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Como Viver no Abandono do Mundo

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Eduarda Neves

 

 

"Para as simples operações aritméticas te voltas nos momentos difíceis. Como se fossem um porto de abrigo."

Samuel Beckett (Companhia)

 

  

Pouco importa a indiferença se tudo é possível. Se quase tudo é possível. Dia e noite. Imaginar que a arte, como todas as coisas, tem o seu próprio movimento de rotação. É ela que há muito tempo nos diz que o mundo, mais ou menos iluminado, mais ou menos obscurecido, precisa de sobreviver. Um espaço livre para os dias que passam. Para não acabar. Os velhos ausentes da Classe Morta [1], de Tadeusz Kantor, perduram. Levantam-se e sentam-se. Repetidamente. Solidários, carregam as valas. Em diferentes ocasiões riem-se por trás da janela e correm. Um baile. Artistas. As memórias já não se entendem. Surdos, paralíticos, violentados. Posam para a fotografia como os cadáveres nos antigos daguerreótipos. Esperam o momento justo do fotógrafo e continuam atentos aos vários disparos, a engrenagem da caixa escura é misteriosa. Nunca se sabe o que pode acontecer no outro lado, aquele que nos separa por um fio. O velho da bicicleta chega e grita “atenção”. Arrebatado, dispara.

Uma exposição on-line. Fadiga pandémica é o diagnóstico que circula nos jornais. Não param de nos confiscar. Formas de longa data. Mais lares com dezenas de infectados. O tempo elástico da consciência e o imperativo da consolação. Estamos perdoados de todas as maneiras e assim sendo nada há a acrescentar. Basta gritar. O ruído da máquina kantoriana de aniquilamento que nos lembra a morte. Profecias. A morte da arte. O espírito que já não será absoluto e o ser que aspira a estar fora do acontecimento.

 

A metafísica em todo o lado. É como o sucesso:

Tranquilize-se quem procura o seu verdadeiro rosto, vai encontrá-lo, crispado de inquietação, olhos arregalados. Tranquilize-se quem deseja ter vivido, enquanto vivia, que a vida dir-lhe-á como isso se faz. Promessas sérias. [...] Quero lá saber se tenho êxito ou fracasso? A empresa não é minha. Se querem que eu tenha êxito, fracassarei, só para eles continuarem atrás de mim. [2]

 

Acostumamo-nos aos comportamentos por agenda, uma variante da metafísica da objectividade. Também lhes costumamos chamar prioridades. Os Globos de Ouro foram entregues. Vencedores e vencidos. Covid e não Covid. No final ganhou a Netflix. As plataformas, como o Sars-CoV-2, multiplicam-se para sobreviver. Beckett escreveu que não gostava nem deixava de gostar de pinturas, pois estas não são salsichas. Em democracia, grupos de cidadãos independentes, fora das listas partidárias, são impedidos de apresentar candidaturas. Em democracia, vários artistas independentes há muito que são impedidos de o ser. A democracia e a repressão. Nos dias que antecedem a enunciação das regras para o desconfinamento que se segue, as notícias continuam a divulgar protestos e mortes em Myanmar, a União Europeia critica a repressão, alguns partidos políticos acusam a EDP de abuso de benefícios fiscais. A noiva de Jamal Khashoggi apela à punição do príncipe herdeiro saudita, Mohammad bin Salman, suspeito de legitimar a captura ou morte daquele jornalista. O príncipe não será convidado nos próximos tempos a visitar os EUA. O labirinto pouco se altera, é uma forma intemporal. O molde para um desenho infinito.

Segunda exposição on-line. Cidades vazias teatralizam a morte. Na mercearia, duas cabeças impotentes desfolham anúncios de férias enquanto conversam sobre o prémio que a Universidade de Coimbra atribuiu ao cardeal José Tolentino de Mendonça.  Dizem que o cardeal simboliza os valores daquela instituição. Cadeiras vazias nas esplanadas dos cafés. Mais mulheres espancadas e artistas que contestam a falta de apoios. O dinheiro que não vem. Coisas destas. A franca ineficácia do acto moral perturba qualquer manifestação de darwinismo. De pouco nos serve invocar a beleza do dia ou o esplendor do crepúsculo. Todas as manhãs, todas as noites, se revelam como um assalto. Ainda não somos capazes de agir, celebramos o fracasso. Há problemas que, como certos autores nos ensinaram, ainda não são actuais. Nietzsche sabia que ele próprio era uma coisa e o que escrevia era outra:

 

Antes de falar deles [textos], tratarei aqui o problema da compreensão ou incompreensão desses escritos. Fá-lo-ei com todo o desinteresse que convém: pois este problema não é ainda actual. Eu também não sou actual, alguns nascem prematuros. [3]

 

Podemos ainda ler num portal português fornecedor de serviços e produtos para a internet que Grimes, uma cantora, casada com um grande magnata, doará parte dos seus lucros a uma organização sem fins lucrativos que se dedica à redução das emissões de carbono. Terá lançado uma colecção de arte digital, chamada WarNymph, leiloada através da plataforma Nifty Gateway: “A peça Newborn 2, com um preço original de 20 dólares, foi vendida em apenas 10 minutos, com a melhor proposta a alcançar os 300.000 dólares. A obra de arte já está a ser revendida na plataforma por um preço de 2,5 milhões”. As plataformas, solidárias com a caridade, como num filme americano, nasceram para vencer. Os magnatas também. A cantora pop ainda se preocupa, na linhagem de grande parte da arte contemporânea, com o antropoceno: Miss Anthropocene é um dos seus álbuns. Sempre actual este parque temático “dos rebanhos de seres pedestres” [4] para falar como Sloterdijk.

Terceira exposição on-line. Mais uma a percorrer virtualmente. A domesticação, a bitcoin que não paga IRS e os crimes de desobediência que não abrandam. Uma funerária anuncia que as cremações, lápides e jazigos podem ser mais baratos em 2021. A Classe Morta não acaba. As mesmas palavras que se repetem e empurram. Disse Kantor que a memória é como um daguerreótipo. Os velhos em delírio recitam frases eufóricas que ninguém entende. Todos sujeitados não se sabe bem a quê. A noite aproxima-os da chegada.  Talvez a vida esteja reunida naquele berço mecânico. Esperamos pacientemente o céu para não sermos derrotados pelo que acontece à nossa volta. Sempre este excesso de significação, de ressonância comum. Doentes por complacência. Já é Primavera:

 

O mundo inteiro. O louco é aquele que ganha os bastidores. A voz dirige-se no escuro àqueles que permanecem nas margens. Foi nisto, diz a voz, foi nisto que se tornou a vossa inteligência, a vossa primavera, as vossas crenças. Foi nisto que se transformaram os vossos princípios, os vossos museus, os vossos discursos. [5]

 

Mais vacinas e a respectiva subida de preços a partir de Julho. A escassez e os ganhos financeiros. A aplicação clubhouse já tem milhões de adeptos motivados para a voz num mundo que cada vez mais impede a palavra, personal trainers confinados mas felizes, dizem. As revistas internacionais do regime já anunciaram os melhores artistas de 2020. O festival da canção. Nesta espécie de colónia penal cada um fabrica os artistas que quer ter.

Variações do estado da arte.

Já estamos longe. Apenas a vontade de ir. Quando não há corpo não há corpus. A arte torna-se uma enorme fadiga. Até à desistência. Ou ao abandono do mundo.

 

 

Eduarda Neves. Licenciada em Filosofia e Doutorada em Estética. Professora de teoria e crítica de arte contemporânea, área na qual tem vários trabalhos publicados. Curadora independente. A sua actividade de investigação e de curadoria cruza os domínios da arte, filosofia e política. 

 

A autora escreve segundo a antiga ortografia. 

 


Notas:

[1] La Classe Morte, de Tadeusz Kantor, encenador polaco, constitui uma das maiores obras de referência do teatro contemporâneo. A primeira apresentação do espectáculo decorreu, em 1975, na Cracóvia .

[2] Samuel Beckett - O Inominável. Lisboa: Assírio e Alvim, 2002, p. 90.

[3] Friedrich Nietzsche - Páginas de autobiografia. Lisboa: Guimarães Editores, p. 43.

[4] Peter Sloterdijk - Normas para el parque humano. Madrid: Ediciones Siruela, 2000, p.77.

[5] Christian Bobin - Um vestido curto de festa. Lisboa: Editora Barco Bêbado, 2020, p. 83.


 

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