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Luís Lázaro Matos: Hotel Dodo

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Cristina Sanchez-Kozyreva

No contexto da sua exposição individual na Kunstverein Braunschweig, Luís Lázaro Matos fala com Cristina Sanchez-Kozyreva sobre a viagem de luxo às Ilhas Maurícias que precedeu toda a produção de Hotel Dodo e sobre como esta se insere numa prática artística colorida — em vários sentidos — que celebra a queerness e o sexo, cria uma relação entre a felicidade e o mundo animal, e transforma uma instituição histórica alemã num resort tropical.

 

Cristina Sanchez-Kozyreva [CSK]: Quando e por que razão fizeste a tua viagem às Ilhas Maurícias?

 

Luís Lázaro Matos [LLM]: Fui mesmo antes do confinamento, e fiquei lá um mês. Era uma viagem de investigação financiada pelo prémio On Demand, que tinha recebido na Miart em 2019. Esta bolsa é atribuída especificamente com o propósito de proporcionar experiências de vida ao premiado, e a ideia era mesmo experienciar a viagem como se de umas férias se tratasse. Escolhi ter uma experiência genérica de resort, e experimentei vários tipos de alojamento nas ilhas. Fiz aulas de kayak, mergulho submarino, catamarã e vela, mas acabei por não visitar as cascatas do interior da Ilha Maurícia por causa de um ciclone. Andei à procura deste tipo de atividades de casal em lua-de-mel, só que as fiz sozinho.

No entanto, já queria visitar as Ilhas Maurícias sobretudo por causa do dodó.* Andava já há três anos obcecado com este pássaro. Acho-o particularmente adorável, e a sua condição de fragilidade intriga-me. Nós fazemos parte de uma geração que vive em ansiedade por causa da destruição do planeta e do seu ecossistema. Há notícias sobre isto em todo o lado e a toda a hora. O dodó desenvolveu o seu corpo e as suas capacidades num ambiente privilegiado, sem predadores ao seu redor. Não conseguia voar — porque não precisava de o fazer — e comia as sementes que encontrava no chão. Esta ave é frequentemente associada a noções de ingenuidade e fragilidade.

E claro que também está relacionada com o colonialismo, como tudo ainda está. E os resorts tinham um ar supercolonial. No Museu de História Natural das Ilhas Maurícias, também se fica a saber que a palavra "dodó" vem de "doido". Mas não estou particularmente interessado nas colónias que os portugueses, os holandeses ou os franceses estabeleceram nas ilhas — sinto que ainda me falta aprender um bocado sobre o assunto. Antes, isto tem mesmo que ver com o animal em questão. Como se fosse uma espécie de David Attenborough.

Em última instância, talvez todas estas coisas que revolvem em torno da fragilidade do dodó se relacionem com aquilo em que estou sempre a pensar: com o facto de que as pessoas e os comportamentos queer foram historicamente controlados e patologizados, e inclusivamente vistos como algo que se devia extinguir; e com o facto de que a normatividade ainda predomina. Portanto, neste contexto, a fragilidade é universal.

 

CSK: Podemos dizer que a questão queer é um dos teus principais tópicos de trabalho?

 

LLM: Sim, ainda que deva admitir que não sou especialista na matéria; não sou um académico. Nesta exposição, em particular, o facto de que o dodó estar completamente extinto é a mesma coisa que dizer que já não se pode reproduzir — e esta é a característica mais importante e/ou fundamental da noção de queerness: a crise da narrativa da reprodução. A natureza não o possibilitou. Portanto, os dodós a fazer sexo nas pinturas são uma forma de celebrar o sexo gay e, de forma mais geral, o sexo que não implica reprodução.

 

CSK: Quão importante é o sexo no teu trabalho?

 

LLM: Já havia alguns elementos eróticos no meu trabalho antes da pandemia, mas creio que essa falta de contacto físico me tenha instigado a abraçar o erotismo na sua plenitude. A pior coisa que se pode fazer a meio de uma pandemia é sair de casa e andar a fazer sexo com outras pessoas. Aliás, foi nisto que se centrou o meu projeto Une vague joyeuse, com a BoCA — Bienal de Artes Contemporâneas, por exemplo.

A pandemia também fez voltar o fantasma da SIDA — mais ainda com o posterior aparecimento daquilo que se designou "varíola-dos-macacos". Com isto, ressurgiu uma certa histeria do sexo relacionada com o perigo de espalhar doenças. Muitos dos meus amigos nem queriam encontrar-se com ninguém por causa do risco de passar covid ou varíola-dos-macacos. Para mim, o confinamento gerou uma situação de tensão que, quando explodiu, resultou nestas pinturas eróticas com figuras humanas e animais às cambalhotas. Acabei por reagir a esta falta de contacto físico criando imagens que celebram o toque humano.

 

CSK: Porque é que incorporas animais no teu trabalho?

 

LLM: Sempre gostei de o fazer. Desde a minha primeira exposição individual, na Kunsthalle Lissabon, Super Gibraltar, em 2015, de macacos-de-gibraltar. Acho que é um interesse inconsciente e particularmente misterioso. Talvez esteja relacionado com a felicidade que sinto quando desenho — uma sensação que me acompanha já desde a minha adolescência. E estou sempre a querer voltar às alturas em que fui feliz. Quando era miúdo, já tinha o hábito de desenhar animais.

Também houve uma altura em que comecei a prestar particular atenção à forma como a Paula Rego usava os animais na sua pintura. Em inglês, o pronome que se usa para animais é "it". E para mim é muito fácil identificar-me com figuras animais, tenham estas um corpo masculino ou não, porque desta forma acaba por se reforçar uma ideia de ambiguidade de género (e sexual). São personagens de um mundo imaginário.

As pessoas, e sobretudo as crianças — ficam todas contentes a ver aquilo —, dizem que estes seres fantásticos são adoráveis; portanto, até acaba por ser bastante inclusivo. Mas também pode ser estranho, e um bocado constrangedor. Por exemplo, no ano passado, na exposição coletiva Garganta, no Centro de Artes José de Guimarães, apresentei uma representação particularmente erótica de um conjunto de touros com cores diferentes. Havia muitas crianças muito animadas, mas não estou certo de que tivessem consciência do conteúdo mais explícito — é provável que não.

Nesta exposição, grande parte dos animais que se encontram nos murais são aqueles que destruíram os ninhos dos dodós: os ratos, os macacos e os cães — uma combinação sexual, de certo modo. Mas também há elementos do mundo aquático, como são exemplo o sapo, a raia e o peixe. A raia pode ser entendida como uma visitante de uma exposição passada, como se estivesse a construir frases visuais.

 

CSK: Na arte contemporânea, as cores podem ser um não-assunto, mas estão muito presentes nesta exposição. De que forma te relacionas com elas?

 

LLM: A Kunstverein Braunschweig tem imensas salas, e tive a ideia de pintar cada uma com uma cor diferente, seguindo a sequência do arco-íris. O gradiente cria um sentido de progressão ao longo da exposição, uma sensação de imersão na qual o espetador viaja das cores quentes para as cores frias e vice-versa. E, claro, também é uma referência à bandeira do orgulho gay —assumidamente!

Quando era miúdo, tinha medo das cores. E também, já desde os tempos da escola, tinha um complexo enorme de achar que era um mau pintor — e se calhar ainda sou, mas pelo menos há pessoas a convidar-me para expor as minhas pinturas. Hehe!

Acho que é preciso ter muita coragem para usar cor. É preciso superar muitos obstáculos e receios, e conseguir controlar a relação entre as cores e a composição. Há muitos artistas que se orgulham de ter um gosto mais a preto e branco, e, como é claro, as pessoas podem fazer exposições a preto e branco, mas aquilo que vejo frequentemente — e se calhar estou aqui a ser injusto — é um sentido de insegurança. É gente a jogar pelo seguro.

 

CSK: Como foi instalar as tuas obras neste edifício do século XIX?

 

LLM: Mal comecei, já estava a adorar. Consigo lidar muito bem com espaços expositivos clássicos. Gosto da sucessão de salas — faz lembrar-me uma visita a um palácio real, que por norma também terá pinturas narrativas do local em questão. Dentro do palácio, o Nuno** reparou numa inscrição em latim: "salvete, hospites", que significa qualquer coisa como "sejam bem-vindos". Eu sabia que queria fazer uma exposição sobre o dodó e sobre a minha estadia nas Ilhas Maurícias, mas não estava bem seguro da estrutura que lhe daria. Depois de ver aquela inscrição, ao invés de desenvolver uma narrativa sobre o dodó, decidi antes que o dodó ia ser um hotel. Vivendo eu em Lisboa, isto também reflete como praticamente todas as semanas inaugura um novo hotel na cidade — inclusivamente, não são raros os casos em que estes novos edifícios tomam o lugar de antigos palácios. Claro, também há um certo nível de humor no meu trabalho, já que estou a transformar esta histórica instituição alemã, localizada nesta cidade tão cinzenta, num resort tropical.

 

CSK: Como é que as tuas obsessões se desenvolvem?

 

LLM: De forma muito intuitiva. O meu cérebro viaja. Aprendo um facto sobre um animal. Vejo algo num filme (ultimamente, ando obcecado com o Suddenly, Last Summer, filme baseado numa peça do Tennessee Williams com a Elisabeth Taylor e a Katherine Hepburn). Falo de aplicações de encontros com um amigo. E, de alguma forma, acabo por conseguir juntar estas três coisas num espaço-narrativa. Não é lá muito linear, e não há muitas conclusões a tirar.

Atualmente, ando obcecado com cabras. Estou a desenvolver um projeto para a biblioteca do Kunstmuseum Basel, e, como talvez saberás, as cabras gostam de mastigar papel. Quero re-imaginar a biblioteca enquanto local de encontros sexuais.

 

 

Luís Lázaro Matos

Kunstverein Braunschweig

 

Cristina Sanchez-Kozyreva é uma autora com experiência em relações internacionais e estratégia. Viveu 15 anos na Ásia. Foi cofundadora e editora-chefe da revista de arte Pipeline, com sede em Hong Kong (impressão de 2011-2016). Contribui regularmente para várias publicações na Ásia, Europa e Estados Unidos, como Artforum, Frieze e Hyperallergic.

 

Tradução do EN por Diogo Montenegro.

 

 






 


 

Notas:

* Que existiu nas Ilhas Maurícias até ao final do século XVII, encontrando-se extinto atualmente.

** O curador da Kunstverein Braunschweig, Nuno de Brito Rocha.

Imagens: 

Luís Lázaro Matos, Hotel Dodo, 2023. Vistas da exposição Kunstverein Braunschweig 2023. Cortesia do artista, Galeria Madragoa, Lisboa e Kunstverein Braunschweig. Fotos: Martin Ly. 

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