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Na partida de Agnès Varda: cinema, política, humanismo

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Isabel Nogueira

Agnès Varda (1928-2019) deixou-nos recentemente. Iniciou a sua carreira como fotógrafa, mas rapidamente enveredaria também pelo cinema. Professora, feminista, humanista, cidadã politicamente comprometida, Varda incorporou o pioneirismo do cinema moderno. O seu primeiro filme, La Pointe Courte (1955), foi realizado quando era ainda muito jovem e imediatamente antes da emergência do implicativo movimento francês da nouvelle vague, do qual também fez parte activa. Restituía-se um cinema de autor no contexto de um clima contestatário e reivindicativo, que culminaria, nomeadamente, no Maio de 68. Por outro lado, o cinema reinventa-se artística e conceptualmente sob o pano de fundo das novas vagas vanguardistas e experimentais de meados do século XX. Como cineasta, fez numerosos filmes, entre ficção, documentário e curtas-metragens. Em 2017, recebeu um “Óscar” honorário pelo conjunto da sua obra. Foi a primeira mulher a receber este prémio.

Varda fez parte do movimento dos cineastas de esquerda — Groupe Rive Gauche, ou apenas La Rive Gauche  —, no final dos anos 50, com Chris Marker, Alain Resnais ou Armand Gatti, com fortes ligações ao movimento literário do nouveau roman, nomeadamente, a Marguerite Duras e Alain Robbe-Grillet. Todos aqueles cineastas revelavam um forte interesse pelo filme experimental assim como uma assumida identificação com a esquerda política. Os filmes de Varda mais importantes dentro do movimento foram, por exemplo, a curta-metragem L'Opéra-Mouffe (1958), as longas-metragens Cléo de 5 à 7 (1962), Le Bonheur (1965), ou Les Créatures (1966). Em 1967, contribuiu para o filme colectivo Loin du Vietnam, um protesto contra a Guerra do Vietname, realizado com Chris Marker, Jean-Luc Godard, Alain Resnais, Claude Lelouch, William Klein, Michele Ray e Joris Ivens. O trabalho inclui filmagens da guerra de ambos os lados do conflito, assim como imagens de protestos que tiveram lugar em Nova Iorque e em Paris.

Interessaram a Varda as pessoas, a política, a vida em sociedade, os mecanismos de poder e de liberdade, o encontro com o Outro. No seu trabalho há um protagonismo das mulheres, ao mesmo tempo que revela uma visão singular, feminina, mas que acaba por ser efectivamente feminista — embora nunca tenha claramente subscrito o movimento — ao ombrear com os seus pares — os realizadores homens —, mantendo a sua voz singular, complexa, sensível e verdadeiramente solidária com as mulheres, com os seus universos, as suas inquietações, as suas fragilidades e os seus desafios. E isto afigura-se revelador de uma capacidade de problematização notável e inequívoca do mundo. Em 1971, foi uma das 343 mulheres que assinaram o manifesto no qual admitiam ter feito um aborto, na época ilegal em França. Em 1975, apresentava a curta-metragem Réponse de femmes: notre corps, notre sexe, no qual várias mulheres são convidadas a falar de sexo, desejo, maternidade, etc. Anos mais tarde, em Maio de 2009, seria, merecidamente, uma das artistas presentes na importante exposição Elles@centrepompidou, uma mostra que reuniu as artistas mulheres da colecção, mas conferindo-lhe um enfoque crítico, denso e problematizante. Como se pode ler no respectivo catálogo: "La transformation de la condition des femmes s’impose comme un des faits économiques, sociaux et culturels majeurs du XXe siècle. Quelle est la traduction de cette mutation de nos sociétés dans l’histoire de l’art ? Quelle part les artistes femmes ont-elles pris à cette révolution?".

No que à sua vida privada diz respeito, Agnès Varda teve uma longa e conhecida relação amorosa com o realizador Jacques Demy, até à morte deste, em 1990. No ano seguinte, o filme Jacquot de Nantes seria uma bela homenagem a Demy. O documentário é um aspecto efectivamente notável da sua obra. Em 2000, filmava Les glaneurs et la glaneuse, um filme que testemunhou a vida das pessoas que vão aproveitando os alimentos que os outros deixam para trás, num evidente humanismo, ao mesmo tempo político e social. Em 2017, com o artista JR, filma Visages Villages, um divertido e poético trabalho, no qual a dupla viaja pela França, num reconhecimento de lugares, pessoas, memórias, modos de vida. Este é também um documentário de afectos e de uma profunda humanidade, como, aliás, todo o seu trabalho dela respira. JR — alto — brinca constantemente com a baixa estatura de Varda. Percebe-se a disponibilidade e a frescura da cineasta na sua ligação ao novo, ao divertido, ao humano. O seu último trabalho é um documentário, no qual faz uma retrospectiva da sua própria forma de ver e de fazer filmes, assim como alude ao seu próprio processo de envelhecimento. A mulher e a cineasta, ou a mulher que olha para a cineasta. O título é evocativo: Varda par Agnès. E assim se despediu. E nós dela.

Agnès Varda

Isabel Nogueira (n. 1974). Historiadora de arte contemporânea, professora universitária e ensaísta. Doutorada em Belas-Artes/Ciências da Arte (Universidade de Lisboa) e pós-doutorada em História da Arte Contemporânea e Teoria da Imagem (Universidade de Coimbra e Université Paris 1 Panthéon-Sorbonne). Livros mais recentes: "Teoria da arte no século XX: modernismo, vanguarda, neovanguarda, pós-modernismo” (Imprensa da Universidade de Coimbra, 2012; 2.ª ed. 2014); "Artes plásticas e crítica em Portugal nos anos 70 e 80: vanguarda e pós-modernismo" (Imprensa da Universidade de Coimbra, 2013; 2.ª ed. 2015); "Théorie de l’art au XXe siècle" (Éditions L’Harmattan, 2013); "Modernidade avulso: escritos sobre arte” (Edições a Ronda da Noite, 2014). É membro da AICA (Associação Internacional de Críticos de Arte).

 

Imagem: still do filme La Pointe Courte (1955).

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