detrás das experiências do sagrado, do corpo e da morte, da fragilidade do meu corpo e o seu tremor à morte, por detrás do que as mesmas significam e por detrás do que elas escondem, encontram-se hoje as mais importantes exigências do meu pensamento. Também da minha obra, portanto. Nela recolho o vazio da abertura privada de herança, com a sua destinação absoluta. De uma forma diferente, continuar a ampliar a projeção da periferia do centro em plena imanência. Com a exigência e necessidade da razão em iluminar a obscuridade, também a minha, com a representação sensível, a disciplina e a força de deixar o obscuro projetar a sua própria claridade. Alguma coisa como o apurar e o imperturbável que aí encontro. Através do tactear vou abrindo sonhos nas minhas próprias fezes, evitando angustiar só e muito, porque não é fácil enterrar tudo. Vejo a entrada e lá ao fundo o vazio da brandura. Um ver com sangue caudoloso. Um entreolhar.
EN: Hoje, e com um olhar mais distanciado, pensas que a tua passagem pela mítica escola de Düsseldorf teve consequências, de alguma maneira, nos projectos que mais tarde desenvolveste?
FM: Foi dos piores momentos da minha vida. Estive muito doente e durante um ano e meio não saí do meu quarto. Tudo ficou em suspensão, mas algo haveria de restar apesar de tudo. Conduziu-me a uma nova realidade, a um vazio que é de todos e de ninguém. Teve consequências no meu trabalho, sim. Pelos dois contextos em que vivi. Fez-me repensar a diferença entre arte e vida. Capacitou-me sobretudo a persistir, a insistir para que a ausência fique no tempo para exceder assim qualquer fim. Fez-me pensar a um só tempo o resto e o todo da vida e do meu trabalho; mais exatamente, estes dois contextos foram a insistência de um resto num todo. A minha vida e trabalho não vieram transportar nada a não ser a própria força formadora que se ausentou das formas. O todo ficou sempre em aberto ou impedido de se totalizar. Fez-me persistir, mesmo que face a tantas indiferenciações. Dos piores momentos da minha vida. Um vazio. É impossível conseguir separar o ethos e pathos da relação que tenho com a arte. A minha finitude como ser esvazia-se no desejo de (in) finitude da minha obra. A arte resulta numa legítima penetração e apreensão do sentido. As abordagens da arte excedem-me como indivíduo, mobilizam partes ou aspectos de vários campos, até mesmo de todos, sem a pretensão de lugar, de capítulo, ou de síntese. Isto é importante para mim. A arte dá-me a possibilidade de viver, sem lhe querer dar sentido único ou verdade. A arte estrutura o meu vazio. No âmago deste vazio, a arte resiste pelo simples facto de ser arte. O mesmo é dizer que se não há ou se não houver persistência, a arte não se faz. O vazio não representa nada mais do que o carácter dado à persistência. Um vazio originado por um desnivelamento emocional e social que se pode distinguir da consistência e partilha, porque tem a capacidade de desligar-me do incomensurável. Na Kunstakademie acentuou-se este vazio. Sublevou-se este parti pris da angústia que gera a persistência. Intensificou-se ainda mais a minha confusão. Toda a mentira e humilhação. Não deixo de evidenciar, obviamente, um antes e depois da Akademie, de tentar desobstruir as possibilidades da arte, mas na mesma direcção do que já vinha a ser e a viver. Num contexto de vida já em estância de morte. Ajudou-me a pensar para lá do eu anónimo e impessoal. Ajudou-me a pensar a imanência da própria arte. Persistir é sempre um combate ao caos, persistir em multiplicidades para sair e sobreviver ao caos. Todos nós precisamos de um plano de imanência, vivemos num mundo caótico que se apresenta como um impedimento à persistência. Ajudou-me a estruturar um novo pensamento, a restituir sentido ao mundo e à nossa ação. Todos nós deixamos de acreditar. Precisamos de fé, não num outro mundo, mas neste mundo, do qual os idiotas também fazem parte.
EN: Somos todos museus do medo? Temos medo de quê?
FM: Da nossa coroação com o nosso próprio excremento. Tremor. Tão desmesurados, os mortos agarraram-se a nós. Até hoje. Vivemos num labirinto feito de milhões de salas por onde vamos circulando, das quais, porque somos finitos, só iremos conhecer algumas. O que existe em cada uma delas é contingente e, muitas vezes, a realidade de uma sala, onde por acaso entramos, é completamente distinta da realidade de uma sala onde por acaso não entramos. Não há uma lógica, uma racionalidade, uma organização prévia no labirinto. O caos sobrepõe-se à ordem, a contingência à necessidade, a indeterminação à previsibilidade. O que vamos fazendo ou deixando de fazer é puramente arbitrário e nada é mais importante do que nada. Daqui a 50 anos irão certamente ser escritos grandes livros que as pessoas da minha idade nunca chegarão a ler, não sentindo agora a sua falta, do mesmo modo que Wittgenstein nunca sentiu a falta do cinema francês ou Nietzsche a falta da música de Bernd Alois Zimmermann. Importante, sim, é fazer alguma coisa, fazendo do que fazemos aquilo que é verdadeiramente importante. Tudo o resto faz parte de outras salas nas quais passarão muitos outros que não passarão nas nossas. Ao deambularmos por um cemitério, não é bem a mesma coisa passar por pessoas que morreram há muito ou há pouco. As primeiras é como se já tivessem morrido dentro da própria morte, enquanto as que morreram há pouco ainda conservam vestígios de vidas que chegaram a coincidir com a nossa. Estamos vivos e pensamos nisso. A superfície do cemitério é moldada pela consciência do tempo dos vivos que vai arrumando os mortos de acordo com o calendário. Mas quem acaba de entrar nas escuras e silenciosas profundezas de Thanatus será sempre recebido pelos outros como se lá tivesse sempre vivido. Todos serão vistos como se já fossem velhos conhecidos. Com a mais absoluta das indiferenças e sem compaixão. A morte acaba por ser uma fruição para a minha obra, talvez uma desadequada inspiração, mas sempre ela. Um distinto raciocínio de anti eudaimonia. Caminhamos para a morte. Com a minha constante agonia, complexo de culpa, desamor e sentimento de injustiça, a minha obra ganha assim uma dimensão imperecível tornando-se num enunciado e expressão daquilo que eu pretendo ser ou tornar-me, deixar de ser ou capacitar-me para deixar de ser. Trata-se de uma prática e preparação para a morte, para a enfrentar. Antecipar no agir, e agir no antecipar. Mas apresenta-se também como um imediato desejo de morrer. Um hedoné, porque se morre. Há quem acredite na inexistência da vida antes da morte e será aqui, quando terraplanamos, que o pensamento se poderá erguer.
Eduarda Neves. Professora, ensaísta e curadora independente. A sua actividade de investigação e de curadoria articula os domínios da arte, filosofia e política.
A autora escreve segundo o anterior acordo ortográfico.
Are We All Museums of Fear? Vistas da exposição na galeria Lehman + Silva, Porto, 2023. Fotos: Dinis Santos. Cortesia do artista e Lehman + Silva.
PANDEMIC—I don't know Karate but I know Ka-Razor. Vistas da exposição na Galeria Municipal do Porto, Porto, 2021. Fotos: Gil Araújo. Cortesia do artista e Galeria Municipal do Porto.
Knife and Wound. Vistas da exposição no Centro de Arte Contemporânea de Bragança, Bragança. Fotos: Rui Apolinário. Cortesia do artista.