Adam Linder: Shelf Life [blood/barre/brain/cells]
Sobre o tempo de validade da vida. Organismo coreográfico de Adam Linder na Casa de Serralves.
Life did not take over the globe by combat, but by networking.
Lynn Margulis
A tentativa de definição da Vida é um desígnio atemporal, perscrutado por pensadoras, cientistas, artistas, entre outras, desde tempos imemoriais. Recuperando este eterno enigma no livro What is life? [1955], a microbiologista Lynn Margulis e seu filho Doris Sagan propuseram uma teoria evolutiva que considera a vida — da bactéria à biosfera — como um complexo sistema autopoiético[1] que existe e perdura em resultado da interação entre elementos orgânicos e inorgânicos, além dos limites planetários. Margulis e Sagan prosseguiram a investigação de Erwin Schrödinger, o físico e filósofo austríaco que rejeitava o entendimento da vida como um mero processo mecânico, enfatizando a sua natureza físico-química, tendo inspirado a descoberta do DNA e a revolução da biologia molecular. É precisamente essa perceção que nos permite, hoje, conceber as bactérias que deram vida à superfície da Terra como os nossos antepassados. Através de processos simbióticos essas bactérias evoluíram para organismos unicelulares como algas ou amebas, posteriormente para seres multicelulares com ciclos de vida de reprodução e morte, que se desenvolveram em animais [entre estes, o humano], fungos e plantas. A evidência deste nosso passado não humano deveria ser suficiente para confirmar a nossa existência como parte integrante e dependente de um continuum de vida no planeta. De facto, segundo Margulis, os humanos são somente uma ínfima parte da sinfonia auto-consciente do planeta, e toda a vida na Terra é não apenas molecular como também astronómica, dada a sua dependência do sol como fonte de energia.
Em Symbiotic planet [1998], Margulis prossegue a sua investigação em torno da hipótese de Gaia, proposta em 1996 pelo cientista e ambientalista James Lovelock, postulando que toda a vida no planeta otimiza o seu ambiente exterior para a sua própria existência. A teoria de Gaia não supõe que o planeta seja um só organismo, mas uma constelação planetária auto-geradora que emerge de interações entre matéria viva e inanimada, onde os subprodutos humanos como a tecno-esfera concorrem para a complexidade do sistema.
Segundo Lovelock, com a devastação das florestas tropicais e a redução drástica da biodiversidade na Terra, a resiliência climática de Gaia está prestes a atingir, ou já atingiu, o seu ponto de inflexão. No entanto, refere Margulis, a natureza não termina em nós[2], mas avança inexoravelmente. Existe vida à superfície da Terra há mais de três milhões de anos, logo, a teoria antropocêntrica de que o humano pode controlar os acontecimentos planetários é não apenas uma “retórica dos impotentes”[3], como confirma a vasta capacidade do humano para se auto-iludir. Será, na realidade, de si mesmo que o humano necessita de se proteger.
Shelf Life de Adam Linder
Inspirado no conceito de vida, segundo Margulis, como um sistema autopoiético onde a biosfera e a tecnosfera interagem, o performer e coreógrafo Adam Linder apresentou no passado mês de março Shelf Life na Casa de Serralves, um trabalho coreográfico duracional para quatro bailarinos e que, excecionalmente nesta apresentação, contou com a participação de cinco crianças como performers.
Comissariada pelo Museum of Modern Art [New York] para o Marie-Josée e Henry Kravis Studio dedicado à live art, Shelf Life estreou no início de 2020, pouco antes da pandemia. De certa forma, esta obra antecipou o que a pandemia tornaria evidente: a interdependência entre diferentes elementos e escalas nos sistemas metabólicos planetários, e como um microrganismo como o coronavírus pode interferir em estruturas orgânicas e inorgânicas à escala global. Assim, considerando a Terra esta amálgama pulsante de organismos animados e inanimados, Shelf Life incide sobre um organismo vivo particular: o corpo do performer. Inicialmente, o trabalho coreográfico foi concebido de forma a articular três elementos — a Barra, o Sangue e o Cérebro. Para a Casa de Serralves, o trabalho expandiu para incluir um quarto elemento: as Células [as crianças performers]. Esses quatro elementos fazem alusão a diferentes órgãos, como metáfora do sistema nervoso do performer. Apesar de autónomos, os elementos articulam-se e contaminam-se.
No hall da Casa de Serralves, entre a sala de estar e a sala de jantar, vê-se uma instalação escultórica com cordas e separadores de auto-estrada. Vestido com um fato inteiro de neoprene e executando a Barra, um[a] performer sussurra repetidamente "Wait... wait... wait...", usando as cordas e os separadores como suporte para posições de força, tensão e expansão do seu movimento dentro do espaço arquitetónico.
O Cérebro divide-se em cérebro esquerdo e direito, um par de performers, cada um num compartimento da Casa. As Células interpretadas por crianças, convocam inteligências de gerações futuras e interagem com ambos os Cérebros direito e esquerdo, estimulando e induzindo mudanças no sistema. Na ampla sala de estar, um[a] performer encarna o Cérebro direito e responde às instruções dadas por uma das células, tais como: "dez mil anos no passado", ou "cinco minutos no futuro". Reagindo com movimentos impulsivos, propõe um vocabulário abstrato que convoca movimentos de organismos unicelulares.
Na sala de jantar, com um figurino em neoprene amarelo, um[a] performer interpreta o Cérebro esquerdo, mais racional e analítico. Defronte do espelho, em permanente auto-análise e observação de si, com posturas e gestos animalescos, responde com movimentos abstratos às perguntas da célula. O catálogo de questões é longo e intrigante, contribuindo para a estranheza do todo: “Who controls the air in here? Is there dreaming on the internet? Have you been crying? Are we the same species? Does life imitate art or does art imitate life? What is life? Do we feel the same about the future? What is a dancer’s presence?". A cada questão, o Cérebro esquerdo imobiliza-se momentaneamente e reformula sua postura e os seus movimentos como resposta, persistindo em posturas abstratas mas evocativas da sua [nossa] animalidade.
Com calças de neoprene cinzentas, outro[a] performer interpreta o Sangue, percorrendo as diferentes salas da Casa, numa pulsação permanente, com um vocabulário evocativo de fluxos e ritmos. O Sangue é também responsável por manipular o som e, por onde passa, influencia a atmosfera de cada compartimento.
Apesar de encarnarem diferentes órgãos ou elementos, no final da performance, os performers reúnem-se no hall central, interligando-se como células numa sequência em cadeia que se mantém em movimento. Aglomerando-se num só organismo, recitam uma sequência de zeros e uns, fazendo depois quebrar a cadeia que os use, reiniciando posteriormente a performance, cada um com funções distintas. Ao proferirem este código digital de dados encriptados, estes corpos surgem como seres mais do que biológicos, uma espécie de organismos metabióticos com capacidades digitais. De facto, Shelf Life parece aludir a diferentes escalas de tempo de vida. Numa micro-escala, evoca a finitude dos performers, tanto dos seus corpos orgânicos como nas suas eventuais capacidades de inteligência aumentada; na escala média, convoca a efemeridade de uma obra coreográfica; e na macro-escala, pode até evocar o tempo de validade da vida no próprio planeta Terra, como a conhecemos.
Adam Linder tem trabalhado nos contextos teatral e expositivo desde 2013, com propostas de coreografia expandida para formatos de texto, de prestação de serviços e de ópera. Premiado em 2016 com o Mohn Award for artistic excellence, o seu trabalho foi comissariado e apresentado na HAU Berlin, Serralves, Sadler’s Wells em Londres; 356 Mission em Los Angeles; MOMA em Nova York, entre outros.
Nas suas obras mais recentes, Linder tem investigado como a coreografia pode existir por aquilo que é — um conjunto de movimentos que geram um determinado afeto — sem a complexidade do dispositivo teatral, e passível de ser apresentada em qualquer contexto. De 2013 a 2018, desenvolveu uma série intitulada Serviços Coreográficos concebida para o contexto expositivo. Todos os serviços coreográficos exibiam o contrato celebrado com a instituição, fazendo referência explícita às condições de trabalho, duração e custos de cada serviço. O contrato era parte constituinte da própria performance — um objeto performativo como manifesto — propondo uma reflexão política e ontológica sobre coreografia, e de como o contrato social de cada modalidade varia de acordo com o seu contexto de apresentação. Desta série, foi apresentado em Serralves, em 2018, o Serviço Coreográfico nº. 5 intitulado Dare to Keep Kids Off Naturalism, uma proposta que visa introduzir estratégias de teatralidade no espaço “white cube” do museu. Organizado em oito situações, Linder propôs tableaux vivants pictóricos de excesso e estranheza, com recurso a adereços, figurinos e som, deslocando a abstração do espaço museológico ao fundir visualidade e instalação, paisagem sonora e performatividade.
Da mesma forma, Shelf Life colapsa as modalidades de coreografia para o teatro e para o contexto expositivo, respondendo com um léxico singular de formas, movimentos e sons a determinados questionamentos científico-filosóficos: que vida humana entre o orgânico e o digital, entre o biológico e a máquina? E como tal se pode especular em torno do corpo do performer? Neste encontro fértil e incongruente entre as mais diversas escalas — do molecular ao órgão, e do organismo à arquitetura do museu — Linder indaga como a coreografia pode desencadear uma reflexão sobre a natureza mais-que-humana e sobre o futuro de uma super-humanidade tecnologicamente interdependente.
Uma questão que se mantém em aberto. Porque, como nos recorda Margulis, do mesmo modo que nós somos mais do que as células que compõem os nossos organismos, também os nossos gestos e as nossas atividades nos conduzirão para algo que não conseguiremos antecipar, e cujas consequências escaparão ao nosso controlo.
Adam Linder: Shelf Life [blood/barre/brain/cells]. Fotografia: André Delhaye. Cortesia da Casa de Serralves, Fundação de Serralves.
Alexandra Balona é investigadora e curadora independente, sediada no Porto. Doutoranda em Estudos de Cultura, licenciada em Arquitetura (FAUP), é co-fundadora de PROSPECTIONS for Art, Education and Knowledge Production, e integra a equipa de programação da Rampa. Curadora de diversos eventos como independente e em equipa curatorial: Anton Vidokle: Citizens of the Cosmos (Rampa, 2021), Future Past Imaginaries (Rampa, 2021), Um Elefante no Palácio de Cristal (GMP, 2021); Abertura, Impureza e Intensidade. Olhares em torno da obra coreográfica de Marlene Monteiro Freitas (TMP, 2020), Metabolic Rifts (Serralves e TMP, 2017-2018). Escreve no Público, Contemporânea, Art Press.
Ficha técnica:
Adam Linder: Shelf Life [blood/barre/brain/cells]
Performers: Leah Katz, Justin Kennedy, Mickey Mahar, Brooke Stamp
Crianças/Children performers: Marta Oliveira, Beatriz Magalhães, Carolina Laranjo, João Vargas, Rafael Gomes
Commissionado por The Museum of Modern Art, New York.
Notas:
Autopoiesis [do grego auto “auto”, poiesis “criação”] foi um termo introduzido na década de 1970 pelos biologistas e filósofos chilenos Humberto Maturama e Francisco Varela na sua obra De Maquinas y Seres Vivos [traduzido em 1990 para inglês em Autopoiesis and Cognition: The Realization of the Living], para designar sistemas biológicos que têm a capacidade se produzir a si próprios, garantindo a manutenção da sua existência.
Margullis, Lynn and Sagan, Dorion [1995], What is life? Berkeley and Los Angeles: University of California Press, p. 217, [trad. da autora].
Margullis, Lynn [1998], Symbiotic Planet. New York: Basic Books, p. 114, [trad. da autora].