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Stray Gods

vista geral com daniel barroca.jpg
José Marmeleira

Dar a ver, tornar públicos os trabalhos dos artistas, assegurando-lhes uma existência que os transformará em arte. Fazê-los sair da escuridão a que o atelier os confina. Oferecer-lhes espectadores. Ora, diz-nos o senso comum, é isso o que se espera das exposições. Na Galeria Graça Brandão, a coletiva Stray Gods acolhe esse desígnio, mas de um modo que afirma a sua singularidade. É prospectiva e generosa, logrando reunir não apenas um conjunto eclético de nomes, mas um leque de artistas que escapam ou têm escapado, por força das circunstâncias, às luzes mais intensas da publicidade: André Poejo, Bernardo Simões Correia, Sara Morgado Santos ou Leonardo Rito. A este conjunto, juntam-se figuras de outras temporalidades (Joaquim Rodrigo, Albuquerque Mendes) e provenientes dessa geografia cultural, espiritual e política, no presente animada por uma intensa convulsão, que dá pelo nome de Brasil (Sofia Borges e Cristiano Lenhardt).

Propor, tornando visível. E, no passo seguinte, colocar obras em pontos diferentes do espaço para que possam falar entre si, traçar conexões, libertar reflexos. São estes os gestos que Marta Mestre e Gonçalo Pena, os dois organizadores da exposição, asseguram, definindo um espaço de liberdade em que as obras se movem em surpreendentes e inusitados encontros. Por exemplo, os pictogramas de Joaquim Rodrigo que, com a alegria da infância aparecem sobre a cor terrosa, ecoam nos recortes que antropomorfizam as esculturas de Bernardo Simões Correia. Há um humor benigno, lúdico a ligar, leve e irreverentemente, os trabalhos dos dois artistas, pese embora a diferença de contextos, questões e técnicas a que aludem.

Outro nexo possível surge em termos disciplinares. Veja-se, no piso térreo da galeria, a presença de vestígios (objetos, tinta) de ações passadas. Remetem para performances realizadas por Luísa Mota e Daniel Barroca, prática que reencontraremos, por outros artistas, documentada ou representada em fotografia e explorada em filmes. Stray Gods alimenta-se da energia, por vezes imprevisível destes encontros, não se furtando a tensões, desvios e impasses. Importa sublinhar — antes que este texto se escreva mais — a presença do propósito inspirador da coletiva (aliás implícito no título): “Interrogar a religiosidade no fenómeno artístico, após uma suposta morte de Deus, sendo possível, no entanto, discernir ‘grutas em que se mostrará a sua sombra’ ”. Este é o princípio do qual partem as obras (mas não o fim), princípio esse condicionado por uma realidade que os organizadores parecem reconhecer: a de que a arte é um produto da secularização, um dos quais foi o de devolver o homem ao mundo, sem a confiança numa vida extramundana ou pós-terrena. Portanto, não há um tema a subordinar as propostas, mas estas reagem a uma questão (se se quiser a um dilema) sem qualquer intuito programático ou fim epistemológico.

Retratado numa série de fotografias realizadas em 1976, na Póvoa de Varzim, Albuquerque Mendes poder ser considerado a figuras tutelar de Stray Gods. Vemo-lo num ritual, a evocar uma miríade de tradições populares e correntes artísticas, a reclamar a rua como espaço público de intervenção diante do olhar de uma audiência curiosa e espantada. Realizadas por Ursula Zangger, as fotografias não documentam apenas a performance, são pedaços indexantes de um ambiente particular: o pós-25 Abril, com os seus corpos e olhares, promessas e paradoxos. Esta verve documental também se insinua, ainda que de um modo inesperado, nos filmes do artista brasileiro Cristiano Lenhardt. Em Guaracys (2008) e Superquadra-Saci (2015), observam-se paisagens, vislumbres de lugares (Brasília, Recife) no interior de ficções em que a música (eletrónica e popular) e a cultura visual se mesclam, se entrechocam com humor e júbilo. Não assistimos a actos em que o artista suspende o quotidiano ou introduz um tipo de sagrado no profano, mas personagens ou figuras fantásticas de uma poética habitada por possibilidades de comunhão (com a terra e a cultura) e tensões irresolúveis (com o modernismo). Apesar da distância temporal e cronológica, há uma vibração colorida e corajosa a ligar estes trabalhos com as imagens de Albuquerque Mendes.

 

A performance também aparece — como se já mencionou — como indício, resto, marca, objeto. Num longo tecido deixado por Luísa Mota no chão, e numa mão de argila suspensa do teto, sob a qual repousam pedaços de outras mãos e tinta derramada (elementos de uma performance de Daniel Barroca).  Inerte no chão, o tecido permite-nos imaginar a existência de um corpo agora tornado imaterial, invisível, enquanto o que resta da performance de Daniel Barroca nos transporta para a violência do falhanço de um gesto prometeico. A sensação de ameaça e irrupção deste trabalho não anda distante da frase apocalíptica que encima as esculturas de Bernardo Simões Correia que, colocadas sobre plintos frágeis, ameaçam cair ou partir-se: “If we burn, you burn with us”.

Stray Gods é, também, uma exposição de pintura que atesta a diversidade da prática e do género. De Leonardo Rito, note-se as surpreendentes representações de episódios bíblicos em que o artista reinterpreta a pintura religiosa por meio de um uso da cor e da figuração em que se pressente a influência de universos visuais extra-artísticos. Recorrendo a um pontilhismo luminoso, a pinceladas circulares e rigorosas, o artista aprofunda, ao mesmo tempo, uma ruptura e um regresso em relação à tradição do género pictórico. Noutro plano, está a pintura falsamente monocromática de Luísa Jacinto, na qual se enxerga, sob a tinta, um espaço arquitetónico, um huis clos com ressonâncias metafísicas.

A exploração de espaços habitados por seres demiurgos, deuses e entidades divinas, teatros em que se encenam dramas e alucinações surge nas propostas distintas da artista brasileira Sofia Borges e da artista portuguesa Sara Morgado Santos. A primeira mostra-nos uma fotografia do que parece ser um ritual interpretado por seres mitológicos que, sob um olhar mais atento, parecem desaparecer no fundo daquele cenário, diluir-se nas imagens. O que está diante do visitante em termos de prática: fotografia, performance, escultura? Ou um ritual de uma pesquisa que tem como objeto a própria interrogação da imagem fotográfica e dos significados que ela parece conter? Já os três filmes de Sara Morgado Santos, inspirados na poesia de Jorge Luís Borges, levam-nos a outros lugares: o da escultura expandida, o de uma reflexão artística sobre a visão e a crença, o atelier como espaço ficcional, irreal, fantasmagórico. Poder-se-ia pensar que uma ansiedade vitalista face ao sagrado (da arte) contagia, subterrânea, esta exposição, mas nunca chega a manifestar-se. O humor, a ironia, o próprio prazer mundano de fazer arte, (veja-se a intervenção dos Von Calhau! ou vídeo de André Poejo) fazem dela uma exposição saudavelmente extraviada. E é dessa condição que os artistas reflectem sobre o corte que a arte fez com a magia, o mito e religião. É esse corte que evocam (veja-se o vídeo Sentinela, de Cristiano Lenhardt), sem qualquer pretensão de cura ou de restauração.

Galeria Graça Brandão

José Marmeleira é Mestre em Comunicação, Cultura e Tecnologias da Informação (ISCTE), é bolseiro da Fundação Para a Ciência e a Tecnologia (FCT) e doutorando no Programa Doutoral em Filosofia da Ciência, Tecnologia, Arte e Sociedade da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, no âmbito do qual prepara uma dissertação em torno do pensar que Hannah Arendt consagrou à arte e à cultura. Desenvolve, também, a actividade de jornalista e crítico cultural independente em várias publicações (Ípsilon, suplemento do jornal PúblicoContemporânea Ler).

leonardo rito_von calhau_luisa jacinto
sara morgado santos
andre poejo_von calhau
ursula zangger_albuquerque mendes
cristiano lenhardt
bernardo simoes correia

Stray Gods. Vistas da exposição na Galeria Graça Brandão. Cortesia dos artistas e Galeria Graça Brandão.

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