17 / 20

António Poppe: Mil Órbitas

Pormenor1.jpg
José Marmeleira

Em Mil Órbitas de António Poppe (Lisboa 1968), há experiências inelutáveis, às quais o espectador se entrega quando entra na Galeria Zé dos Bois. Perscrutar o que as imagens mostram e escondem, nas suas camadas, nos seus quebradiços volumes, recortadas, coladas, tocadas, frágeis, suspensas, seguras. Ver, sondar, sobrevoar, com o olhar, o que antes era chão — um chão de folhas — e agora se torna parede, disco, página de livro.

Colagens: talvez se possa recorrer a esta designação diante de Palco Primeiro (2019), de Tambor (2019), de Deep See (2018) ou de A Grande Imagem (2011-2019), obras que, em termos visuais, despertam os movimentos implícitos nas ações mencionadas.  Distintos, têm a sua origem em Livro da Luz (Documenta), Medicin (Douda Correria) e Come coral (Douda Correria), livros em que a escrita se faz sobre as imagens, se transforma em imagens, numa caligrafia-colagem. Um modo de nos abeirarmos de Mil Órbitas é aceitá-la como transposição espacial, fragmentada, transfigurada, desses livros (embora, obviamente, lhes escape, os transcenda). É deles que saem as páginas, de escrita e de desenho, feitas pelo mesmo gesto, que vão pontuando, marcando o ritmo da exposição.

Vemo-las em quase todas as salas, como superfícies em que a palavra, rasurada, se desenha para ser desenho, sendo poema para ser declamado, dito, cantado. Resistem à interpretação, ao intelecto da razão, para se oferecerem à visão, ao puro olhar, escondendo ou, antes, guardando sentidos, relações fonéticas e semânticas com os conteúdos das colagens, com as imagens. Também estas saem do livro, sem hierarquia, para se encontrar com outras, inéditas. Desenhos, mandalas, paisagens, figuras humanas, rostos, retratos, vulcões, estátuas, pinturas, asas de borboleta, partos, crianças, detalhes de plantas e rochas, buracos, água. Todas como se trazidas, como se reunidas, citando um verso de António Poppe (da canção Panorama) pela “espontaneidade mágica das crianças”. São imagens sobre imagens, imagens ao lado de imagens, imagens dentro de imagens. Um redemoinho de aberturas, fendas, passagens.

Mil Órbitas começa numa pele de círculos recortados, como se a compor, a tecer um cenário. Suspensa, recebe o visitante na forma de preâmbulo, familiarizando-o com formas e fazeres. E é então que, no primeiro piso, os livros se abrem para fora, num palco de papel, com as imagens a tornaram-se múltiplas, a ganharem volume, fundo. Como projeções no espaço, azuis, vermelhas, com o desenho a revelar-se (num trabalho a tinta da china), num pequeno teatro em que a vida e a arte de António Poppe se cruzam, se colam, em que o processo de trabalho se desnuda. Nesta peça, em forma de diorama, vemos o desenho e a escrita como se produzidos pelas imagens e vice-versa, num fazer mútuo e ali suspenso.

Manifesta-se a relação da escrita poética de António Poppe com as peças. Fazem parte da mesma voz que explora as vizinhanças, os cordões que cosem a imagem ao desenho, o desenho à caligrafia. Em Tambor, uma das mandalas (a que poderíamos chamar, também, círculos, órbitas, planetas, disco), intuímos relações com a poesia dos três livros. A profusão exuberante e iluminada de cores (no papel) e de coisas (representadas) leva-nos a frases ou versos como este: “coral de película incandescente/emanando o inefável corpo boreal”, da canção O agitador e a corrente com Mumtazz. Ou a este: “das flores ao mundo/ do mundo às flores”, da canção Redondo palpável. A palavra que dá o título ao trabalho pode ser, aliás, encontrada no livro, mas é importante dizer que relação entre as imagens e os poemas do artista não é uma tradução. Partilham o mesmo rumor, o mesmo cantar.

É em Tambor, também, que se vêem rostos de amigos, de companheiras e familiares, de autores e companheiros do espírito. Famílias. (Simone Weil, Maria Zambrano, a Mumtazz, Arundhati Roy, Alexandra David-Néel, Carlos Paredes, Amália, Jnani, Laleh Korramian, Ennos Williams). Estão ali, palpáveis, frágeis, frontais e reaparecerão em Deep See ou em A Grande Imagem. No fundo destas peças, há um trabalho específico, uma visão sobre os materiais e o processo. António Poppe contacta com a meditação há 15 anos, desenvolve uma introspeção intuitiva, mas não dilui, num qualquer solipsismo, a diversidade do real. A sua atenção recomeça e distrai-se, a sondar a fonte, quase por instinto, mas o que nos mostra, ou o que nos permite ver não são fantasias ou distorções.

As imagens, os desenhos, os recortes que se juntam, que se aproximam, que se misturam provém de uma colagem em expansão que não visa o comentário ou a rutura provocada por imagens contrárias, antes emerge de um fundo afetivo e emocional, biográfico. São produzidas por uma memória que, indiscernível e silenciosa, nasceu no real que também habitamos.

Talvez seja no desenho que transforma, que germina a escrita, libertando-se da autoridade do significado, que esse regresso ao real mais se demora, mais se acalenta na imaginação. Veja-se por exemplo, A La Clézio, feita de páginas escritas e enresinadas sobre as quais nada e se desenha um peixe (imagem que o artista encontrou numa leitura de Índio Branco, livro do escritor francês Jean-Marie Gustave Le Clézio). Daqui resulta um poema que se torna escultura, um castelo de cartas, um desenho erigido, no qual se manifesta um dos traços da arte de António Poppe: o seu profundo trabalho de escuta, de fala com outras culturas e civilizações que não a ocidental e europeia, numa continuada e humilde aprendizagem. Advém daí a diversidade de referências visuais e formais ao budismo, ao hinduísmo, às mandalas, ao exercício fascinado e fascinante, livre e disciplinado, de olhar outras caligrafias (em Hologramática, uma composição de textos que formam um desenho, ou em Esqueleto d’Asa, a formarem uma ave de papel) ou de fazer outras caligrafias (em Pauta para kora de Ibra Galissa, de cujos desenhos/letras/palavras se forma o contorno de um cisne).

Enquanto cola e descola as suas iluminuras, enquanto erige as suas mandalas, António Poppe recita, canta, declama. Este é um trabalho que faz durante o cair em si, numa progressão, num caminhar de mãos. É dele que nascem Deep See, em que as superfícies azuis ardem e iluminam, elevando os objectos, ou Esferas que amam Tangentes, a roçar o chão (com a força de uma simples colher), desenho-colagem a abrir imagens no espaço. Em Mil Órbitas, o mundo de António Poppe balouça na gravidade, em formas circulares, em desenhos sem peso, imagens que trazem imagens, como nessa A Grande Imagem, o trabalho que encerra a exposição. Panorama de um fundo oceânico em que os corais brilham, mural cor de carne que escorre da parede em folhas e flores.

António Poppe

ZDB - Galeria

José Marmeleira. Mestre em Comunicação, Cultura e Tecnologias da Informação (ISCTE), é bolseiro da Fundação Para a Ciência e a Tecnologia (FCT) e doutorando no Programa Doutoral em Filosofia da Ciência, Tecnologia, Arte e Sociedade da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, no âmbito do qual prepara uma dissertação em torno do pensar que Hannah Arendt consagrou à arte e à cultura. Desenvolve, também, a actividade de jornalista e crítico cultural independente em várias publicações (Ípsilon, suplemento do jornal PúblicoContemporânea Ler).

António Poppe PALCO PRIMEIRO
António Poppe Vista de Exposição
António Poppe Página de Livro
António Poppe DEEP SEE

António Poppe. Mil Órbitas. Vistas da exposição na ZDB: Galeria Zé dos Bois. Cortesia do artista e Galeria Zé dos Bois. 

Voltar ao topo