Manuel Botelho: #longlivepdg
DIAS SEM ONDAS — Comunidade e relações de poder num espaço público com vista para o mar
Num concelho marcado por uma forte presença do mar, desenvolveu-se ao longo das últimas décadas uma especial apetência pelas atividades sociais, desportivas e lúdicas por disposição dessa litoralidade. Foi neste contexto, e como resposta às necessidades dos modos de vida desenvolvidos pela comunidade local de São João do Estoril, que em 2011 um grupo de cidadãos propôs a implantação de um skatepark num terreno de transição entre a urbanização e a linha de Comboio que ladeia a principal artéria de circulação automóvel e a costa. O skatepark foi uma das propostas vencedoras desse concurso de orçamento participativo e foi inaugurado em Setembro 2013, apesar da conquista de mais um OP em 2017 e que obrigava à conclusão das mesmas até Dezembro de 2020 estas melhorias nunca chegaram a ser feitas. Segundo os representantes da proposta «pretendia-se que o Parque das Gerações fosse mais que um parque de skate — com áreas de lazer, uma cafeteria e um parque infantil, tornando-se num espaço de convergência para diferentes gerações».
Em janeiro de 2022, Manuel Botelho era um mero vizinho, não frequentador, do Parque das Gerações. Apercebeu-se de uma luta que estava a ser travada pela conservação do espaço através da sua mulher que, por ocasião de um dos seus passeios, o alertou para uma grande quantidade de cartazes que irrompia da vedação do recinto — o Plano do Director Municipal, que de tempos a tempos revê a planificação do espaço público municipal e sua utilização, contemplava a implantação de uma estrada e duas rotundas que pretendiam ligar uma estrada ao bairro no qual está o equipamento e essa alteração parecia colocar em risco a existência do parque. Botelho começa a frequentá-lo diariamente para o fotografar. Primeiro fotografa os cartazes de protesto que os utilizadores colocaram nas vedações exteriores, de forma a sensibilizar a comunidade para o potencial problema. Depois, movido pelo fluxo de utilizadores que todos os dias via entrar e sair do parque, decide documentar fotográficamente as atividades diárias dessas pessoas neste espaço.
Adolescentes, crianças, adultos, famílias, idosos, para praticar as modalidades ali possíveis, ou para beber um café, trocar uns dedos de conversa, passear o cão ou meramente para sentir a companhia e vitalidade calorosa que o dinamismo dos mais novos incute ao bairro e à comunidade. Manuel Botelho deixa-se tocar pela luta pelo direito ao espaço como expressão máxima da ideia de comunidade e intergeracionalidade e pela possibilidade deste ser o lugar certo para ver esses sentimentos florescerem. Foi num dia sem ondas que o skate, tal como hoje o conhecemos, supostamente ganhou vida. E traz uma já longa história de uma prática que tem tanto de desportiva como de exercício sócio-político.
Na sua história está a afirmação e a superação individual, mas também a inclusão — homens e mulheres, pessoas de várias raças e proveniências culturais e geracionais cruzam-se num lugar utópico onde se exerce a porosidade e a mobilidade sem fronteiras; onde o corpo fluido importa tanto quanto o potencial extático, quase espiritual, que estas práticas permitem exteriorizar.
É um autêntico tratado sociológico que atesta a importância destes lugares onde afinal o desporto, a atividade física e lúdica estão intimamente ligadas a uma vivência de enorme significância social e cultural, que está para lá do prazer individual. Aquilo que outrora foi uma atividade subcultural e até marginal, é hoje entendido como lugar de agregação e convivialidade.
As imagens de Manuel Botelho falam precisamente disso e nesse sentido conseguimos sentir uma grande proximidade à sua obra anterior, na qual pensou o lugar do ser humano perante a guerra, a História, a transitoriedade ou a morte. Quando se aproximou pelas primeiras vezes deste lugar, encontrou cartazes nos quais palavras de ordem escritas a branco sobre negro reclamavam pela sobrevivência do lugar e pela manutenção das rampas em detrimento de novas estradas. Cunhou-se até a a hashtag #longlivepdg [vida longa para o Parque das Gerações], que dá título à exposição, para que, numa altura em que a pandemia ainda dissuadia as pessoas de saír à rua, pudessem acompanhar esta reivindicação através das redes sociais e aí proliferar os esforços e a fizessem ouvir. É neste enquadramento e numa voragem de visitas diárias que se projeta a colaboração de Manuel Botelho com os utentes e ativistas do parque, e se começa a desenhar a exposição que nessa altura montaram num dos recantos cobertos.
As imagens que agora são apresentadas numa escala maior, foram impressas em pequenos formatos que permitiram ao autor apresentar as suas imagens daquele momento e lugar, nas suas palavras «celebratórias e reflexivas», e assim devolver a um público participante a sua própria imagem de resistência. São imagens com um cariz muito diferente do tom trágico que a obra de Botelho indicou em séries anteriores. Nestas imagens, ao contrário, apresenta-se a resistência grácil da juventude, o ativismo pedagógico da liberdade de expressão e da cidadania, a esperança na coletividade e o sonho da convergência de vontades e gerações. Não deixa de ser curioso que o skate, enquanto modalidade urbana que se desenvolveu sobretudo como forma de dissidência e luta contra a arquitetura do espaço público opressivo [através de movimentos táticos subversivos que fluidificam a arregimentação do gesto humano], tenha aqui a sua forma simbólica de resistência a uma autoridade que por vezes parece cega e surda às necessidades daqueles por quem é suposto zelar — quem diria que seria num skatepark que a liberdade política e a felicidade pública se iriam encontrar?
João Seguro [1979], vive e trabalha em Lisboa. É artista e professor. Tem mostrado o seu trabalho em exposições, individuais e coletivas, nacionais e internacionais, estando representado em diversas coleções particulares. Lecionou, desde 2006, as cadeiras de Estética, Estudos de Arte, Teoria e Crítica da Imagem, Pintura e Seminários de Arte Contemporânea no Instituto Politécnico de Tomar e na Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa.
Manuel Botelho: #longlivepdg. Vistas de exposição, Galeria Miguel Nabinho. Fotografia cortesia do Artista, Lisboa.