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It’s a date: Sara Graça

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Alberta Romano

It’s a date é uma rubrica da Contemporânea da autoria de Alberta Romano, dedicada a visitas a ateliês de artistas de Lisboa e de todo o mundo, tanto físicas como online.

 

 

Episódio 6:

(a assistente de) Sara Graça

 

Lisboa, maio de 2021

 

Estava literalmente demasiado entusiasmada para esta visita, porque viria a ser a primeira "não-virtual" em mais de um ano. As coisas em Lisboa já começavam a melhorar, e eu já tinha tido uma data de almoços e um jantar com os meus amigos; mas estar com alguém que ainda não conhecia era definitivamente uma experiência mais entusiasmante, e literalmente mal podia esperar por que esta visita começasse. Infelizmente, não foi fácil de organizar.

Até ao dia, só tinha falado com a Iva Lorena, a assistente pessoal da Sara Graça. Foi uma querida em todo o processo: desde o início, tentou organizar o nosso encontro da melhor maneira e garantir que tudo corresse sem problemas. Na manhã da visita ao ateliê, até me ligou a perguntar se eu preferia um café ou um cappuccino (tão amável); mas sim, além disto, não tive exatamente a oportunidade de falar diretamente com a Sara, pelo que não sabia o que esperar dela.

Na Rua Buenos Aires, com uma caixa de bolachas nas mãos, toquei à campainha. A porta já estava aberta, pelo que assim entrei. A Iva Lorena já lá estava à minha espera, com não só um café mas também um cappuccino nas mãos.

 

Iva Lorena (IL): "Olá, Alberta. Bom dia e bem-vinda ao ateliê da Sara Graça!

 

Alberta Romano (AR): "Olá, Iva, prazer em conhecer-te!"

 

IL: "Igualmente! Infelizmente, a Sara ainda não chegou, mas não deve demorar muito. Ela pede desculpas pelo atraso. Senta-te, se quiseres… Oh, e obrigado pelas bolachas! Não era preciso."

 

Foi tudo um bocado surreal. Nunca tinha tido uma visita em que x artista não estivesse presente para me dar as boas-vindas, mas, quer dizer, a Iva era tão amigável e o ateliê era tão acolhedor, que não demorou muito para me instalar confortavelmente, bebericando o meu cappuccino quentinho.

 

IL: "Alberta, enquanto esperamos, se quiseres, talvez possa começar a dar-te umas luzes sobre o percurso académico da Sara. De certeza que ela se sente mais confortável a falar da sua prática artística do que dos seus estudos, por isso posso ser eu a tratar dessa parte. Decerto será útil para a vossa entrevista."

 

AR: "Tudo bem…"

 

IL: "Pronto, boa! Então, a Sara tirou a licenciatura na Faculdade de Belas-Artes do Porto. Enquanto estudava lá, também fez Erasmus na Central Saint Martins, em Londres. Na altura, conheceu uma pessoa que residia numa okupa, e acabou por ir viver para lá. Tanto quanto sei, para ela, foi razão de grande entusiasmo verificar que também existe o reverso da medalha numa cidade tão intimidante como Londres, tão cara e com tanto desperdício: lá, a resistência está muito bem organizada e é mais efetiva, o que significa que se pode realmente viver destas lacunas do sistema. Porém, voltando ao assunto, a artista voltou para Londres para o seu mestrado na Goldsmiths em 2019, tendo então encontrado uma nova okupa."

 

AR: "Uau, deve ser uma experiência interessante, andar na Goldsmiths enquanto se vive numa okupa…"

 

IL: "Sim, de certeza. Pode parecer que só estava ali a divertir, mas não foi o caso. Ela queria estar em Londres, e esta era a única forma de o fazer."

 

AR: "E como foi o curso? Ela gostou?"

 

IL: "Infelizmente, por causa da pandemia, ela só esteve lá a estudar durante seis meses, mas enfim… Na Goldsmiths, há uma expetativa muito elevada — espera-se que os alunos terminem o curso já com um statement concreto e uma autodefinição manifesta daquilo que é o seu produto enquanto artistas, e isto foi um desafio para a Sara."

 

AR: "Claro, entendo perfeitamente. Conheço muitos artistas que estudaram lá, e compreendo o que queres dizer."

 

 

Enquanto falávamos, reparei numa série de porta-documentos em alumínio pendurados na parede, cada um contendo uma pasta marcada com um nome diferente. A Sara só frequentou a Goldsmiths durante seis meses; ainda assim, ao olhar para a organização daquela parede, percebi imediatamente que a escola arranjara forma de se insinuar no seu coração.

"E foi nessa altura que ela começou a trabalhar nestas ratazanas aqui", continuou a Iva, levantando-se da cadeira com ligeireza para passar gentilmente a mão por uma ratazana em mountboard. "As ratazanas vieram de… Bom, não sei se a Sara quer que eu fale disso… mas havia ratazanas no sítio onde ela estava a viver… E a parte engraçada é que viviam lá doze pessoas, todas com diferentes personalidades e posturas perante a vida, mas, quando viram os bichos, toda a gente teve exatamente a mesma reação. A Sara diz-me que começaram todos aos berros e aos saltos. Foi por isso que ela fez as ratazanas. Depois, também para retratar a reação dos colegas, foi para a rua com uma câmara atrás e pediu a alguns transeuntes que fizessem de conta que tinham acabado de ver uma ratazana. Tirou fotografias, e, na verdade, estes dois trabalhos representam duas senhoras idosas que lhe acederam ao pedido.

 

AR: "Que giro! Gosto da forma como foram feitas; parecem adereços. Dá para dobrar e desdobrar, para criar uma realidade do nada. E é interessante ver o que ela construiu: na maior parte das vezes, quando é preciso criar uma realidade falsa, as pessoas constroem algo mais elaborado, com mais pinta… mas a Sara simplesmente construiu algo mais assustador… Por falar nela… achas que ainda vai aparecer?

 

IL: "De certeza que está a caminho, não te preocupes. Quanto à peça, tens razão: a Sara acha fascinante este carácter dobrável … mas talvez seja uma peça que não precise de ser sobre-analisada…

 

AR: "Claro, mas sobre-analisar pode ser bom quando estás a criar qualquer coisa… Quer dizer, não é que tenhamos de nos importar com o que as pessoas acham das nossas criações, mas pelo menos significa que o trabalho… funciona, não achas? Sabes, Iva, e, por favor, não contes isto à Sara, porque me deixa um bocado tímida, mas eu e uma amiga minha temos um podcast sobre a Buffy: A Caçadora de Vampiros, e basicamente a única coisa que fazemos é sobre-analisar. Tenho a certeza de que, se algum dos atores da série alguma vez ouvisse o podcast (o que, claro, nunca vai acontecer, até porque é em italiano), provavelmente morreriam a rir, e diriam qualquer coisa como: 'Oh, vá lá, era só uma série de televisão, não me parece que essa cena quisesse dizer tudo isto.' Ora, o que quero dizer é que, se chegas a um ponto em que as pessoas estão a dizer muitas coisas sobre algo que fizeste, então é porque fizeste algo poderoso, algo que consegue gerar uma data de pensamentos… uma espécie de obra-prima…"

 

IL: "Ah, isso é muito fixe! Percebo perfeitamente o que queres dizer! Acho que a Sara, às vezes, precisa apenas de criar as coisas antes de as compreender por inteiro… Olha aqui, por exemplo!", diz a Iva, chamando a minha atenção para dois desenhos de grandes dimensões, a esferográfica, emoldurados, pendurados na parede. "É muito difícil modificar esta linha aqui… Fazem parte de um processo no qual não há forma de voltar atrás… Vais de um canto para o outro, e, se não gostares de alguma coisa em particular, a única coisa que podes fazer é tentar camuflar, mas não podes apagar… Estou segura de que também a ajuda a livrar-se de parte da sua ansiedade."

 

AR: "São lindos, e fazem-me lembrar aqueles telefones antigos… Aliás, fazem-me lembrar a minha avó, os rabiscos que ela costumava fazer nas páginas amarelas que guardava ao pé do telefone fixo enquanto falava com alguém, talvez por estar aborrecida ou só para passar o tempo… Não sei muito bem se isto é uma coisa boa de se dizer…"

 

IL: "Oh, de todo, acho ótimo. É exatamente essa a inspiração da Sara; ela também tem uma agenda… Não sei se está aqui… espera um pouco… deixa-me ver se a encontro."

 

A Iva parecia compenetrada na sua busca; quando percebeu que não sabia onde estava a agenda da Sara, vi terror a surgir-lhe nos olhos. "Não te preocupes, Iva, não há problema! O que é isto aqui?", pergunto eu, ao olhar para uma pasta no canto superior direito, com parte de um disco de vinil de fora.

 

IL: "Ótima escolha, é uma pasta fantástica! Basicamente, a Sara está agora a trabalhar em colaboração com a sua amiga e artista musical Maria Reis. Tem feito alguns vídeos e capas de álbum para ela, e recentemente até lhe desenhou uma t-shirt! A Sara gosta genuinamente de trabalhar em colaboração com os amigos dela. Enfim… a nossa realidade pode ser muito stressante e precária, por isso, pelo menos, creio que tenhamos de ser honestos connosco mesmas, não é?"

 

AR: "Precisamente, Iva! Fazer aquilo de que gostamos é libertador, e é exatamente por isso que tenho um podcast sobre uma das minhas paixões de adolescente mais profundas… porque gosto de o fazer."

 

IL: "É reconfortante ouvir o que dizes. A Sara tem lidado com algumas pessoas que lhe dizem que ela não devia meter-se tanto assim em colaborações fora do mundo das belas artes… Por falar nisso, sabes o que é que vai ser o projeto dela para a Spirit Shop?

 

AR: "Sou toda ouvidos!"

 

IL: "A Sara quer fazer da Spirit Shop um ponto de encontro: as pessoas vão lá ter, e depois podem ir com ela para a praia."

 

AR: "Espera, como assim?!"

 

IL: "Sim, não vai ser exatamente uma mostra a sério. Ela vai deixar um horário no espaço e, se as pessoas aparecerem, vai levá-las à praia. Basicamente, vai ser um espaço expositivo que pode transportar-nos para a praia… É como se, ao entrarmos, estivéssemos na verdade a chegar à praia."

 

AR: "Mas isso é incrível! E se aparecer alguém de quem ela não goste?"

 

IL: "Imagino que também leve essa pessoa à praia. Esta mostra também é uma forma de levantar algumas questões relacionadas com as noções de interação e comunidade…"

 

AR: "Seguramente!"

 

A Iva continuou a mostrar-me outras peças da Sara, e foi aí que percebi que ela não ia mesmo aparecer. Nunca vou saber se a Iva Lorena sequer informou a Sara Graça da minha visita. Talvez a assistente dela tenha feito tudo em segredo desde o início. Talvez quisesse ser apenas ela a levar a visita a cabo, para se sentir na liberdade de me falar de todas as paixões interiores da artista com quem ela já trabalha há tanto tempo (e por quem, penso eu, está secretamente apaixonada). Talvez quisesse mesmo muito que eu entrasse no mundo da Sara, e não apenas na sua prática artística. Aquilo que de facto sei é que a Sara é uma sortuda por ter perto o amor de pessoa que é a Iva, tão pura e atenciosa. Posto tudo isto, gostei genuinamente desta visita… Acho que "foi especial".

 

 

A Caixa-Mistério

 

A Caixa-Mistério é composta por links, dispostos de forma aleatória no fundo da página, que levarão o leitor a coisas sobre as quais conversámos durante a visita. A forma como são apresentados não é apenas uma maneira nostálgica de recordar o suspense mágico que pertencia às estruturas do início da internet, ocultando também a esperança de suscitar a curiosidade dos leitores um pouco mais do que as clássicas notas de rodapé.

 

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Sara Graça (1993, Lisboa) é uma artista interdisciplinar, orientando a sua prática em termos tanto individuais como colaborativos. A artista licenciou-se em Belas Artes pela Universidade do Porto e inscreveu-se em mestrado na Goldsmiths College, em Londres. Desde então, tem exposto em locais como o Sismógrafo, a Madragoa, a Galeria Quadrado Azul ou a Galeria Zé dos Bois, trabalhando frequentemente também com artistas musicais. Neste contexto, as suas mais recentes colaborações tomaram a forma de videoclips, instalações de palco, capas de álbum e design de merchandising, para artistas como Maria Reis, Gala Drop, Jejuno ou Luar Domatrix. Graça vive atualmente em Lisboa, depois de ter passado pelo Porto e por Londres, onde mantém uma prática fluida sobretudo em contextos de organização autónoma.

 

Iva Lorena (1995, ?) já viveu em várias partes do mundo, tendo começado viajar em tenra idade e desenvolvido trabalho de produção para o negócio de plantas de interior dos seus pais. Depois de se emancipar deste contexto e de outras situações opressivas decorrentes de condições misóginas e capitalistas, Iva mudou-se para Auroville, na Índia, tendo voltando para a Europa pouco antes da pandemia. Nessa altura, Lorena começou a trabalhar com Sara Graça enquanto assistente, canalizando a sua assessoria para brainstorming de agenda, e-mails, listas e exercícios de respiração. Ainda a trabalhar no estúdio da artista, Lorena está atualmente a tirar um curso online centrado em assistência familiar.

 

Alberta Romano é historiadora de arte e curadora de arte contemporânea. Nasceu em 1991 em Pescara. Atualmente é curadora da Kunsthalle Lissabon. Desde 2017, tem trabalhado com a Fundação CRC em Cuneo, coordenando as aquisições para a coleção de arte contemporânea desta instituição. Depois de se formar em História de Arte na La Sapienza em Roma e terminar o Mestrado em Culturas Visuais e Práticas Curatoriais da Academia de Belas Artes de Brera, em Milão, frequentou o programa curatorial CAMPO16 na Fundação Sandretto Re Rebaudengo, em Turim. Escreveu para publicações como Artforum, Flash Art, Contemporânea, Kabul Magazine e outras revistas.

 

Imagens: Cortesia da artista.

 

Tradução do inglês por Diogo Montenegro.

 


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