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Mariana Silva: End User

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Miguel Mesquita

A investigação artística que Mariana Silva tem vindo a desenvolver, projectando-se na esfera antropocénica, explora a circulação e a crise do modelo neoliberal na relação com colectivos, bem como dos sistemas socioeconómicos a que estamos submetidos, estabelecendo meios de interrogar processos autocráticos e, simultaneamente, compreender e percepcionar as estruturas que condicionam a acção humana sejam elas sociais, antropológicas, políticas ou económicas. No entanto, tem-se também focado na história dos museus, na definição e constituição de públicos enquanto regimes colectivos e consequentemente na definição do espaço da obra de arte enquanto objecto especulativo dentro de um quadro institucional que é, inevitavelmente, também social.

Este questionamento dos mecanismos que enquadram os limites históricos entre as qualidades de objecto e de indivíduo decorre da pesquisa que desenvolve com o projecto Friends of Interpretable Objects, iniciado em 2013 e do qual faz parte a apresentação da artista no Prémio EDP Novos Artistas (2015), na qual Silva propõe uma análise sobre o museu moderno, definido por três objectos — o espécime do museu de história natural, o artefacto antropológico e a obra de arte — que são activados através de processos de interpretação e reenquadramento permitidos pelos seus contextos museológicos.

A exposição que Mariana Silva apresenta na galeria Francisco Fino é em simultâneo uma síntese das questões que constituem a sua linha de investigação e a continuação de um raciocínio sobre as noções de percepção colectiva e individual, e sobre os sistemas binários que governam a forma como olhamos para uma obra de arte e que validam a sua existência em conformidade com um plano historiográfico ou correlacional. Tomando como ponto de partida uma revisitação à exposição Environments, realizada em 2013 em co-autoria com Pedro Neves Marques no espaço e-flux em Nova Iorque, que explorava uma miríade de assuntos — o consumo de recursos naturais, a constituição de um ‘público’, a imparcialidade das imagens de imprensa e a interferência dos governos e outras organizações nacionais e supranacionais no quotidiano —, End User retoma inevitavelmente alguns dos temas da exposição, quer por pertencerem à génese deste projecto quer por constituírem a teia de referências que ocupam o discurso de Mariana Silva. Estes temas, contudo, são subordinados a um discurso expositivo no qual medium, espectador e espaço estão sincronizados e que estabelece as condições da Arte Conceptual como transformadoras dos modelos de informação que condicionam os formatos de criação, fruição e consumo.

Explorando as limitações entre medium e display, a exposição remete para a condição formal da Arte na sua (des)materialização e para a alteração dos meios de circulação na era da informação digital.

Ao entrar na galeria, ainda antes de chegar às salas de exposição, dois “muros” de caixas de cartão branco empilhadas configuram uma antecâmara; um artifício semelhante foi recentemente utilizado em Olho zoomórfico / Camera Trap, a exposição que realizou no Museu Calouste Gulbenkian, no qual uma cortina de lâminas largas em tom alaranjado dividia o espaço. Apesar da intenção clara de gerar e controlar o espaço através da sua arquitectura, em ambos os casos existe também um carácter de funcionalidade expositiva que gera ambiguidade na definição destes elementos. No entanto, no caso do dispositivo utilizado no Museu Gulbenkian, cuja funcionalidade expositiva era acentuada por actuar como um filtro de luz que operava com a alcatifa amarela para criar um ambiente específico num dos segmentos da sala, a artista incentiva a leitura deste objecto como uma “barreira escultórica” não só por incluir imagens de arquivo e imagens computorizadas, de pássaros e insectos, mas também por lhe atribuir um título, Media Insecto (Flocks, Herds and Schools). Por sua vez, no caso das caixas existe um claro descompromisso na definição fenomenológica. Sem imagens ou texto impresso, e com uma disposição que parece não ter outro objectivo que não de características arquitectónicas, estes muros de caixas parecem não ter propósito para além de servirem de plano de suporte para a série de obras Model no 1, 2, 3, 4 e 5; obras que, por si só, existem apenas no universo digital e que, por essa razão não necessitam de um suporte físico.

A presença das caixas, que inicialmente poderá parecer de menor importância, torna-se deste modo um elemento importante para a leitura da exposição. A sua utilização como elemento / suporte expositivo é ainda intensificado na apresentação de Explore, Experience, Enjoy (2013), que se encontra no centro da primeira sala, projectado sobre uma parede de caixas empilhadas. Obra fundamental de Environments, a dupla projecção é uma exposição virtual que se apropria da planta de Information, a exposição de Arte conceptual comissariada por Kynaston McShine no MOMA em 1979, e na qual Silva combina objectos reais e imaginados, tais como posters de campanha para o Rendimento Universal Básico (UBI); uma vitrina com três colarinhos de camisa, de cor azul, rosa e branco; e uma caixa de donativos da Tate Modern na qual se lê as indicações explore, experiencie e desfrute. Se, por um lado, esta exposição dentro da exposição apresenta uma critica às organizações artísticas por perpetuarem o estatuto da arte dentro da economia neoliberal, por outro representa a efemeridade das exposições e dos seus conteúdos à medida que explora, simultaneamente, as relações entre objectos, espectador e as estruturas museológicas que facilitam e gerem o encontro entre os dois. É nesta lógica de conteúdos de especulação que se questiona a noção de materialidade, reforçada por tomar de empréstimo o contexto de uma exposição de Arte Conceptual fazendo incidir a questão do digital e da informação como processos de construção de uma realidade e, simultaneamente, na sua relação com ambientes físicos.

Outros elementos da exposição virtual são fundamentais para decifrar a relação da exposição com métodos de transmissão e produção imateriais como é o caso de Dial-a-poem (1968), da autoria do colectivo Giorno Poetry Systems, presente na exposição do MOMA e que é aqui mantida em versão desactivada. A obra consistia num conjunto de telefones onde se podia ouvir declamações de um conjunto de poemas que alterava diariamente e que podiam também ser acedidos marcando um determinado número. A manutenção destes telefones, em formato desactivado, marca o desaparecimento de informação como consequência da evolução tecnológica e a desactualização dos sistemas de transmissão.

Esta referência pode apenas ser compreendida chegando à última sala, onde as caixas voltam a aparecer, agora planificadas e amontoadas. Nestas caixas estão impressas as plantas com as descrições das peças de Information e também da exposição virtual; cada caixa destinada a acolher os múltiplos dos modelos digitais que encontrámos na antecâmara inicial. Estes modelos são objectos que existem na exposição virtual e que são transportados para o espaço físico por uma necessidade consumista, do objecto fetiche, convertendo-se assim numa espécie de artefacto. Ao mesmo tempo, a existência destas caixas, agora identificadas e com uma utilidade prática, refere a questão da mobilidade da informação. Esta questão é acentuada pelo contexto da segunda sala, onde se encontra um conjunto de mobiliário de exposição insuflável em referência ao mobiliário insuflável do designer Quasar Khanh. Não sendo uma exposição, por si, o formato é sugerido pela organização dos elementos no espaço em conjugação com as os painéis impressos onde placas de textos sugerem tabelas de museu.

Ainda na exposição virtual, numa prateleira encontra-se exposta a primeira arma fabricada através de uma impressora 3D; a informação digital converte-se em objecto físico e funcional, disponível para acesso comum, talvez até para o uso quotidiano. Tecnologicamente acomodam-se todas as necessidades do ser humano, respondendo indiscriminadamente à lei da procura. Numa época em que a velocidade e a quantidade de troca de informação já não conseguem ser compreendidas pelo ser humano, o que representa a informação e de que forma está sujeita a especulações sobre as categorias que a definem? Ao propor a posição de um “utilizador final” em oposição ao conceito tech de “experiência do utilizador” (user experience), End User incita a um perfilamento hipotético dos destinatários destes objectos e dos sistemas institucionais que os legitimam e que promovem a sua circulação.

Mariana Silva

Galeria Francisco Fino

Miguel Mesquita. Licenciado e Mestre em Arquitectura pelo Departamento de Arquitectura da FCT da Universidade de Coimbra e Mestre em Estudos Curatoriais pelo Colégio das Artes da Universidade de Coimbra. Em 2013 integrou o Centro de Estudos Sociais como Jovem Investigador em projectos interdisciplinares com foco nas áreas de arquitectura, sociologia e arte. Entre 2014 e 2015 estagiou no Museu de Arte Contemporânea da Fundação de Serralves. Foi Director Artístico da galeria BAGINSKI,  entre 2015 e 2018. 

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Mariana Silva. End User. Vistas da exposição Galeria Francisco Fino. Fotos: ©photodocumenta. Cortesia da artista e Galeria Francisco Fino. 

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