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Gustavo Sumpta: Vim para enterrar César

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André Silveira

 

Numa primeira aproximação a Vim para enterrar César, de Gustavo Sumpta (1970), prevalece uma ideia de silêncio e contenção, pelo conjunto relativamente reduzido de peças que a compõem e a limitada ocupação dos espaços. Mesmo o volume e o peso de Amo todos por igual, uma mesa de autópsia, em mármore, de 1895, disposta na última sala do Círculo Sereia do Círculo de Artes Plásticas de Coimbra (CAPC), são esbatidos por uma iluminação de baixa intensidade e pela opção de colocação da peça na diagonal, o que impede que esta possa expandir-se noutra leituras, como a sacralização própria de um altar. Essa atenção particular ao controlo da iluminação do espaço expositivo e à sua articulação com a disposição das peças, tanto em planta como em altura, sensível igualmente no arranjo de Denominação de Origem Controlada D.O.C. que ocupa o edifício sede do CAPC, é uma das faces do rigor e exatidão que Delfim Sardo refere, desde logo, na folha de sala como “características essenciais do trabalho de Gustavo Sumpta”. 

É esse controlo ou precisão, que implica obviamente um domínio sobre a relação entre o espectador e as obras, que permite aquela contenção no pontuar dos espaços expositivos sem que estes cedam ao vazio. E, simultaneamente e por oposição, no que talvez seja ainda mais relevante neste caso, sem que estes se encontrem sobrecarregados, contribuindo assim para uma transferência de sentidos entre os diversos momentos da exposição. Vim para enterrar César divide-se por dois espaços. Nas três salas do Círculo Sereia são apresentadas cinco peças. Na primeira, encontra-se Os Sete Magníficos, composta por sete baionetas de bronze dispostas na parede, colocadas sensivelmente à altura entre os ombros e a cabeça, montadas como espingardas empunhadas. Na segunda sala, duas peças também em bronze, marcam uma diagonal entre si, En passant — captura na passagem e Zugzwang — movimento obrigatório. Uma, igualmente elevada, é moldada a partir de um suporte de pé de uso militar encontrado no Mosteiro de Santa Clara-a-Nova, na sala onde Gustavo Sumpta expôs em 2017 na Bienal Anozero. A outra, em forma de anzol, pende do tecto, baixando a uma altura próxima do suporte de pé, sem, contudo, se sobrepor visualmente a este. Por fim, na última sala, desenhando similarmente uma diagonal entre si, Cópia do original e Amo todos por igual. Respetivamente: uma baioneta de 1895, em ferro, também elevada, modelo a partir do qual foram compostas as de Os Sete Magníficos, ela própria uma réplica de uma baioneta inglesa do exército de Wellington utilizada em Portugal aquando das invasões francesas; e a mesa de autópsia já referida, que terá sido utilizada em contexto militar. Por fim, como foi entretanto aludido, no Círculo Sede encontra-se Denominação de origem controlada D.O.C., que retoma a performance que Sumpta realizou em 2021, na Bienal BOCA. Trata-se de um conjunto de fitas de cassete VHS amarradas a uma argola de bronze que se encontra suspensa numa das salas do piso superior do edifício. As fitas estendem-se depois por um corredor de onde pendem até ao piso subterrâneo através do vão das escadas. Enquadrada na argola de bronze pode ver-se ainda uma tesoura de alfaiate.

Esta descrição sumária serve aqui como base de orientação para encontrar o menor denominador comum que una esses momentos, a que Sumpta se refere amiúde ao abordar o método de composição em tempo real de João Fiadeiro, mantendo ainda em vista o duplo movimento, que o próprio cita, o de a partir do presente “olhar em frente na direcção do passado e olhar para trás na direcção do futuro”.  É certo que a ideia de morte sobrevoa toda a exposição, o que sucede desde logo pela sugestão do título ainda antes do confronto com as obras. É da Tragédia de Júlio César de William Shakespeare que Sumpta recupera a frase que dá o título à exposição, inscrita na fase inicial do discurso de Marco António ao povo de Roma após o assassinato de César. Não se trata tanto de uma alocução sobre a morte, quanto de uma mobilização retórica dessas circunstâncias com o propósito de manipular a reacção dos romanos ao assassinato. Ao terminar o discurso, Marco António coloca os golpistas perante uma de duas opções: abandonar o território ou enfrentar a turba. Em xadrez, este lance forçado, que implica ceder no imediato o jogo ou continuá-lo até a um xeque-mate já previsível — em certo sentido, à morte —, chama-se precisamente Zugzwang.

Esta noção de lance forçado está igualmente presente na narrativa para que remete Os Sete Magníficos. A que acrescem as ideias de que também os homens maus podem ter acções honrosas ou que o quotidiano do homem comum pode ser marcado por acções heroicas — como aponta Delfim Sardo ao referir a música The Magnificent Seven da banda punk britânica The Clash: “um hino working class hero, sobre a luta diária”. Tudo isto atravessa o western de 1960 com o mesmo título, dirigido por John Sturges, como Os Sete Samurais de Akira Kurosawa, de 1954, de que o primeiro é um remake. A que sucedeu mais recentemente, em 2016, uma nova versão. Unindo todas estas referências, mantendo aquele duplo movimento em vista, também Kurowasa lançou um olhar a Shakespeare, ao cinema norte-americano e ao western.  Ora, como já se mencionou, a peça de Gustavo Sumpta é composta por réplicas em bronze de Cópia do original, mostrada na última sala do Círculo Sereia. É indicado no texto de Sardo que as baionetas de Os Sete Magníficos são uma representação de Cópia do original, cuja reprodução em bronze remete inclusivamente para uma tradição da escultura passível de fazer-se recuar à Antiguidade — o que aliás é extensível à pedra de mármore da mesa de autópsia. Esta distinção entre cópia e original, entre produto único ou industrial, entre representação e apresentação, eventualmente a sua negação, é ainda adensada pela nota no mesmo texto acerca de um possível entendimento dos objectos expostos na última sala enquanto readymade. Mas esse gesto de emulação entre Cópia do original e Os Sete Magníficos, implicado nas próprias peças individualmente, pode igualmente fazer emergir uma ideia de recursividade histórica que os vários tempos a que aludem as obras de Vim para enterrar César parecem confirmar. 

Independentemente da especificidade de cada momento histórico, tanto a segunda metade do séc. I a.C. romano, como o séc. XVI japonês, ou ainda o séc. XIX, com a colonização interna americana, a Guerra da Secessão e as guerras peninsulares, correspondem a cronologias marcadas por graves tensões internas, levando a guerras civis ou episódios de conflito em larga escala. Eventos sempre dependentes da capacidade de mobilizar largos segmentos da população, seja para participação no esforço de guerra — económico, industrial, etc. — ou pela presença concreta na frente de batalha. Neste último sentido, não só a guerra é sobretudo uma questão técnica, implicando uma repetição que leve ao rigor de gestos e movimentos de grupo, de disciplina na coordenação de tempos entre acção e reacção, como é também esse controlo de tempos que permite a Marco António moldar a resposta dos seus concidadãos romanos enquanto multidão— ou a Gustavo Sumpta pautar os diversos momentos da exposição. Mas este não é ainda porventura o menor denominador comum. Esse, convocando agora o edifício sede do CAPC, talvez se encontre no modo como o apagamento da memória consente aquela recursividade ao mesmo tempo que fixa ou cristaliza modelos de pensamento, acção e resposta.

 

Gustavo Sumpta

CAPC [Círculo de Artes Plásticas de Coimbra]

 

André Silveira é licenciado em História da Arte, pós-graduado em História da Arte Contemporânea e doutorado em História da Arte - Teoria da Arte pela FCSH/NOVA. É investigador colaborador do GI ArtTHC do IHA - FCSH/NOVA e investigador do GI Estudos de Arquitectura do CEAA - ESAP.

Trabalhou com a revista L+Arte e, entre outras instituições, com a FLUC, a Escola de Artes - UCP, as fundações Santander, Serralves, Calouste Gulbenkian ou Culturgest.

 

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.

 

                               


Gustavo Sumpta: Vim para enterrar César. Vistas da exposição CAPC. Coimbra. Fotos: Jorge das Neves. Cortesia do artista e CAPC.

Nota: a penumbra das imagens é coincidente com a baixa luminosidade que a exposição assume.

 

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