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Lisbon roundup #8

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Isabel Nogueira

 

O ano inicia com as expectativas do costume. Desejamos sempre que se cumpra o que entendemos ser devido. Janeiro é o mês mais longo. Pelo menos, a sensação é a de que demora mais do que os outros a chegar ao fim. Nesta temporalidade subjectiva muitas exposições vêm acontecendo. Destacamos algumas.

 

 

Roundup #8

Lisboa: vários locais

 

 

 

Ana Vidigal, Ana Beatriz (2023). Fotografia: João Neves. Cortesia Balcony Gallery.

 

 

Ana Vidigal: Ana Beatriz

@ Balcony Gallery

 

Ana Vidigal [n. 1960] é Ana Beatriz, fazendo do título da exposição o par de nomes com que sua Mãe a chamava em situações potencialmente delicadas. Aliás, estamos crentes de que a colocação de dois nomes próprios às crianças tem este objectivo. Fica sempre estranho chamar o filho ou a filha pelo primeiro e último nome, como se estivéssemos numa repartição pública.

E, de facto, esta exposição é de um enorme intimismo. O ponto de partida foi possivelmente difícil: o desmontar da casa dos pais. Desmontar a casa dos pais é desmontar a nossa história, as nossas referências, os nossos afectos. O sofá ficou vazio com a cova no lugar principal. Ninguém voltará a estar aí à nossa espera depois de uma viagem. Este processo demorou dois anos e a exposição reune as peças que Vidigal produziu a partir deste contexto específico e possivelmente intenso.

Os objectos são sobretudo assemblages e esculturas a partir de peças oriundas da casa, muitas delas ligadas ao universo juvenil, quer dizer, aos próprios filhos que agora desmontam a habitação: os bonequinhos coloridos dos gelados “Raja” colocados sobre os remos em suspensão [A Ana o Nuno e o meu filho Egas] — uma das melhores peças do conjunto, de notar que um remo possui todos os bonequinhos que pode comportar e o outro uma bonequinha só —, os sticks de hóquei e o monograma ao centro [Livramento], os efeitos de desenhos de muros sobre lençol nas paredes da galeria com
pormenores dentro [O que pode ser mostrado não pode ser dito; Não se recordam os dias, recordam-se os instantes; Óleo de fígado de bacalhau] numa espécie de mise-en-abyme, assim como a instalação das cabaças onde, afinal, os nossos olhos encontram outros, aparentemente recortados de revistas de BD [Ao vencedor as batatas], o barco de borracha [Naufrágio, Ponta da Piedade] ou ainda um prato que possui uma imagem antiga representando uma menina e duas marionetas [A [m]ana].

Mas encontramos aqui sobretudo o reconhecimento dos objectos do quotidiano com os vários pormenores que os compõem, fomentando diversas camadas de leitura, inclusivamente poética e vivencial, numa proposta espacialmente bem conseguida e que respira.

Esta exposição faz adivinhar um conjunto de afectos, um arquivo de memória selectiva e intimista, agora tornada objecto de arte partilhado com o espectador. Nesta partilha, e sobretudo numa perspectiva geracional, embora não só, acontece aquele momento de reconhecimento também por parte do visitante de uma memória própria. Quem nunca coleccionou bonequinhos dos gelados, detergentes ou outros produtos análogos [hoje talvez mais visíveis em hamburgueres e ovos de chocolate]? Quem nunca teve um barco de borracha ou um desporto favorito? Quem nunca coleccionou postais, fotografias, selos e objectos similares? Quem nunca tomou óleo de fígado de bacalhau ou outro fortificante igualmente horrível? Da casa dos pais, um lugar íntimo, para a um espaço de fruição pública, tudo volta ao começo neste potencial reconhecimento e apropriação de referências por quem observa.

E também neste aspecto podemos, talvez, fechar um círculo.

 

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Ana Vidigal, Ana Beatriz (2023). Fotografia: João Neves. Cortesia Balcony Gallery.

 

 

 

Daniel Blaufuks, Panorama (2023). Fotografia: Bruno Lopes. Cortesia Galeria Vera Cortês.

 

 

Daniel Blaufuks: Panorama

@ Galeria Vera Cortês

 

 

O olhar do espectador é colocado no centro do espaço, com a possibilidade de ver um panorama — título da exposição — em toda a sua potencialidade e expansão, particularmente aguçada com a disposição das fotografias como se de fotogramas se tratasse. A primeira sensação é a de um diário, pontuado por momentos visuais, alguns objectos — uns inusitados, outros eventualmente curiosos —, animais nocturnos. A única presença humana acontece na mão que parece segurar um navio no horizonte — este mostrado num duplo evocativo de negativo/positivo — ou um lingote de ouro. Ou ainda as mãos que exibem as palmas para o visitante. O enquadramento é fechado, de
modo a que os objectos possuam um lugar de expressão e de intimidade.


As imagens comportam o rigor visual a que Daniel Blaufuks [n. 1963] nos vem habituando. A iluminação é irrepreensível, convocando muitas vezes uma pintura classicista depurada. A fotografia do limão que se começa a decompor é das melhores do conjunto e com a luz que bate o copo de água torna-se num exemplar perfeito de uma natureza-morta dos séculos XVI e XVII.


Ou ainda a bela imagem dos cubos de gelo a liquidificar. Em ambos o tempo mostra-se a acontecer. A natureza-morta constitui, como se sabe, e a par do retrato e da paisagem, um dos géneros tradicionais de representação e muitas vezes surge no percurso do artista. Aqui emerge de novo. O animal morto ou um par de olhos de vidro potenciam uma narrativa, ou ainda a beleza frágil de uma flor e o olhar desperto de um mocho na noite. E neste ponto entramos noutro aspecto desta exposição.


Estamos objectivamente perante imagens fixas, contudo, e não apenas pelo modo como se encontram dispostas mas também por uma subjectividade de enquadramento e de conteúdo, fica a dúvida se este panorama constitui uma narrativa não imediatamente descodificada pelo espectador, sempre desconfiado da simplicidade. Tem que haver mais. Quer dizer, não acreditamos no que nos é realmente mostrado. Hans Belting, que recentemente nos deixou, no texto com o título em si também sugestivo A verdadeira imagem [Das echte Bild. Bildfragen als Glaubensfragen, 2005] reporta-se à complexidade da imagem, nomeadamente, admitindo que a imagem seria uma contradição em si mesma, porque estaria na vez de algo que teríamos por real. Belting acaba por definir a imagem como uma espécie de dissimulação que causa fascínio.

Seria, por conseguinte e na óptica de Belting, nesta dissimulação que continuaria a
assentar a sua magia.


Mas, perguntamos nós, e se nesta caso, e não obstante estarmos não perante objectos ou paisagens reais mas perante imagens, claro, desconfiarmos, além de tudo, desta simplicidade desarmante? Conseguimos aguentar a não narrativa, a não efabulação? E entendemos aqui residir o ponto fulclal desta mostra: a simplicidade captada numa dimensão que a torna surpreendente e capaz de extrapolar uma escala mais tradicional.

O panorama é, afinal e também, o que se faz com ele.

 

Daniel Blaufuks_PANORAMA_2023 © Bruno Lopes
10_Daniel Blaufuks_Panorama_vista exposição © Bruno Lopes
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Daniel Blaufuks, Panorama (2023). Fotografia: Bruno Lopes. Cortesia Galeria Vera Cortês.

 

 

 

Marco Franco, Obiustromos (2023). Fotografia: Bruno Lopes. Cortesia Bruno Múrias.

 

 

Marco Franco: Obiustromos 

@ Galeria Bruno Múrias

 

Entramos no espaço branco da galeria e a primeira impressão é a de curiosidade e de alguma perplexidade perante os objectos de poliuretano rosado, colocados sobre plintos como se fossem seres antropomórficos. Talvez o sejam, de facto. Marco Franco [n. 1972] denominou-os de Obiustromos, uma palavra que não existe nos dicionários. E aqui assumimos que acabámos de entrar na particularidade de um universo em que as regras são muito próprias, inclusivamente as regras lexicais.

As placas de poliuretano são iguais entre si e de formato quadrado — e recordemos a evocação de perfeição inerente ao quadrado, ideia herdada, nomeadamente, de Pitágoras, embora pudéssemos convocar a própria religião cristã na representação dos quatro Evangelistas, por exemplo —, moldadas manualmente pelo artista. Assim, partindo-se de um material industrial, ele próprio retoma à singularidade da mão que faz, molda, mexe, modifica, inventa, cria. Esta modelagem afigura-se definidora do carácter único e irrepetível de cada peça, tornando-a num acontecimento fixado no tempo e no espaço. As formas são, como já se referiu, variadas e, de algum modo, incorporadoras de uma certa estranheza, que usualmente sucede quando não conseguimos localizar ou definir determinada realidade ou elemento. O que é, por conseguinte, interessante e desafiador em si.

Esta singularidade reporta-nos à própria experiência estética, enquanto relação intencional do sujeito com a obra de arte, directamente relacionada com determinados factores, tais como a temporalidade, por exemplo. Amanhã, voltando a ver estas peças, teríamos impressões completamente diferentes? Eventualmente. Mas inerente à experiência estética encontra-se empre um prazer desinteressado em fruir, de algum modo, o belo no seu sentido platónico e classicista. Esta experiência inicia-se sempre por uma atenção expectante — recordamos o momento de entrada na galeria — a que se segue a própria consciência estética. Neste percurso podemos incorrer na realidade heterocósmica da obra de arte, capaz de nos remeter para outras sensações e referências. Na verdade, a arte abstracta incorpora a imaginação total ao afastar-se da concretude do reconhecível, abrindo uma possibilidade ontológica única. Neste sentido, entendemos que é este estado de devir que se encontra subjacente aos trabalhos de Marco Franco, permitindo-lhe, por conseguinte, serem o que o espectador desejar que eles sejam, dentro dos limites da materialidade que propõem, claro. E neste ponto incorporamos também as elegantes fitas escultóricas que se dispõem pelas paredes da galeria, como desenhos tridimensionais.

Obiustromos é uma exposição de difícil definição, mas certamente localizada na linha de um conceptualismo vibrante que abre para múltiplas dimensões e texturas visuais e espaciais. O espectador é convidado a flutuar por esta tridimensionalidade surpreendente, com cadência visual e perceptiva.

No final, continuamos a poder efabular a respeito daqueles seres geometrizantes, sem ter exactamente um ponto de chegada ou uma conclusão. O que é libertador e de final sempre aberto. Como a arte pode ser.

 

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Marco Franco, Obiustromos (2023). Fotografia: Bruno Lopes. Cortesia Bruno Múrias.

 

 


 

 

Isabel Nogueira [n. 1974]. Historiadora de arte contemporânea, professora universitária e ensaísta. Doutorada em Belas-Artes/Ciências da Arte [Universidade de Lisboa] e pós-doutorada em História da Arte Contemporânea e Teoria da Imagem [Universidade de Coimbra e Université Paris 1 Panthéon-Sorbonne]. Livros mais recentes: "Teoria da arte no século XX: modernismo, vanguarda, neovanguarda, pós-modernismo” [Imprensa da Universidade de Coimbra, 2012; 2.ª ed. 2014]; "Artes plásticas e crítica em Portugal nos anos 70 e 80: vanguarda e pós-modernismo" [Imprensa da Universidade de Coimbra, 2013; 2.ª ed. 2015]; "Théorie de l’art au XXe siècle" [Éditions L’Harmattan, 2013]; "Modernidade avulso: escritos sobre arte” [Edições a Ronda da Noite, 2014]. É membro da AICA [Associação Internacional de Críticos de Arte].

 

A autora escreve de acordo com a antiga ortografia. 

 

 

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