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Conversa com Alice Miceli e Luiz Camillo Osório

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Ana Salazar Herrera

Alice Miceli: Em Profundidade [campos minados]: Angola e Bósnia

 

No trabalho da artista Alice Miceli, a investigação de territórios traumatizados começou com o seu projecto Chernobyl, em 2010, e expandiu-se com o desenvolvimento da série fotográfica Em Profundidade [campos minados] que realizou entre 2014 e 2019. Nas suas fotografias, a ameaça camuflada de minas que não são perceptíveis pelo olhar, ganha uma nova dimensão. As paisagens captadas são as que restaram de conflitos sangrentos, onde as minas subterrâneas continuam a explodir inadvertidamente, mesmo depois de declarada a paz. A artista teve acesso a campos contaminados de minas não explodidas no Camboja, na Colômbia, na Bósnia e em Angola, apresentando agora os capítulos da Bósnia e de Angola na Escola das Artes da Universidade Católica do Porto. 

O processo de transformar a invisibilidade do perigo em imagem passa por interrogações sobre a natureza da própria fotografia, assim como dos seus efeitos políticos e limitações num mundo “saturado pela espetacularização”.

É necessário olhar as imagens com muita atenção para apreender os detalhes, já que um olhar rápido não consegue captar a realidade subtil e sinistra que apresentam. O interesse da artista por estes territórios implica um estudo profundo tanto da forma como do conteúdo do seu trabalho — a fotografia como ferramenta de questionamento e os campos minados como marcas de horrores inenarráveis e histórias de morte e sofrimento que continuam a fazer parte de traumas individuais e colectivos ainda em processo. 

Cooperando com agências e organizações de desminagem, a artista consegue voltar a pisar a terra que por décadas se manteve fatalmente hostil, apontando assim para um caminho gradual em direcção a uma possível recuperação. Nesta conversa gravada no dia antes da abertura da exposição, a artista Alice Miceli e o curador Luiz Camillo Osório desdobram a obra, desvendando o seu processo conceptual e logístico e pensando no conceito de profundidade como uma metáfora múltipla no tempo e no espaço que caracteriza as paisagens que restaram. 

 

Ana Salazar Herrera (AS): Alice, podias descrever um pouco o projecto e a pesquisa relacionada? Quando é que começou e como se foi desenvolvendo ao longo do tempo?

 

Alice Miceli (AM): É um projecto longo. O projecto completo foi feito em quatro diferentes continentes onde perdura o problema de territórios tomados por minas, por explosivos remanescentes de conflitos, guerras e diferentes tipos de conflito. Comecei em 2014. O trabalho completo olha para espaços no Camboja, na Colômbia, na Bósnia e Angola. Em 2014 foi o início e o primeiro local ao qual tive acesso foi no Camboja, em seguida foi a Colômbia, depois Bósnia e mais tarde Angola. Como é um trabalho de pré-produção complexo para conseguir acessar e depois planejar o que precisava fazer em cada um desses lugares, demorava um bom tempo de produção, de pré-produção e depois até de produção mesmo no lugar. Acabou sendo de 2014 a 2018 para fazer todas as deslocações.

 

 

AS: Luiz, como conheceste o trabalho da Alice e quando começou a vossa colaboração? Como surgiu esta exposição no Porto?

 

LCO: Eu conheci o trabalho da Alice na época da Bienal de São Paulo de 2010, quando ela apresentou pela primeira vez o projecto Chernobyl. Já conhecia a pessoa, mas não conhecia a obra. Conheci a obra mesmo no projecto Chernobyl em 2010. Em 2014, na altura eu era o curador do Museu de Arte Moderna no Rio de Janeiro, e nós tínhamos uma parceira com o Instituto PIPA que realizava lá o prémio PIPA de arte contemporânea—um prémio importante no Brasil e a Alice foi uma das finalistas, das shortlisted, com a primeira parte dos campos minados que foi o Camboja. Ela acabou sendo a artista premiada. Achei o trabalho ao mesmo tempo perspicaz, intrigante e interessante. Depois saí do Museu e fui para o Instituto PIPA como curador e, conversando com a Alice, a gente depois seguiu conversando, faltava ela realizar a parte de Angola e o Instituto então comissionou essa última parte para ela ir a Angola. Aí em 2019, depois de completado as quatro etapas nos quatro continentes, fizemos uma exposição no Rio de Janeiro com as quatro partes dos campos minados—Camboja, Colômbia, Bósnia e Angola. A essa altura eu já vinha colaborando com a Escola das Artes aqui no Porto, com o Nuno Crespo, e aventamo-nos a essa ideia: Vamos fazer aqui também os campos minados, pensando esse projecto não apenas como uma exposição, mas um projecto um pouco mais alargado que implicaria uma participação da Alice na Escola com um workshop (que ela já fez, foi um sucesso) e com um seminário atrelado à exposição que vai começar hoje, o Traumatic Landscape. A ideia era fazer isso em 2020/21, com a pandemia não rolou, o financiamento também não rolou, encurtámos e estamos fazendo agora e resolvemos escolher só duas partes, porque não cabia toda. Achamos que Angola, por razões óbvias, era importante mostrar em Portugal, e Bósnia até pela questão da geografia europeia e ainda a presença de minas, seria interessante. E ao fim e ao cabo, acabou sendo uma infeliz coincidência isso estar acontecendo junto com a guerra da Ucrânia, na medida em que a gente percebe que é um problema que está de volta. As guerras, todas essas guerras terminaram e essas minas [são] o resquício de uma guerra que não acaba, de um território que fica traumatizado e ainda é sujeito a esse tipo de violência com as minas não explodidas. E agora tem outra vez na Europa, outra vez aqui no entorno, esse conflito armado tão violento. 

 

 

AS: Isso responde já um bocadinho à minha pergunta seguinte, que era, como pensaram a exposição aqui e a experiência do público considerando o contexto português? 

 

AM: Como a gente teve que adaptar em termos de tamanho, porque o projecto é grande no final das contas. São séries, algumas mais longas que as outras, mas longas, então ocupam um certo espaço, a gente teve que fazer essa decisão. Só acrescentando ao que o Camillo disse, Angola obviamente a gente queria mostrar aqui em Portugal. Sempre foi uma curiosidade minha, porque eu também nunca, enfim, extrínseca até ao trabalho porque eu não conhecia nenhuma outra ex-colónia de Portugal além do Brasil, e isso era uma decisão que a gente queria obviamente mostrar isso aqui. E a Bósnia, é uma questão do contexto europeu. Onde na Europa existe um problema grave de contaminação por esse tipo de explosivo? E o lugar com a presença mais densa desse problema é na Bósnia, em decorrência da guerra da Jugoslávia. Enfim, juntando agora essa triste coincidência que a gente tem uma guerra acontecendo no momento na qual a Rússia, ao que tudo indica, está empregando de novo esse tipo de armamento na Ucrânia. 

Em relação ao público, a exposição é aberta ao público, ao público todo, é um convite geral. Mas eu acho que grande parte do público que vem aqui são estudantes da Escola ou pessoas que estão no campus. Então acho que aqui vai ser interessante ter o pessoal do cinema, da fotografia, as pessoas directamente envolvidas com pensar e fazer essas imagens, olhando para o trabalho. Fico pensando que isso deve ser o que acontece com mais frequência. Mas de todo o modo, está todo o mundo convidado. 

 

 

AS: A pesquisa das minas envolve, como dizias antes, muita pré-produção, e é, em si, um processo perigoso. Juntar todo o material e atravessar todos os obstáculos logísticos para fazer a pesquisa e empreender as viagens necessárias faz também parte do trabalho. Esses elementos também estão visíveis de alguma forma? E como pensam ambos este gesto de tornar visível algo que os olhos não vêm e a lente não pode captar? De que forma a própria paisagem minada que representa uma ameaça e um perigo iminente se torna mais visível?

 

AM: O processo criativo desse trabalho, acho melhor do que falar de “o meu processo” porque o processo muda, depende muito de qual é o problema específico de cada obra, de cada projecto. Nesse caso, toda essa parte de pré-produção é uma parte activa da criação da obra, é uma instância colaborativa, porque é obvio que tendo escolhas limitadas em tal lugar, dependendo do tipo de acesso, isso vai construíndo a matéria-prima a partir da qual eu vou trabalhar. Essa pré-produção, mesmo que invisível, quando a gente está olhando para o trabalho, ela está presente o tempo todo em termos das escolhas que foram ali feitas, em termos do que foi finalmente enquadrado pela câmara. 

Eu vou relacionar um pouquinho com o meu trabalho em Chernobyl, porque são diferentes tipos de invisibilidade. Eu comecei a pensar e a considerar essas questões logo em seguida a ter terminado Chernobyl. Não comecei o projecto exactamente logo depois, mas já estava com essas questões. Chernobyl então é esse trabalho que tentava olhar para a zona de exclusão de Chernobyl, na fronteira entre a Ucrânia e Bielorrússia, hoje em dia, que é esse espaço teoricamente vazio, mas tomado por uma energia invisível e que a gente não experimenta de nenhuma forma, mas que altera a matéria em termos de substância que ocupa por todo aquele espaço e que ainda por cima é eterna, se a gente considerar a escala humana da duração humana. Localizado, obviamente ela tem uma origem, uma data no passado, mas é global em termos de tempo, em termos de duração. Uma vez isso terminado, eu queria continuar olhando, me perguntando que outras paisagens impenetráveis existem por aí a serem consideradas na superfície da Terra. Então olhar para esse espaço dos campos minados foi para mim o próximo passo. Muito intrigante para mim foi a seguinte consideração, porque se antes era uma questão da invisibilidade da matéria que eu queria capturar em Chernobyl, então a operação poética do trabalho estava nessa captura sobre o negativo. Na questão dos campos minados, o que é impenetrável se desloca então para profundidade literal do espaço a ser capturado bidimensionlmente na imagem. Isso a gente pode ver. Não é exactamente o mesmo tipo de regime de invisibilidade porque a radiação é fisicamente invisível. Já as minas elas são objectos que existem, que podem estar em diferentes situações mais ou menos dissimuladas. No caso do trabalho, a gente também consegue perceber por intermédio dos rastos que são colocados na paisagem no processo de desminagem, que foi o tipo de colaboração que eu consegui com agências e órgãos que fazem esse trabalho para justamente conseguir ter o acesso específico a esses campos minados no momento em que os explosivos que lá ainda residem já estão, na medida do possível, completamente mapeados. 

LCO: Posso acrescentar um dado aí a partir do que a Alice comentou. No caso de Chernobyl, havia ali uma composição entre essa impregnação da radiação gama no material fotográfico, tentando revelar esse invisível, esse irrepresentável da energia radioactiva e um conjunto de outro material mais documental desse território de exclusão de Chernobyl. Então é uma composição de um material fotográfico abstracto e um material fotográfico documental. Quando se desloca para os campos minados, para esse projecto seguinte, há uma confluência dessas duas partes no mesmo material fotográfico em que uma paisagem aparentemente bucólica, inocente, ela mesma está impregnada de material explosivo, fatal, que é um resquício da violência humana sobre o território, e sobre a natureza, e sobre as espécies vivas e os seres humanos, mas que se você não olhar, você não percebe. Claro que as marcações que estão nas imagens —você vê nas fitas “perigo”, “minas” — mas a paisagem está ali. É uma fotografia de paisagem, com elementos que se repetem muito importante também, o registro narrativo a partir do sequenciamento das imagens em que é a mesma paisagem com a penetração da Alice dentro do território construindo esse movimento e mantendo a paisagem digamos estável. Estável e em movimento. É difícil falar sobre o que se passa nas imagens e eu acho que essa dificuldade é o intrigante e é um desafio para quem olha. Se quiser olhar você só olha uma paisagem. Mas dentro dessa paisagem você também pode começar a desencavar o elemento escondido, a invisibilidade que está nessa imagem, que é um modo operacional, o procedimento que ela criou para atravessar o campo minado, se pondo em risco. Para se por em risco aqui é também importante essa relação com os técnicos de desminagem que já fizeram as marcações, que já estão mais ou menos mapeadas, e que permitem um certo controle de segurança nesse penetrar na impenetrabilidade do campo minado, e o risco fica mais ou menos sob controle. É ao mesmo tempo uma paisagem abstracta e documental. Porque ela é abstrata porque você não percebe o risco ali iminente, mas ao mesmo tempo você pode ir destrinchando com o percurso narrativo, no caso de Angola das 15 imagens que se constituem, e de certa maneira refazendo o objecto mina que está ali escondido. Acho interessante que essas duas coisas elas se completam numa mesma imagem que não é nem documental e nem abstracta. Em Chernobyl ainda tinha uma certa relação, não sei se a Alice concorda, mas é como eu vejo esse movimento de um para o outro. É a mesma pergunta, é a mesma inquietação: como lidar com a invisibilidade do perigo e ao mesmo tempo procedimentos distintos porque são invisibilidades distintas e perigos distintos. Então exigem um procedimento distinto e acabam constituindo também um resultado distinto. 

AM: Invisibilidades que tornam esses espaços impenetráveis de formas diversas. Um visualmente e o outro literalmente em termos de profundidade de atravessamento do território. 

 

 

AS: O título Em Profundidade é como um jogo de palavras que junta tanto a forma como o conteúdo. O conteúdo seriam as minas, que estão debaixo do solo, logo em profundidade, e a forma seria a fotografia, que joga com a profundidade de campo, pondo ênfase na paisagem como um todo. Podem falar um pouco sobre essa noção de profundidade e de como as paisagens em si, que contêm as minas, se prestam a ser representadas nessa profundidade?

 

AM: É um título bidimensional. Toca em duas profundidades diversas. Em profundidade, em termos da relação desse conceito com a prática fotográfica. Toda e qualquer imagem é baseada numa relação, ou até muito recentemente era sempre baseada numa relação, que ocorre em três pontos: Onde você pisa, que tipo de instrumento, com qual distância focal, você está segurando, e o que você vê. São os três elementos fundadores de toda e qualquer imagem com um a mais, que é decorrente desses, que é o quão perto ou quão distante você está do objecto a ser capturado. Hoje em dia, enfim, a tecnologia sempre avança, às vezes até muito rápido, essa coincidência de local e captura da imagem já pode ser desconectada—se a gente vê imagens remotas, imagens de drones, o que não quer dizer que não tenha uma agência, uma acção e uma intenção nesse disparo. Então esses elementos estão em todas as imagens, mas nesse trabalho, o que acontece é que eu estava olhando para eles de uma forma activa. Eles são especificamente activados por intermédio de uma organização específica, de uma organização técnica formal específica que a gente pode depois desenvolver, em cada imagem para serem activados justamente em termos do relacionamento desses três pontos com a questão do posicionamento. Nesse território, onde posição, literalmente onde você pisa no chão, é o elemento mais crítico, porque daqui para lá pode ser a diferença entre a vida e a morte. A exploração formal, conceptual, que no final vai dar no tipo de imagem que a gente está vendo aqui, mas ela é o resultado desse processo. O que a gente vê aqui é isso. É o que esse tipo de proposta formal, conceptual e depois a organização que isso demandou de mim uma vez no espaço, o que isso acarreta para a imagem. É o que a gente vê na exposição. 

LCO: Acho que tem um elemento também interessante na ideia de profundidade, e que tem muito a ver com o que a Alice está comentando e explicado, que é essa relação do olhar e da paisagem com uma relação de exterioridade. Curiosamente, no trabalho, a questão é como inserir o corpo no interior de um território, de uma paisagem, paisagem essa que é um campo minado, e ao mesmo tempo em que você explicita a penetração, que portanto implica um caminhar no interior de uma paisagem, há um elemento da própria paisagem que não caminha, que é o ponto fixo, que é o olhar de fuga da profundidade. Então tem um elemento que ela fixa, que fica como a exterioridade de um movimento, e todo o resto caminha com o trajecto que ela vai realizando ali no interior. Então você vai percebendo uma paisagem que caminha e uma paisagem no interior dessa paisagem que se fixa, que é um ponto, pelo facto de ela mudar a lente, ela gruda no fundo da paisagem. Mas todo o resto está caminhando. Então você fica lidando com o dentro e o fora, o penetrar e o impenetrável, que é muito interessante do ponto de vista inclusive do que acarretou uma certa objectificação da natureza a partir de uma visão antropocêntrica que você está fora da natureza para poder dominá-la. Mas ao mesmo tempo que você está fora você está dentro e você está comprometido com a natureza e a natureza te reengaja porque é o seu espaço vital, não é um objecto de conhecimento. É um objecto de conhecimento e é um espaço vital. Então é um ponto na paisagem e é um território minado. Eu caminho ali para fotografar a paisagem, eu estou me expondo ao risco daquela paisagem me liquidar. Então é um jogo constante entre esse olhar que é sempre exterior à paisagem e uma paisagem que te convoca. 

AM: Entre lá e cá e em que passos são possíveis em quantos intervalos. E com mais uma camada no sentido de que toda fotografia também é sempre uma relação entre bidimensionalidade e uma ilusão representativa de profundidade, que são justamente os elementos do trabalho. 

 

 

AS: Quando estalou a guerra entre a Rússia e a Ucrânia, o Exército Zapatista de Liberação Nacional, no México, lançou um comunicado que dizia “não haverá paisagem depois da batalha”. Penso que este conjunto de trabalhos lida exactamente com isso, com a paisagem que depois resta, uma paisagem contaminada onde milhares de minas antipessoais e outras bombas não explodidas continuam a causar morte e ferimentos, mesmo décadas depois das guerras terem acontecido. Podem comentar esta frase?

 

AM: Vou comentar isso em relação a um comentário que você acabou de fazer, que há sempre a paisagem que resta. Eu acho que esse “que resta”, que é o X da questão, e é o que está sendo interrogado aqui. No caso desses meus últimos trabalhos, em ambos, no sentido em que justamente a contaminação radioactiva em Chernobyl e esse problema da contaminação por explosivos remanescentes de guerras e conflitos, todos têm uma origem no passado, mas eles são justamente aquilo que resta. Até pensando “O que resta de Auschwitz”, o livro do Agamben. Especificamente a gente pode olhar também o que resta do genocídio cambojano: resta um trauma, resta muita coisa, mas que está imbuída talvez na história das pessoas, em traumas herdados. No caso de Chernobyl e dos campos minados, toda essa dimensão da vivência do trauma, e mais que isso, o resto presentificado, de facto presente, e duradouro, dessas intervenções, dessas guerras. Então resta, resta muita paisagem a ser interrogada e o que acaba sendo recorrente no meu trabalho é como, de que forma, e como é que a gente olha para isso e por intermédio do quê. 

LCO: Depois que você fez a pergunta a partir do comunicado Zapatista de uma paisagem que vai ser de certa maneira liquidada, eu me lembrei de um texto do Rilke, o poeta, que se chama “Sobre a Paisagem”. Ele fala uma coisa comparando um mundo sem paisagem, que para ele seria um mundo medieval, e o mundo que vai conquistando a paisagem no Renascimento, e ele diz que uma coisa foi fundamental para fazer essa passagem, que foi a representação humana tocar a terra, que não tocava na figura medieval — a representação era meio que etérea — e que de Giotto a Leonardo da Vinci, a representação da figura ela pisa, ela pisa no chão, e a paisagem aparece porque é o lugar onde se pisa. E é curioso porque o campo minado é um lugar onde o pisar está cada vez mais arriscado. E se a gente for pensar também a convocação por exemplo do Bruno Latour para a nossa necessidade de aterrar é como pisar outra vez. Essa tensão entre a pintura renascentista que pisa e uma certa ciência que é contemporânea do Renascimento, pensando na contemporaneidade de Galileo e Leonardo da Vinci, que sai da Terra, que sai da Terra pelo menos simbolicamente para pensar um domínio técnico sobre a Terra. E agora a gente tem de reaprender a pisar, porque a Terra está minada. Acho que o elemento simbólico desse trabalho é o quanto nós, com uma violência extractivista impressionante, tornamos a terra um território minado e como é que a gente reaprende a pisar, depois da catástrofe.

Então acaba a paisagem, mas o que nos resta é reaprender a pisar para poder de certa maneira retomar contacto com a vida e não com a morte. 

 

Escola das Artes da Universidade Católica do Porto

 

Este texto foi escrito em português do Brasil

 

 

 

 

Alice Miceli [Rio de Janeiro, 1980], a sua obra caracteriza-se por alternar entre vídeo e fotografia, muitas vezes partindo da investigação de eventos históricos e viagens exploratórias, por meio das quais a artista reconstitui traços culturais e físicos de traumas passados infligidos em paisagens sociais e naturais. O seu trabalho faz parte de coleções importantes a nível internacional como as do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro [Brasil], Cisneros Fontanals Art Foundation [EUA] e Moscow Biennale Art Foundation [Rússia]. Recentemente, realizou exposições a solo na Americas Society, em Nova York, e no Instituto PIPA, no Rio de Janeiro, assim como diversas mostras coletivas e feiras de arte nos Estados Unidos, Brasil e Europa. Em 2022, o seu trabalho será apresentado na próxima edição da 17ª Bienal de Istambul.

 

 

Luiz Camillo Osório, Diretor do Departamento de Filosofia da PUC-Rio; membro do GT de estética do CNPQ, bolsista PQ CNPq [nível 2]. Doutor em Filosofia, PUC-Rio [1998]. Trabalha na área de Estética e Filosofia da Arte. Os seus principais focos de interesse na investigação são: As articulações entre arte, estética e política; Autonomia e engajamento; Teorias do gênio, desinteresse e sublime; História das vanguardas; A atualidade do juízo e a potência crítica da arte no mundo contemporâneo; curadoria, crítica e história da arte; As relações entre arte, museu e mercado.

Paralelamente à pesquisa acadêmica atua como crítico e curador. Foi curador do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro entre 2009 e 2015 e curador do Pavilhão brasileiro na Bienal de Veneza de 2015. Foi do conselho de curadoria do MAM-SP entre 2005 e 2009. Assinou coluna de crítica de arte nos Jornais O Globo [1998/2000 e 2003/2006] e Jornal do Brasil [2001] e na revista espanhola EXIT Express [2006/2007]. Membro do grupo de Pesquisa cadastrado no CNPQ – Arte, Autonomia e Política – com os professores Pedro Duarte [Filosofia PUC-Rio] e Sergio Martins [História PUC-Rio].

 

 

 

 

Ana Salazar Herrera [1990] é curadora no Ludwig Forum for International Art, Aachen, escritora e iniciadora da para-instituição Museum for the Displaced. Explora subjetividades nómadas, poli-linguísticas e transculturais, propondo questionamentos inventivos de mapeamentos geopolíticos hegemónicos. De 2016 a 2020, foi Curadora Assistente de Exposições no NTU Centre for Contemporary Art Singapore. Participou no Shanghai Curators Lab [2018], no programa de mentoria Project Anywhere [2020-21], e foi curadora-em-residência [2021-22] no Künstlerhaus Schloss Balmoral, Alemanha. Ana tem um mestrado em Práticas Curatoriais da School of Visual Arts, Nova Iorque, e uma licenciatura em Piano da Escola Superior de Música de Lisboa.

 

 

 


 

Alice Miceli, Em profundidade [campos minados]: Angola e Bósnia, Galeria da Escola das Artes da Universidade Católica, Porto. Fotografia: Luísa Fernandes. Cortesia da Artista e da Escola das Artes da Universidade Católica.

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