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Gonçalo Pena: Água de Colónia

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José Marmeleira

 

Numa entrevista, que realizámos há dois anos, com Gonçalo Pena, o artista comentava o que pretendia para a sua produção pictórica: “No presente momento queria ver a pintura de facto como uma extensão pesada da produção de desenho. Não será fácil, porém, mobilizar na escala da pintura a mesma amplitude de recursos e materiais que o desenho convoca. Mas não é impossível”. Ora, diante das vinte pinturas de Água de Colónia, a sua primeira exposição individual na Galeria Cristina Guerra, com curadoria de João Maria Gusmão, podemos afirmar que o artista avançou nesse propósito, ainda que sem qualquer intenção programática ou demonstrativa. Dito de outro modo, entre o desenho e a pintura persistem relações tanto quanto diferenças; a segunda não é meramente uma extensão concreta e ampliada do primeiro. Tal esclarecimento não impede, claro está, a coexistência de ambas e a presença de afinidades. Em termos espaciais, tal proposição surge, desde logo, visível. Trata-se de uma exposição de pintura que inclui desenhos, desenhos esses que encontramos no piso subtérreo da galeria. Desenhos sobre papel ou, antes, em papéis previamente seleccionados por João Maria Gusmão, artista, aqui na condição pública de curador. 

Fiquemos, por ora, no desenho. Na mesma entrevista, Gonçalo Pena referia-se ao desenho enquanto práxis, estando mais próximo de um agir e menos de um fazer ou de uma fabricação (ideias mais adequadas à pintura). O desenho seria, portanto, mais espontâneo, quase imanente ao gesto, à mão, mas também à razão do pensamento. Instinto e inteligência seriam convocados em simultâneo, para provocaram a estupefação e, amiúde, o riso no espectador. Com efeito, os desenhos de Gonçalo Pena — ou, pelo menos, os desenhos de Água de Colónia — continuam a trazer para a arte portuguesa contemporânea o espigão do humor. Não será entre nós, afiance-se, um facto muito comum, sobretudo por meio de um desenho que, embora sem abandonar o seu impassível rigor, dialoga (em surdina) com o desenho humorístico, bordejando, por vezes, a caricatura. E, todavia, será um exercício pueril tentar identificar os temas ou assuntos dos desenhos de Gonçalo Pena, mesmo quando o artista também joga com o sentido das palavras (a escrita, na forma de trocadilhos e outros jogos, é outro elemento no seu desenho) ou expressões familiares e corriqueiras do actual quotidiano.

Os temas se aparecem, dançam subtis e silenciosos entre os desenhos frios e finos do artista que, por sua vez, é alguém que duvida da compreensão das coisas. Não se trata de blague ou sátira. Tal pose — de recorte modernista — não é de Gonçalo Pena, como também não é o do pastiche cínico dos pós-modernos. O seu ânimo está mais próximo de um espanto lúdico e lúcido que se abandona ao desenho com a revolta sensível do adulto. Sensível e, acrescente-se, erudita. Porque não há apenas humor, conquanto este raramente desaparece: vejam-se as alusões aos pintores do modernismo por via de uma geometria de miniatura ou a citação transfiguradora de Georges Seurat, artista em cuja pintura André Breton já colocara a hipótese do cómico. Verte-se, no e pelo desenho, um olhar que, rabelaisiano e enciclopédico, explode, devagar, em fragmentos, alusões, repetições e — fazendo ecoar um certo espírito Dada — simetrias e ritmos. Por tudo se interessa Gonçalo Pena ou, reformulando, a (quase) tudo o seu desenho responde ou reage com um sorriso que se advinha (talvez sem o ser) mefistofélico.

A haver um virtuosismo nos traços deste desenho, ele é ágil, mas a fim de uma condensação leve e graciosa — quase performativa — das formas e das figuras. Estas nada têm que ver com esquissos, coisas preparatórias do grande fazer pictórico que ocupará o espaço. Também não pretendem representar nada ou afirmar uma ideia ou tese: quanto muito sugerem-nas obliquamente, encimadas por reticências ou pontos tímidos de interrogação. São aporias visuais intensas que estalam mudas. Na galeria, dir-se-ia que são desenhos expostos às correntes de ar e a todo o tipo de sopros, ainda que se encontrem protegidos por véus de acrílico. E pese a prisão das paredes, exprimem uma desenvoltura que é rebelde e frágil. 

 

 

 

Falemos, então, agora das pinturas ou da pintura de Gonçalo Pena. Começam por reflectir a heterogeneidade de estilos e modos de pintar que distinguem o seu trabalho. Os ritmos, as cores, os formatos tornam a exposição um espaço metapictórico em cujo labirinto — feitos de versos e frentes, passagens e esquinas — entramos. Antes, precisamente à entrada, já nos recebera um cowboy mecânico-futurista que expele fumo. Ou será apenas tinta? Superfície que existe por si só, mas não em absoluto nesse estado, trata-se de uma imagem que coloca problemas da pintura, como todas as expostas em Água de Colónia. Problemas que são (os) da sua história, da sua prática e, em certo sentido, da sua cultura ou protocolos, com os quais o artista se confronta.

A sugestão do inacabado e do imperfeito atravessa várias obras, deixando o espectador num estado produtivo de frustração ou numa expectativa nunca resolvida. Se os desenhos pareciam mais compactos e completos — esgotando-se, em certo sentido— a pintura surge entretida nos seus limites e possibilidades. Num reenvio óbvio ao desenho da outra sala, uma pintura exibe o pontilhismo de Seurat com a figuração de Gaugin. Vemos noutra tela, uma citação discretíssima, quase invisível a L'Origine du monde de Gustave Courbet numa pintura onde nadam imagens que associamos às alturas magníficas da Suíça. Numa e noutra, percebemos o fazer demorado do artista, a sua paciência e entrega à fabricação do pictórico. Quanto à sátira possível (o humor não desapareceu), de tão envolvida na pintura, parece adquirir uma qualidade fantasmática e conceptual, como aliás acontece — remetendo agora para a próprias condições de possibilidade da pintura no modernismo — no quadro negro suprematista que ganhou a sombra de um objecto decorativo.

Dir-se-ia que o humor que se produziu do impulso do(s) desenho(s) cedeu lugar ao encontro solitário com os materiais e a história da disciplina. Não que ao visitante seja imposto o silêncio da tela, mas as pinturas de Gonçalo Pena são irredutíveis na sua demanda. Solicitam outro jogo intelectual e sensorial: aquele que se inicia com as cores, com a materialidade pesada e brilhante da tinta ou com os lugares onde, precisamente, cada pintura foi colocada. 

Nesta sinfonia de possibilidade pictóricas, manifesta-se uma certa depuração ou rarefacção em termos formais e visuais. O movimento do corpo do artista deixa entrever, aqui e ali, uma maior leveza e rapidez, como se emulasse, sem querer, a agilidade do desenho. Mas mesmo esse movimento foi antecedido de pausas, recuos e regressos que a pintura impõe. O que vemos resultado é sempre pintura, mais ou menos voluptuosa, mais ou menos devedora do desenho (por exemplo, quando a figuração se exprime mais clara) gestual ou bruta. Mesmo quando se aproxima da realidade — veja-se aquela onde podemos ler um curioso e alegórico diálogo — que lhe é exógena, permanece uma actividade experimental. Ora é precisamente nessa condição que ainda outorga para si uma independência — ainda que relativa — do profano.

Dito de outro modo, são as suas propriedades internas e limites intrínsecos que a fazem aparecer com o desejo de um tempo que não se compadece com a efemeridade do desenho. Concluído este excitante capítulo, veremos como ela aparecerá no futuro de Gonçalo Pena. 

 

Gonçalo Pena

Cristina Guerra Contemporary Art

 

Outros artigos sobre o artista:

 

Gonçalo Pena: Metafísica

— Entrevista a João Maria Gusmão

 

 

 

José Marmeleira é Mestre em Comunicação, Cultura e Tecnologias da Informação [ISCTE], é bolseiro da Fundação para a Ciência e Tecnologia [FCT] e doutorando no Programa Doutoral em Filosofia da Ciência, Tecnologia, Arte e Sociedade da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, no âmbito do qual prepara uma dissertação em torno do pensar que Hannah Arendt consagrou à arte e à cultura. Desenvolve, também, a actividade de jornalista e crítico cultural independente em várias publicações [Ípsilon, suplemento do jornal Público, Contemporânea e Ler].

 

 

O autor escreve de acordo com o antigo acordo ortográfico.

 






Gonçalo Pena, Água de Colónia. Vistas gerais da exposição. Cristina Guerra Contemporary Art. Fotos: Vasco Stocker Vilhena. Cortesia do artista e Cristina Guerra Contemporary Art.

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