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Entre o Anúncio e a Denúncia: a Obra Prospectiva de Silvestre Pestana

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Sara Castelo Branco

 

Determinando-se no interior de uma prática artística que, nos últimos quarenta anos, tem-se ordenado num questionamento inquieto, desassombrado, crítico e subversivo, a obra de Silvestre Pestana (1949, Funchal, Madeira) ainda é uma das mais singulares e experimentais no horizonte da arte contemporânea portuguesa. Iniciada em meados da década 1960, a obra do artista constituiu um conjunto de trabalhos heterogéneos e prospectivos, que se têm desenvolvido nas estâncias da performance, da poesia experimental, do vídeo, da fotografia, da escultura, da instalação ou da intervenção no espaço público. Esta exploração das potencialidades de diferentes meios tem como referente comum o carácter indisciplinar e insurrecional com que Silvestre Pestana aborda diversas emergências sociais e culturais sob o signo de um hibridismo heteróclito: isto é, pela irregularidade de uma prática incessantemente insubordinada a ordens e preceitos.

A obra de Silvestre Pestana é particularizada pelo seu experimentalismo sonoro, visual e performativo, estando cingida frequentemente a um processo que envolve “a cada etapa o seu medium, a cada tempo o seu instrumento, a cada saber a sua objectivação” (Silvestre Pestana, 2016 [1978]). Detendo como pontos nevrálgicos a resistência e a expressão livre, os seus trabalhos têm vindo a abordar, de modo prenunciador e agudo, diferentes problemáticas relacionadas com a política, a ecologia, a sociedade, a tecnologia, a iconografia ou a autobiografia. Estes tópicos existem na sua obra desde o seu período inicial, quando esteve associado à Poesia Experimental Portuguesa (PO.EX.) nos anos 1960, interpelando a forma poética enquanto expressão visual que frequentemente hibridizava através da objectualização e espacialização da linguagem. O desenvolvimento das primeiras experiências performativas e de intervenção no espaço público, bem como a sua aproximação a determinados movimentos ambientais e ecológicos, sucederam no decorrer do seu exílio em Estocolmo (entre 1969 e 1974); já o regresso do artista a Portugal, após o 25 de Abril de 1974, marcou a sua actuação pioneira nos domínios nacionais do vídeo, da performance e dos meios informáticos. Mais recentemente, a sua prática artística alargou-se a tecnologias como os drones ou a criação digital de avatares na Second Life, que vieram dar continuidade àquelas que têm sido reflexões multiformes e contínuas na sua obra: o virtual, a materialidade, a biopolítica, a mediação ou a reflexão critica acerca do controlo, do jogo ou do belicismo.

Neste sentido, se a obra de Silvestre Pestana assimilou e reflectiu, incessantemente, sobre as novas problemáticas que faziam mover o mundo no momento da sua mesma emergência, o artista deu simultanemante continuidade a questionamentos intemporais — formando uma obra que intrinsecamente existe conforme e além do seu tempo.

A prática artística de Silvestre Pestana tem origem na década de 1960, quando começou a trabalhar sobre o experimentalismo da linguagem, inserindo-se na actividade da poesia concreta e visual associada ao Movimento da Poesia Experimental Portuguesa — PO.EX.. A condição híbrida das suas obras iniciais — que se tornaria um atributo transversal e distintivo no seu percurso criativo — é perceptível pelo processo de alargamento do verbal aos sistemas sígnicos da visualidade, do sonoro, da espacialidade e do objectual. Esta aproximação do artista à problemática da linguagem foi influenciada por António Aragão, um dos poetas e escritores mais reconhecidas da PO.EX. (juntamente com nomes como Ana Hatherly, Ernesto de Melo e Castro ou Herberto Helder), convertendo-o num dos elementos principais da segunda geração de poetas experimentais portugueses que, ao contrário da sua primeira formação, não descendia essencialmente da literatura, mas de um campo mais vinculado às artes visuais [1]. No contexto da PO.EX., Silvestre Pestana expandiu as estruturas da linguagem de forma lúdica e interactiva, realizando poemas que questionavam a bidimensionalidade, o enquadramento dos limites imagéticos ou a sucessão sequenciada da escrita, através de um exercício que frequentemente conciliava a fotografia, o desenho, as palavras, o néon ou a representação corporal.

A obra Atómico Acto (1969), o primeiro poema-objecto de Silvestre Pestana, consistia num balão de borracha que, ao simbolizar uma explosão atómica e as consequentes repercursões perversas da guerra, era acompanhado por uma legenda que paradigmaticamente enunciava construir o poema destruir o objecto. De forma semelhante, o tríptico Egómetros: Limite D’Ar-Te do Séc. XX (1982) é modelar de uma expressividade poética do visual e do espacial na obra do artista que, desdobrando a linguagem em acção performativa, utilizava a tridimensionalidade, o movimento e a acção como métodos fundamentais no processo de construção do poema. A obra poética de Silvestre Pestana construída pela conexão entre a performance e a linguagem fez-se similarmente por um entendimento do corpo enquanto suporte construtivo e manipulatório do poema. O questionamento crítico às operações bélicas, a oposição aos regulamentos fascistas ou a abordagem a determinados dilemas identitários são alguns dos motivos ubíquos na obra poética do artista — mas também temáticas contínuas no seu percurso artístico. A problemática identitária surge por exemplo no foto-poema Povo Novo (apresentado na Bienal de São Paulo em 1977), onde o artista actua sobre a representação do ovo — um elemento recorrente na obra de Silvestre Pestana da década de 1970 —, que assoma aqui como a configuração simbólica de uma potencial nova ordem social pós-revolucionária que seria emblemada por este signo embrionário, fecundo e transformador. Ainda na década de 1970, distinguem-se os desenhos da série Pautas (1975), composições gráficas marcadas por sistemas geométricos e coloridos; e, posteriormente, a aproximação da sua poesia experimental às potencialidades do computador com a criação da série Computer Poems (1981-83), onde combinou sistemas digitais com métodos analógicos.

No decorrer dos anos 1970 e 1980, Silvestre Pestana desempenhou uma função vanguardista na utilização artística do vídeo em Portugal. Dando continuidade à exploração dos domínios da materialidade e da mediação, o artista teve um papel anunciador e singular na exploração da prática artística do vídeo no país, mas identicamente na sua teorização, como demonstra a acitividade lectiva que desenvolveu nesta área, bem como a autoria dos textos Vídeo-Poética (1978) ou Alguns Pontos Analíticos da Gramática Vídeo-Poética (1979). O trabalho videográfico de Pestana inscreve-se na sua criação poética, sendo matéria sincrética das suas performances e de outras acções em que intersecta imagens filmadas com signos verbais e abstractos. Além da visibilidade dada às mecânicas processuais e construtivas das imagens (como demonstra a obra UNI VER SÓ (1985) em que o artista visibiliza o processo de montagem da peça), a sua criação em vídeo é caracterizada pela ausência de edição sonora, corte ou montagem, onde os erros deliberados consertam com uma natureza crua e inalterada que se autonomiza das estereotipias cinematográficas e televisivas. Estas particularidades são demonstradas exemplarmente no vídeo-poema-performance Homestasias (1978-80), que sinaliza a primeira abordagem do artista à questão da biometria, isto é, aos métodos estatísticos e identificatórios das características físicas e comportamentais dos seres vivos.

Neste mesmo período temporal, o artista irá introduzir a imaterialidade lumínica do néon e das luzes fluorescentes na sua obra que, integradas na fotografia/escultura e manipuladas pela performance, irão por exemplo fixar visualmente a percepção do movimento ou certas disposições corporais. A este propósito, a obra Tecnolabirinto (1972) retoma o jogo signico entre o ovo, o povo e o novo, integrando-lhe agora o néon para versar certas características normativas de produção de comportamentos binários nas sociedades contemporâneas, representadas aqui pela sinalética permissiva ou limitadora dos semáforos e dos códigos das bandeiras náuticas. O artista emprega similarmente o néon como elemento escultórico estrutural em Luso Padrão Lunar (1987-1988) e Luso Padrão para Marte (1992-2006) onde aborda problemáticas do imaginário histórico nacional. A utilização do néon surge identicamente de forma frequente na abordagem que o artista realiza à dinâmica activa entre a arte e a ciência, demonstrada paradigmaticamente na convocação da simetria das naturezas biomórficas em Águas Vivas (2002) ou na representação das formas geométricas fractais em Árvore Fractal (2003).

Um dos traços mais regulares na obra de Silvestre Pestana envolve a sua abordagem mutiforme às potencialidades do real/virtual e às diversas formas de experiência, representação, sociabilização e intervenção social da tecnologia.

A partir de sistemas digitais de comunicação, entretenimento e controlo, as obras mais recentes de Silvestre Pestana têm interpelado a indústria dos jogos electrónicos, a configuração contemporânea das operações tecnológicas bélicas ou a criação performativa no espaço da Web pela auto-génese enquanto avatar digital.

Em Sufoco II (2014), Silvestre Pestana assoma reproduzido em diferentes suportes de representação, trabalhando sobre os comandos à distância do controlo militar contemporâneo, através da utilização de drones e da plataforma virtual da Second Life. Se a guerra se aproxima continuamente do jogo, na medida em que a superfície de batalha desterritoralizou-se e o corpo desmaterializou-se, o trabalho do artista questiona um alheamento e banalização perante a guerra, onde o comando distante dos conflitos militares inscreve-se nas contingências da moral, ou da amoralidade, pois não há uma consciência do eu e do outro. Convocando identicamente as forças que modelam as práticas políticas de dominação, de sujeição e de disciplinarização dos corpos na constituição de uma biopolítica foucaultiana, Silvestre Pestana dá continuidade a um entendimento comum na sua obra que vê o corpo na sua contínua ressignificação, preconizando assim uma sinergia face à clássica divisão entre a organicidade e a técnica. Já a performance Zangões (2016) — concebida especialmente para a exposição Tecnoforma (2016), a primeira mostra antológica da sua obra, com curadoria de João Ribas no Museu de Serralves (Porto) — é composta pela utilização de drones (que, na sua constituição sonora e elevação voadora, se assemelham a insectos) para novamente problematizar uma dinâmica relacional entre a tecnologia, o humano, a guerra e a natureza. De forma semelhante, a performance Drones (2012) integra helicópteros de plástico tele-comandados para reconstituir um cenário bélico que referencia bombardeamentos aéreos de destruição massiva que, desde a Guerra do Vietname, foram intensa e sensacionalistamente televisionados.

Estas obras cingem portanto uma ambivalência entre elementos positivos, lúdicos e fascinatórios da tecnologia, e as suas dimensões inversamente perniciosas, negativas e ameaçadoras — sendo no embate entre estas duas proposições que o artista torna perceptível diversos encadeamentos críticos entre a sociedade, a cultura e a tecnologia. Cumpre, por fim, afirmar que parte desta mesma atitude subversiva e activa de Silvestre Pestana levou-o a reunir-se a uma jovem geração de artistas do Porto, sendo um agente fundamental do circuito artístico independente da cidade, algo que se manifesta em performances e exposições individuais realizadas em locais como o Espaço Mira (2014, 2020) e o Uma Certa Falta de Coerência (2009, 2012, 2017, 2018).

A índole da prática artística de Silvestre Pestana articula-se em dois movimentos essenciais que, numa intensidade de carácter prospectivo, se projectam em trabalhos que “valorizam um anúncio e outros que promovem uma denúncia” (Silvestre Pestana, 2016). As suas obras tanto exaltam e se entregam às potencialidades do futuro, como delatam e se insurgem contra os perigos e malefícios que configuram parte desse mesmo porvir. Nesta acção contínua de equilíbrio entre o positivo e o negativo, a sua obra assenta numa extensão fértil de experimentalismos e sincretismos, perscrutando os intercâmbios entre o real e o imaginário, o individual, o colectivo e a sociedade. A intensa, constante e plural discursividade da obra de Silvestre Pestana inscreve-se portanto em linhas de singularização e de resistência, em que “criar é resistir efectivamente”, sendo sempre uma prática de “libertação da vida” (Deleuze, 1988-1989).

 

Silvestre Pestana

Centro de Arte Contemporânea Graça Morais 

 

Sara Castelo Branco é Doutoranda em Ciências da Comunicação/Arts et Sciences de L’Art na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas - UNL e na Université Paris 1 Panthéon-Sorbonne. Mestre em Estudos Artísticos – Teoria e Crítica da Arte pela Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto (FBAUP) e licenciada em Ciências da Comunicação e da Cultura (ULP). Na área da crítica e da investigação sobre as áreas do cinema e da arte contemporânea, tem colaborado regularmente com textos para revistas, catálogos e outras publicações de âmbito académico e artístico.

 

A autora escreve de acordo com a antiga ortografia.

 

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Silvestre Pestana, Código Aberto, vistas gerais da exposição no Centro de Arte Contemporânea Graça Morais, em Bragança. Cortesia do artista e CAC Graça Morais.


Notas:

[1] Ver o texto Silvestre Pestana: Poesia ou Morte (2016) de António Preto. Silvestre Pestana: Tecnoforma [catálogo]. Porto: Fundação de Serralves.

 

Bibliografia:

 

— Deleuze, Gilles. 1994 [1988-1989]. Abecedário. Documentário. Paris: Éditions Montparnasse.

— Silvestre Pestana: Tecnoforma [catálogo]. Porto: Fundação de Serralves. Com textos de António Preto, Verónica Metello e Adam Kleinman, e uma conversa entre João Ribas, Silvestre Pestana e Mauro Cerqueira. 

— Pestana, Silvestre, Aguiar, Fernando (eds.). 1985. Poemografias: Perspectivas da Poesia Visual Portuguesa. Lisboa: Ulmeiro.

 

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