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The Milk of Dreams — Numa Terra Entre Dois Sóis

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Margarida Mendes

 

Algures numa paisagem ao pé do Nilo uma pessoa calca o chão de lama. No plano fechado da imagem vemos o seu corpo fundir-se com o solo por baixo de si, os seus tornozelos afundando-se numa enorme poça de barro molhado. Na narração do vídeo escutam-se frases de Book of Mud [O Livro da Lama], escrito pelo artista Ali Cherri, lidas tanto em inglês como árabe. São excertos sobre a barragem de Merowe, que contam uma história sobre o início da vida no planeta. Reza a lenda que esta terá surgido dos seres unicelulares que provém da argila, para mais tarde se transmutar enquanto espécie, vindo os humanos mais tarde a destacarem-se da matéria como criadores de ferramentas. Esta cosmologia marca o vídeo de Ali Cherri, artista integrante nesta edição da Bienal de Veneza, e também parte da narrativa central de The Milk of Dreams, a 59ª Exposição Internacional de Arte da Bienal de Veneza, comissariada por Cecilia Alemani, curadora-chefe do High Line Art em Nova Iorque. 

 

Ali Cherri, Titans. Fotografia: Ben Davis.

 

Alemani já tinha sido curadora do Pavilhão Italiano em 2017, regressando desta vez à Bienal para assinar a exposição central com um programa que se destaca pela sua reverência feminista, fazendo uma revisão histórica da relação com o corpo através das prácticas de cura da Terra e explorações tecnológicas. Entrelaçando propostas expositivas que surgem como presenças orbitais de narrativas satélite, a exposição pode ser lida na sua amplitude através cinco núcleos de cariz histórico e investigativo, aos quais se aliam obras adjacentes. 

No pavilhão central do Giardini podemos ter acesso a um destes núcleos, The Witches Cradle, que inclui trabalhos de pintoras surrealistas e artistas integrantes de movimentos avant-garde, onde se exploram temas como o corpo fantasiado e o onírico. Esta secção, que se desenvolve a partir da obra de incríveis surrealistas tais como, Eileen Agar, Leonora Carrington, Claude Cahun, Leonor Fini, Ithell Colquhoun, Lois Mailou Jones, Carol Rama, Augusta Savage, Dorothea Tanning, e Remedios Varo, invoca o poder infinito do sonho através de uma investigação histórica detalhada que apresenta documentos, livros, e filmes a par de pinturas consagradas destas artistas. 

Remedios Varo, Creation of Birds (1957)

 

Surgindo desta gema dourada da exposição vem também a frase que lhe dá o título, The Milk of Dreams, originária de um livro escrito por Leonora Carrington. A mesma surge impressa em cima da pintura de Cecilia Vicuña Bendiga Mamita, que retrata os olhos da sua mãe, patente na sala ao lado e que perfaz toda a comunicação da Bienal. O poderoso encontro entre a frase de Carrington e a pintura de Vicuña — homenageada com o Leão de Ouro Lifetime Achievement — abrem um espaço ímpar entre gerações e cosmologias que se encontram numa visão de futuros possíveis neste momento de grande tumulto planetário. São elas a ameríndia, representada através do olhar sábio da matriarca, e a surrealista, que provém da Europa Central e se desloca até às Américas através da obra de Varo, ou outras artistas. Será este um encontro possível, que se expõe através de diferentes formas de criar mundo — da reprodução intrauterina, à invenção do ritual, ou imaginação psicodélica — que se perfaz em distintas obras apresentadas através das várias secções.

Corps Orbite, a secção próxima que apresenta uma ligação entre obras que se expandem a partir da linguagem e do corpo, homenageia Materializzazione del linguaggio, mostra de poesia concreta de 1978 que terá sido uma das primeiras exposições feministas na história da Bienal de Arte. Nesta secção assombrada pela presença de corpos imaginários invocados em séances de Eusapia Palladino e Georgiana Houghton, a metamorfose disforme do espirito surge sob a forma de escrita automática, desenho e relevo, onde são esculpidas presenças efémeras que se redefinem enquanto signo. Podemos também ver trabalhos de Mirella Bentivoglio, Tomaso Binga, Ilse Garnier, Giovanna Sandri, e Mary Ellen Sol, que mais tarde dão origem a linguagens imaginárias e alfabetos expandidos.  

A expansão do léxico sensorial e do corpo metalinguístico prolonga-se através das secções adjacentes, onde incursões tecnológicas e cibernéticas atravessam obras que honram o gesto coreográfico, quer seja através de performance — com uma icónica obra de Alexandra Pirici — mas também pintura, ou escultura. Destacam-se as pinturas e impressões de Ulla Wiggen, ou as esculturas em betão de Sara Enrico, bem como os corpos disformes e alienígenas de Andra Ursuta. Estes corpos imaginários são também eles animalescos e distorcidos — veja-se a sala dedicada a Paula Rego — ou etéreos e fusionais — como é o caso das evanescentes esculturas de barro de Simone Fattal em mostra no pátio do pavilhão, cujo alento profético se cruza com a brisa do jardim.

Ainda no pavilhão central do Giardini podemos encontrar outro dos núcleos historiográficos da exposição, que se dedica à junção do corpo-máquina através da perspectiva da arte cinética como apresentada pelo núcleo Technologies of Enchantment. Neste espaço que alude ao livro da teórica Silvia Federici Re-Enchanting the World: Feminism and the Politics of the Commons, encontramos obras de arte cinética dos anos 60. Estas fazem ponte com o espaço cibernético expandido das secções adjacentes, e que mais tarde ligará com um dos eixos da secção do Arsenale dedicada à semiótica e tecnologia. 

Este commons, ou comum, também descrito como “a política dos muitos” é também invocado na primeira metade da exposição do Arsenale, onde grande parte das obras endereçam o espaço comunitário, através da representação do círculo de concílio, da procissão ou multidão, em trabalhos pictóricos que têm origem no sul global [como Portia Zvavahera, por exemplo]. São estes também os espaços do comum onde recursos como a água, o minério, os solos ou seres vegetais são explorados sem permissão, como representam as pinturas de Prabhakar Pachpute ou Rosana Paulino. Nestes desenhos, a justiça reprodutiva junta-se à justiça da Terra, onde os nossos antepassados estão depositados, constituído também eles parte do substrato que nutre o planeta. 

Propondo novos e antigos gestos que poderão trazer justiça a esses mesmos seres que o povoam e nos revisitam, The Milk of Dreams trabalha com os múltiplos assombramentos que formaram a sociedade contemporânea, como o passado colonial e a herança heteropatriarcal que moldou os espaços e corpos presentes.

Expandindo o conceito de corpo para incluir o corpo elemental, simbiótico e tecnológico, a sua linha de pensamento ecofeminista desafia o alcance da corporalidade, que se expande na sua transtemporalidade num pós-humanismo que é ele também feito de várias geneologias ancestrais. Como situar o corpo presente?

Numa das salas centrais do Arsenale voltamos ao solo. A instalação de Delcy Morelos enche uma grande porção da sala de terra, com uma mistura de especiarias, cacau e feno. Apelando ao húmus da terra, um húmus que nutre e que tem a mesma etimologia de humano, esta sala redireciona-nos de novo para as fundações do presente, a infraestrutura essencial do solo, a crosta terrestre e matéria de onde provimos e que nos dá gravidade. Numa declinação do que é uma das peças icónicas da arte ambiental conceptual de Walter De Maria New York Earth Room, Morelos traz a perspectiva ecofeminista, fazendo evidente a essência dos solos plurais e férteis de onde tudo provém, sublinhando a sua complexidade e origem através do apelo à sensorialidade e sabedoria dos sentidos que são também eles contadores de histórias da evolução dos tempos, com gramáticas genéticas avançadas embora nem sempre evidentes.

 

Delcy Morelos, vista de exposição na 59ª La Biennale di Venezia, “The Milk of Dreams”. Fotografia: Roberto Marossi. 

 

A dimensão gestacional expande-se por grande parte da exposição, que homenageia o corpo feminino e a sua capacidade de gerar seres e mundos, honrando a morfogénese reprodutiva através de paralelos entre corpos da natureza. Um outro núcleo sublinha esta potencialidade de forma acupuntural, entrelaçando percepções de recipientes, como proposto pela escritora Ursula K. Le Guin. Esta secção, denominada A leaf a gourd a shell a net a bag a sling a sack a bottle a pot a box a container, homenageia a teoria-ficção de Le Guin, onde esta defende que o nascimento da civilização provém da criação de ferramentas que providenciam sustento, tais como malas, sacos e recipientes. Nesta pérola do Arsenal disposta numa galeria redonda, podemos encontrar cerâmicas com formas híbridas de Tecla Tofano, junto a modelos uterinos, ou pinturas surrealistas e ilustrações científicas que apelam à metamorfose dos insectos e plantas, justapostas com a transparência das esculturas em malha de arame de Ruth Asawa. Percorrer este espaço contido dentro do fluxo do Arsenale, é em si uma experiência visceral, onde a elementalidade da matéria e do barro se funde com a sensualidade interna do sistema reprodutor, trazendo uma percepção sinestésica entre espaços côncavos e convexos, onde nos sublimamos como parte de um molde vital.

 

Ruth Asawa, vista de exposição na 59ª La Biennale di Venezia, "The Milk of Dreams". Fotografia: Roberto Marossi.

 

O corpo performado, corpo-ferramenta e corpo pós-humano é ainda explorado no último núcleo histórico da exposição, Seduction of the Cyborg. Aqui, a maquinaria torna-se experimental, jogo lúdico onde os limites do humor e do género são testados através do improviso no quotidiano e da fantasia de novos corpos biónicos. Revisitamos as fotografias encenadas da dadaísta Elsa von Freytag-Loringhoven e a participação no Ballet Triádico de Marianne Brandt e Karla Grosch na Bauhaus, a par de contemporâneas futuristas. A electrificação do corpo está presente através dos esquemas robóticos de Kiki Kogelnik, e da escultura cinética monumental de Rebecca Horn Kiss of the Rhinoceros, que eteriza a sala com uma descarga voltaica, aquando duas extensões de um dente de rinoceronte se tocam em órbita. A destacar também as sublimes esculturas de Liliane Lijn, totens quasi-eróticos irridescentes. 

Deste núcleo advém a secção final da exposição, onde um grande salto é dado do corpo-cyborg performado, ao corpo sem órgãos tecnológico dos sistemas de informação, acabando a exposição com algum excesso pós-moderno que esmaga o olhar. Não obstante os fabulosos desenhos de Tatsuo Ikeda, as pinturas de Tishan Hsu e as esculturas de Marguerite Humeau destacam-se pela sua proposta de corpos digitais evanescentes, que se metamorfoseiam em novos avatares e paisagens em dissolução. Quantas after images não ficaram connosco após estes dias?

 

Tatsuo Ikeda, Floating Sphere (1978)

 

Homenageando a genealogia feminina através da emancipação criativa do potencial do corpo, The Milk of Dreams, é indubitavelmente uma trip sensorial. E se por um lado a imagem em movimento está menos presente que em outras edições — com instalações de pequena escala dispostas essencialmente nos espaços exteriores — a presença de documentos históricos e gestos ancestrais é não menos urgente e não menos arriscada nos dias que correm, providenciando uma revisão muito necessária das historiografias dos movimentos canónicos que têm sido reiteradamente feitas a partir dos lugares de fala comuns. Numa aproximação política que se dedica mais às propostas formais e estéticas do que ao activismo puro e duro — à la Federici — o reencantamento acontece através do espaço íntimo do corpo e do signo que se exprime através de linguagens e tecnologias emancipadoras e perspetivas de mundo. Um ecofeminismo consagrado no ritual da reinvenção do corpo político, que é também ele gestacional, criativo e irreverente. Algo a apontar, será porventura o retorno a narrativas e autores — como o pós-humanismo e Haraway — que têm saturado os recentes discursos artísticos que ciclopicamente se fecham na sua auto-referencialidade, havendo muitas outras vozes a escutar. Não obstante, o empenho curatorial de Alemani cumpre a sua proposta através do audaz entrelaçamento entre prácticas e genealogias — o que indica como um ano extra de pesquisa permitiu as condições de trabalho rigoroso para a exposição crescer e consolidar o seu argumento.

Esta é sim, uma edição para celebrar a desinstituição dos lugares dados como seguros, onde pavilhões nacionais trocam de espaço e/ou assumem identidades transfronteiriças — com Małgorzata Mirga-Tas a representar o povo Roma na Polónia, e o Pavilhão Sámi a fazer um takeover do Pavilhão Nórdico. Dá-se ainda que a maioria de prémios foram concedidos a artistas da diáspora, com o Leão de Ouro a ser concedido a Sonya Boyce pelo trabalho desenvolvido no Pavilhão de Inglaterra e a Simone Leigh, e as menções honrosas a Zineb Sedira, a primeira Argelina a representar a França, Ali Cherri, e ao Pavilhão inaugural do Uganda.

Num momento de tumulto e celebração, em que o existencialismo político acelera de novo em direção ao fascismo, em simultâneo com a insurgência e resiliência de vozes indígenas a tomar poder na América Latina, imaginar os gestos que conciliam novos e antigos mundos é essencial.

Retraçar as narrativas de origem e as dívidas impagáveis faz parte do início de um longo trabalho de cura que se está a esboçar.

Neste mundo de muitos mundos onde a imaginação é uma ferramenta imprescindível da acção, o concilio com as pluri-sensorialidades e os muitos seres que vieram e virão é essencial. Pois apenas através deste trabalho de reinscrição de narrativas, que assume a corporalidade da infraestrutura numa Terra entre dois destinos — ou dois sóis — poderemos ponderar se a reconciliação será possível.

 

 

La Biennale di Venezia

 

 

 

 

Margarida Mendes é curadora e investigadora. A sua pesquisa — com enfoque no cruzamento das humanidades ambientais, filme experimental e artes sonoras — explora as transformações dinâmicas do ambiente e o seu impacto nas estruturas sociais e no campo da produção cultural. Integrou a equipa curatorial da 11th Gwangju Biennale "The 8th Climate (What Does Art Do?)", 4th Istanbul Design Biennial "A School of Schools", e 11th Liverpool Biennale "The Stomach and the Port". É consultora de ONGs ambientais que trabalham sobre a mineração no mar profundo e dirigiu também diversas plataformas educacionais, como escuelita, uma escola informal do Centro de Arte Dos de Mayo - CA2M, Madrid (2017); O espaço de projectos The Barber Shop em Lisboa dedicado à pesquisa transdisciplinar (2009-16); e a plataforma de pesquisa curatorial sobre ecologia The World In Which We Occur/Matter in Flux (2014-18). Margarida Mendes é doutoranda no Centre for Research Architecture, Visual Cultures Department, Goldsmiths University of London.

 

A autora escreve de acordo com a antiga ortografia.

 

 

 

 

Cecilia Vicuña, Bendiga Mamita.

Fotografia de Capa: Cecilia Vicuña, vista de exposição na 59ª La Biennale di Venezia, "The Milk of Dreams" Fotografia: Marco Cappelletti. 

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