19 / 20

Diogo Evangelista: Organic Machinery

Installation View 07.jpg
Cristina Sanchez-Kozyreva

Na exposição individual de Diogo Evangelista, Organic Machinery, o espaço industrial da galeria Francisco Fino encontra-se banhado por uma luz escura e rosada. Cuidadosamente dispostas no centro, seis esculturas compostas por várias combinações de cilindros e tubos de aço inoxidável, Single Breeders (I, II, III, IV, V, VI), 2019, brilham tranquilamente. Ou talvez reluzam solitariamente. É o que sugere o som do canto de acasalamento da ave Kauai O’o, transmitido pela instalação número I.

A agora extinta espécie desta ave canora australiana foi vista pela última vez no Havai em 1987. A gravação do seu canto pode ser encontrada online, no Youtube, servindo de exemplo à triste e aterradora realidade da extinção acelerada das espécies que caracteriza os nossos tempos. É a melodia cantada pelo último macho O’o numa tentativa de atrair uma fêmea que, infelizmente, nunca virá. Por essa razão, na exposição, estas aves ansiosas por acasalar (serão todos machos?) estão condenadas ao celibato e, eventualmente, à extinção. É um pouco rebuscado associarmos as instalações a carne, penas e ossos, mas o convite animista de Evangelista ecoa provavelmente conceitos como a sintetização de diamantes a partir de cinzas humanas. Ou mesmo algo como a ideia de uma transferência da consciência da ave O’o — ou, com mais rigor, o seu canto — para uma sucessão de amplificadores tubulares. Deste modo, as instalações actuam como recipientes de uma presença fantasmagórica, emitindo música como os tubos dispersos de um órgão cósmico. O conjunto oferece uma experiência subtil com tons estranhos e comoventes.

O espaço exala algo de romântico e estranho, caminhando sobre uma linha ténue entre a frieza inanimada, devido às características polidas e estáticas do aço, e o calor que o canto da ave e a atmosfera cor-de-rosa produzem.

Para além das luzes rosadas, Evangelista cobriu a janela de vidro da entrada da galeria com um vinil cor-de-laranja, Redhead Wall, 2019. No plano estético, significa que o poder de observação dos visitantes passa por um filtro interpretativo que faz lembrar o pôr-do-sol. É imposta uma estrutura organizativa que liga as obras, criando um terreno comum total.

Nas paredes laterais, a série de pinturas acrílicas Spiritual Automata, 2019, é composta por desenhos coloridos e geométricos produzidos por uma máquina sobre quadros negros. Supostamente imitando ou tentando fazer passá-los por desenhos a mão livre, fazem lembrar os screensavers dos computadores dos anos 90 com designs fractais, mas pintados e mais minimais. Dão aquela mesma impressão de movimento contínuo que aqueles algoritmos executaram, mas como captura de ecrã. Falta-lhes composição, como se fossem lançados sobre as superfícies pretas sem qualquer cuidado. E, por isso, funcionam menos enquanto desenhos e talvez mais como gravações de algumas vibrações que percorrem o espaço. O texto da exposição menciona “planetas não identificados no Sistema Solar”, pelo que podem muito bem representar as órbitas traçadas por aqueles corpos celestes não identificados. De qualquer modo, em relação com as outras obras, estes desenhos sugerem uma qualidade digital que acompanha a dimensão hipnótica do canto da ave O’o e os seus tubos condutores, conferindo de modo insólito uma humanidade ao espaço graças à sua presença colectiva, e isto apesar das suas formas arbitrárias e computorizadas.

Uma vez atravessados os filtros visuais e sonoros acima descritos, num espaço carregado com pistas que evocam híbridos vivos e digitais, o público chega à última sala da exposição onde Organic Machinery, 2018, um pequeno vídeo projectado numa parede construída para o efeito, define uma narrativa peculiar com viagens ao espaço como pano de fundo. O que parece ser o interior de um quarto de hotel da Nakagin Capsule Tower em Tóquio (edifício de 1972 e um marco arquitectónico composto por unidades cápsula), com uma cama e uma janela circular, ocupa todo o ecrã.

A meio do vídeo, há um zoom sobre um céu espacial, depois pixeliza, e subitamente a voz volta mas abafada, dando a entender que fala directamente para os sonhos do viajante. A reviravolta na história revela que o viajante é, na verdade, um médico que tenta escapar do nosso sistema solar depois de ter criado uma tecnologia que tornou a consciência humana passível de ser inserida num sistema digital, para logo depois ser tomada por uma classe elitista, gananciosa e privilegiada que é referida como “eles”. O médico desejara disponibilizá-la a todos, mas “eles” — uma intriga estranhamente familiar a tantos enredos distópicos sci-fi —  não querem partilhar a nova tecnologia com as massas. A voz, que agora soa muito sintetizada e se refere a si mesma como “nós”, anuncia que a nave será em breve destruída por “eles” e convida o “médico” a abandonar o corpo e carregar a sua consciência antes que tal aconteça, juntando-se assim à resistência.

A história talvez se baseie demasiado na voz computorizada que, felizmente, não é nem robótica nem solene, como acontece frequentemente em vídeos contemporâneos, esgotando até as histórias mais interessantes e tornando-as num verdadeiro enfado. Mas esta é, pelo contrário, alegre e espirituosa, entre uma hospedeira sexy (durante a primeira metade) e uma activista astuciosa (durante a segunda), com uma presença forte como a voz de Scarlett Johannson no filme Her, em que um escritor se apaixona por um sistema operativo. Ainda assim, o guião quase ambicioso, mas na verdade pouco aprofundado, dá-nos mais um ambiente de encarceramento do que um conteúdo elaborado. A partir dele, reflectimos sobre as emoções associadas à exclusão, a uma unidade em desaparecimento, por oposição a algo que faz parte de um organismo maior com um sentido de propósito.

Com esta exposição, apesar de só superficialmente abordar temas como evolução, extinção de espécies, progresso tecnológico e as suas consequências sobre a espécie humana, Evangelista consegue tornar o distópico de certo modo sedutor, quase sensual. Alivia ou consegue mesmo adormecer qualquer potencial ansiedade relacionada com o futuro — e a solidão antecipada que este pode suscitar —, transformando-a num estado de relaxamento e oferecendo, desse modo, uma certa desvinculação da realidade ou das complicações através de uma forma elegante de ficção científica.

Diogo Evangelista

Galeria Francisco Fino

Cristina Sanchez-Kozyreva é uma autora com experiência em relações internacionais e estratégia. Viveu na Ásia durante 15 anos. Actualmente trabalha e vive entre Lisboa e Hong Kong. É co-fundadora e editora-chefe da revista de arte Pipeline, com sede em Hong Kong (impressão 2011-2016). Contribui, regularmente, para várias publicações na Ásia, Europa e EUA, como Artforum, Frieze e Hyperallergic.

 

Traduzido do inglês por Gonçalo Gama Pinto.

 

 

In Diogo Evangelista’s solo show Organic Machinery, Francisco Fino gallery’s industrial space is bathed in a dark rosy-coloured light. Carefully arranged in the centre, six sculptures made of various arrangements of stainless-steel cylinders and tubes, Single Breeders (I, II, III, IV, V, VI), 2019, shine peacefully. Or perhaps they shine in loneliness. This is suggested by the sound of a Kauai O'o bird’s mating song, broadcasted by the installation numbered I.

The now extinct species of the Australasian songbird was last seen in Hawaii in 1987. The recording of its song can be found online, on Youtube, exemplifying the sad and terrifying truth of our current times accelerated extinction of the species. It is the tune sang by the last O'o male in an attempt to attract a female, who, alas, will never come. Consequently, in the exhibition, these eager to breed tube-birds (all male, or are they?) are condemned to celibacy, and eventually, extinction. It is a little of a mind-stretch to identify the installations to flesh, feathers, and bones, but Evangelista’s animistic invitation probably rather echoes concepts such as, let’s say, synthesising diamonds out of human ashes. Or even something like the idea of a transference of the O’o bird’s consciousness — or strictly speaking, his vocals — to a succession of tubular amplifiers.T his way, the installations act as vessels to a ghostly presence, playing music like the scattered pipes of a cosmic organ. The whole offers a subtle experience with uncanny and touching undertones.

The room exudes something romantic and awkward, walking a fine line between inanimate coldness, due to the sleek and motionless characteristics of the steel, and warmth, because of the bird singing and the pink atmosphere.

Besides the rose-coloured lights, Evangelista covered the glass window at the entrance of the gallery with a sunset-orange vinyl, Redhead Wall, 2009. Aesthetically, it means that the audience’s power of observation is channeled through a sunset-like interpretation. It imposes an organisational structure linking the works together, creating a whole common ground. 

On the side walls, the series of acrylic paintings Spiritual Automata, 2019, are colourful machine-generated geometrical line drawings on black boards. Supposedly imitating, or attempting to pass for, free-hand drawings, they are reminiscent of those 90s screensavers computer fractal designs, only painted and more minimal. They do carry that same impression of looped motion those algorithms executed, but as some sorts of screenshots. They lack in composition, as if thrown on the black surfaces without consideration for it. And as such, they act less as drawings and perhaps more as recordings of some vibrations running through space. The cryptic exhibition statement mentions “unidentified planets / in the Solar System” so they may well represent the orbits traced by those celestial unidentified bodies. In any case, as sidekicks, they suggest a digital quality in par with the hypnotic dimension of the O’o’s bird sound and its pipe-carriers, uncharacteristically adding humanity to the room, thanks to their group-like presence, and in spite of their arbitrary and computerised forms.

Once the audience goes through the above mentioned visual and sonic filters, in a space charged with clues evoking digital and living hybrids, it reaches the last room of the exhibition where Organic Machinery, 2018, a short movie projected on a standing wall, sets a peculiar narrative with space travels as its background. What looks like the interior of a hotel room inside Tokyo’s Nakagin Capsule Tower (an 1972 architectural landmark building made from assembled capsule units), with a bed and a porthole, occupies the whole screen.

A smooth female voice asks: “Are you comfortable?”, and then enquires about the temperature of what she refers as the “cryobed”. Although we cannot hear an answer, someone must be replying since the voice makes following-up comments such as “good” and “wonderful”. We soon learn that the protagonist of the story, to whom the voice speaks to, is embarking on a space trip where he or she will be in cryostasis (a sci-fi term referring to a state of sleep while the body is cooled down to sub-zero temperatures) for a month while journeying. Guided by the directions of the female voice, like assembling a puzzle, we understand that the protagonist is going to Gliese 581g (an exoplanet discovered in 2010, but unconfirmed since, that could be habitable similarly to earth), as she “increases the oxygen” and “counts sheeps” to induce the traveler into sleep state.

Mid-video, the screen zooms on a space sky, then pixelates, and suddenly the voice is back but muffled implying she is talking directly into the traveler’s dreams. This twist in the plot reveals that the traveler is actually a doctor who tries to escape our solar system after creating a technology that made the human consciousness uploadable, only to have it taken away by an elitist and greedy privileged class referred to as “they”. The “doc” had wanted it to be available for all but “they”—a storyline strangely familiar to many dystopian sci-fi plots—don’t want to share the new technology with the masses. The voice, now sounding very synthesised and referring to itself as “us” announces that the ship will soon be destroyed by “they” and invites the “doc” to leave their body behind and upload their consciousness before that happens, thus joining the resistance.

The story probably relies too much on the computer voice that is thankfully neither robotic nor solemn, as is often the case in contemporary videos, wearing down even the more interesting stories into serious ennui. But this one is on the contrary playful and witty, like a sexy flight attendant (in the first half) and a mischievous activist (in the second) with a full stage presence like Scarlett Johansson’s voice in the movie Her where a writer falls in love with an operating system. Still, the almost-ambitious, but truly just cursory script feeds more an ambiance of confinement, than an elaborate content. With it, we ponder on emotions linked with being an outcast, a disappearing unit, as opposed to being part of a larger organism with a sense of purpose.

With this show, although only superficially brushing with issues of evolution, extinction of the species, technological advancement and its consequences on the human race, Evangelista manages to render dystopian somehow seductive, almost sensual. He soothes or even numbs any potential anxiety linked with the future—and the anticipated loneliness it could potentially bring—into a state of relaxation, thus offering a certain form of detachment from reality or complications through a polished form of science-fiction.

Installation View 02
Single Breeders 01
Installation View 04
Installation View 05
Installation View 03
Spiritual Automata 04
Spiritual Automata 05
Spiritual Automata 03

Diogo Evangelista. Organic Machinery. Vistas da exposição na Galeria Francisco Fino. Fotografias: ©photodocumenta. Cortesia do artista e Galeria Francisco Fino. 

Voltar ao topo