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Carla Filipe: Hóspede

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Sofia Nunes

Entre a prática intermedial de Carla Filipe e o uso da bandeira existe uma relação tão estrutural, quanto produtiva.

Estrutural, porque presente desde as primeiras instalações da artista [ex. Bandeiras no estendal, 20051]; produtiva, por interrogar os substratos ideológicos associados à função simbólica que toda a bandeira opera, destabilizando a sua ordem. Nessa medida, mais do que um objeto/símbolo representativo da identidade de um grupo, movimento, organização ou entidade, a bandeira, torna-se, em Carla Filipe, num lugar de inscrição de contradições sociais, a partir do qual a ideia de coletivo ressurge desnaturalizada, disponível para desencadear múltiplas camadas de significação pouco ou nada expectáveis, onde biografia/história, memória/esquecimento, passado/futuro se potenciam mutuamente.

O seu novo trabalho com bandeiras intitula-se Hóspede e foi concebido no âmbito da Temporada França-Portugal 2022 para a Villa Arson, Nice, sob a curadoria de Marta Moreira de Almeida, numa colaboração com a Fundação de Serralves e a Fundação Calouste Gulbenkian de Paris. Regra geral, o contexto importa a Carla Filipe e este, em particular, não é exceção. Filipe apresenta-nos uma instalação que alarga a relação bilateral implicada na moldura institucional aos restantes estados-membro da União Europeia, propondo, assim, um novo enquadramento, agora de base coletiva.  

27 bandeiras, bordadas à máquina por costureiras, pendem uma a uma diretamente do teto da Galerie Carrée da Villa Arson, sobre o espaço expositivo. A informação que contêm é visual. Cada bandeira tem bordado o mesmo pictograma de uma figura humana, sem género definido. Já as cores das figuras diferem, em função das bandeiras dos países da UE que representam. 

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A composição gráfica usada é, de certa forma, familiar, pelo menos para aqueles que cresceram a colar autocolantes políticos e comerciais nas janelas e armários do quarto. Em meados dos anos de 1980, por altura da adesão de Portugal à UE, circulou no país um autocolante com o mesmo grafismo de que Carla Filipe agora se apropria, embora adicionando alterações. Como um readymade assistido, Filipe acrescenta 16 novas figuras humanas às 12 do autocolante, por forma a atualizar a composição do agregado comunitário à data de hoje e reduz a composição das figuras às cores base das bandeiras dos países representados. Mas são as alterações de escala das figuras, os espaçamentos dados entre bandeiras e a passagem da impressão e design gráfico industrial à técnica do bordado à máquina, a par do título Hóspede, a conferir desvios mais significativos.

Se no autocolante as figuras apareciam impressas todas com o mesmo tamanho, lado-a-lado, sugerindo uma linha de cidadãos/países homogéneos, interligados e coesos sob a mesma aliança europeia, Filipe separa as bandeiras entre si, conferindo autonomia a cada figura, num processo de individualização que sai reforçado, não apenas pelo trabalho manual das costureiras, mas também pela dimensão variável das figuras. 

Para calcular a dimensão de cada figura/bandeira, serviu-se do indicador do PIB per capita, devolvendo um retrato coletivo de uma União Europeia que nos leva a especular: uma rede dinâmica de conexões entre países membros/UE, por um lado, e cidadãos/países europeus, por outro, à medida que circundamos as bandeiras e nos situamos em 2022.

 

Às diferenças de tamanho de cada bandeira, não demoramos a associar o rumo economicista assumido pela organização comunitária, nem as assimetrias de força que hierarquizam os membros dentro da união. À bandeira dobrada no chão, com as cores da bandeira do Reino Unido, é o Brexit que se cola de imediato, o primeiro rompimento a surgir numa aliança que se julgava em perpétuo crescimento, mas também a negociação de novas adesões, com o momento trágico da Ucrânia a sobrepor-se a pedidos anteriores, como os da Moldávia e da Geórgia. À soma de todas as bandeiras suspensas, forjamos uma união de países democráticos à procura de consenso interno contra o autocratismo russo e, no entanto, limitados, pelas suas dependências económicas geradas no quadro do capitalismo global. Ou uma união, organizada sob um modelo de estado social e a ponderar remilitarizar os seus membros. Já, no desenho da figura humana, projetamo-nos como cidadãos desta comunidade, reconhecendo neste “nós” a figura do “estrangeiro”. Uma intersubjetividade viabilizada pela livre circulação e integração europeias, mas também interrompida pelas lógicas de desigualdade, racismo ou escravatura que permeiam este espaço comum.   

Hóspede não produz os mecanismos de ruído, apagamento ou perda de informação que encontramos noutras peças de Carla Filipe com bandeiras, como Arquivo Surdo-Mudo e Memorial ao Vagão Fantasma [Flags], de 2011 ou O Povo reunido jamais será, 2009/2010. Está, antes, interessado, como trabalho e exposição, em proporcionar uma mise-en-abîme de bandeiras, construída a partir da integridade do valor informativo, neste caso do PIB, onde a União Europeia é levada a interrogar-se a si mesma. Não por acaso se chama Hóspede. Segundo a raiz etimológica do termo, lembra a artista2, hóspede tanto pode significar, aquele que é acolhido, como inimigo ou estranho. 

Na ambiguidade da palavra, espreita uma ideia de União, entre as utopias e direitos definidos para a sua comunidade e os antagonismos que a forçam a não adormecer. 

 

Carla Filipe

 

Villa Arson, Nice

 

 

 

 

 

Sofia Nunes. Crítica de arte e doutoranda em História da Arte/Teoria da Arte na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas - UNL e na Université Paris 1 Panthéon-Sorbonne. Exerceu assistência de curadoria e produção de exposições no Museu do Chiado – MNAC, Ellipse Foundation e Centro de Exposições do Centro Cultural de Belém [2000 a 2007]. Foi professora convidada no Mestrado de Arte Contemporânea da Universidade Católica Portuguesa de Lisboa [2009 a 2011]. Escreve com regularidade para publicações de arte contemporânea e académicas.

 

 

Carla Filipe: Hóspede, 2022. Vista de Exposição. Villa Arson, Nice. Fotografia: Jean Christophe Lett. Cortesia da artista e Villa Arson, Nice. 

 

 

 

 

 

 


 

Notas:

 

1Conjunto de bandeiras monocromáticas que reproduzem o sistema sinalético de circulação. A sua função de regulação do trânsito encontra-se, porém, desativada, pelo facto das bandeiras se apresentarem estendidas num estendal. Concebidas para a exposição individual "Without Name", Galeria Quadrado Azul, Porto, 2005.  

 

2cf. NEM TODAS AS BANDEIRAS SÃO IGUAIS. Carla Filipe em conversa com Marta Moreira de Almeida, 2022

 

 

 

 

 

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