9 / 20

A política do gosto e a ordem do mundo

vargtimmen-capa.jpg
Eduarda Neves

 

 

É fácil compreender que me refiro a uma horda qualquer de aves de rapina, uma raça de conquistadores e de senhores que, com a sua organização guerreira deixaram cair sem escrúpulos as suas formidáveis garras sobre uma população talvez infinitamente superior em número, mas ainda inorgânica e errante. Tal é a origem do "Estado"; creio que já foi bastante refutada aquela opinião que fazia remontar a sua origem a um “contrato”.[1]

 

 

Estruturas, instituições públicas e privadas, aparelhos administrativos de decisão central e local, legislação sobre políticas culturais, enunciados, museus, fundações, concursos,[2] formulários, júris, diplomas, comissões, redes, prémios, aquisições, bolsas, programas de apoio financeiro e simbólico com objectivos estratégico-ideológicos, quotas étnicas, sociais, etárias, canonizações, regulamentos — o Estado reflectido em toda a parte. A arte e a cultura servem-lhe, não poucas vezes e de maneira impositiva, para apoiar o que, social e politicamente, não tem vontade ou é incapaz de cumprir e combater. A política do gosto não é um território neutro e a racionalidade administrativa, tal como  a rigidez da burocracia, configuram-lhe uma verdadeira entourage. Técnica implacável e obediência firme para  melhor proteger a estrutura e a sua coesão.[3] Através da produção e acumulação de estratégias, procedimentos discursivos e expedientes, o Estado assegura os seus modos de agir pois que, também em democracia, a instrumentalização é uma prática familiar aos poderes instituídos e constitui uma das ferramentas da história da dominação. Quem garante os júris, as comissões, as redes ou promulga regulamentos? O que é que autoriza o juízo da aquisição e do prémio? As peças do Estado funcionam como uma engrenagem — todo um exército gigantesco de conexões que atravessam a máquina produtiva. Essa “delegação em cadeia”[4] incorporada num caminho sucessivo de regressões, para falar como Pierre Bourdieu, conduz-nos a uma espécie de causa incausada ou substância imóvel — o Estado. Uma liturgia. Sabemos que para a crença existir é necessário acreditar nela.[5]

O exercício do direito de vida ou de morte, constituindo um privilégio do poder soberano e a forma principal do exercício do poder, não deixa de se constituir, simbolicamente, a outros níveis, como estratégia de controle e sujeição dos corpos mas também como biopoder que produz corpos políticos. Através destes, os aparelhos do Estado sustentam as  ligações de domínio, hierarquia e exclusão. Garantem as diversas formas de investimento do capital, seja ele biológico, histórico, económico, social ou cultural. Quais vasos comunicantes, estabelecem a performance eficaz da máquina oficial através da qual as razões de vida e a nova linguagem da salvação se podem configurar em diversas tipologias reproduzidas pelas significações decretadas e subterrâneas do Estado. A biopolítica, como argumentou Michel Foucault, mostra-nos que o poder se cumpre ao nível da defesa da vida e já não através da antiga vontade de condenar à morte. Operando o monopólio da violência física e simbólica legítima, para falar como Pierre Bourdieu, a voz porosa do Estado decreta o que é mais ou menos significativo, impõe hierarquias e o princípio da ordem: Estado é o nome que damos aos princípios ocultos, invisíveis — para designar uma espécie de deus absconditus — da ordem social e, ao mesmo tempo, da dominação tanto física como simbólica assim como da violência física e simbólica. [6]

Em outras palavras, o que chamamos Estado, o que apontamos confusamente quando pensamos em Estado, é uma espécie de princípio da ordem pública, entendida não só em suas formas físicas evidentes mas também em suas formas simbólicas inconscientes, e tudo indica que profundamente evidentes. Uma das funções mais gerais do Estado é a produção e a canonização das classificações sociais.[7]

Sendo o Estado, na perspectiva do sociólogo, o maior produtor dos instrumentos de construção da realidade social, não deixa de ser o código comum destes instrumentos estruturados de conhecimento que se identifica com as próprias estruturas do Estado e com os que dominam estes instrumentos, tal como, por exemplo, a cultura nacional referida por aquele autor e, acrescentamos nós, um gosto oficial. Entre a cultura cultivada e a cultura para as massas, a democratização cultural, a reivindicação da cidadania e a educação, a teoria e a prática, o juízo de valor, a mediatização e as lutas ideológicas, o Estado é, desde há séculos, o lugar da máquina cacofónica — árbitro ou conciliador, é ele que se oferece como governação dos que não cabem na regra, no código e na aliança. A ideologia da difusão e do acesso à cultura — não poucas vezes à designada “alta cultura” evocada por um determinado gosto de classe — que o Estado habitualmente promove, torna-a no valor de troca e num modelo de representação artificial ao serviço de um popularismo que estabelece um falso nivelamento dos capitais social e simbólico. É a colonização liberal da sociedade e da política que, desistoricizando, oculta a significação ideológica do gosto previsível, o qual podemos designar como “médio”, para utilizar uma noção empregue por Bourdieu numa investigação sobre práticas fotográficas e gostos de classe. Ninguém é condenado pois o gosto centralizado, como um “significante despótico”,[8] protege todos os que estão dispostos a cumprir a soberania e a enquadrarem-se na (falsa) consciência democrática que o Estado cauciona. Mesmo que as forças dominantes não se confundam com o aparelho de Estado, é dele que se servem, ao mesmo tempo que este a elas se subordina. De maneira interdependente, os seus conhecimentos podem coadjuvar o Estado, impedir a desestabilização, cumprir os objectivos necessários. Forças complementares e não de oposição. Entre o centro e a periferia, todas as partes se tornam essenciais ao eficaz funcionamento da máquina. O inferno e as suas cóleras.

Os produtores de cultura, seja ela qual for, mobilizados pelo Estado, contribuem para assegurar o bem-estar[9] seja oferecendo arte pública, tornando o monumento num bem público ou representando “o” gosto como uma fórmula ou indicador enigmático de pertença e de não exclusão para todos os cidadãos: “o processo de criação da arte pública sofre de sobre-gestão (...) mas (...) não existe nenhum objecto visual capaz de representar melhor a tirania monológica do que o monumento (...)” e por isso constitui um espaço de suposta meditação no qual os indivíduos têm a possibilidade de “comungar das maravilhas e dos mistérios do Estado.”[10] A fruição, pois que se exige contemplativa, ou seja, resignada, disfarça a violência que sujeita e é sujeitada a um guião. O Estado é como  Édipo, ganha sempre. A má consciência cínica encerra a trindade unitária. A biopolítica na forma jurídica de prolongamento do Estado, acompanha o corpo totalitário:

Morte, desejo do desejo, desejo do desejo do déspota, latência inscrita no que há de mais profundo no aparelho de Estado. É preferível não haver nenhum sobrevivente a haver um só orgão que escorregue deste aparelho, que deslize para fora do corpo despótico. Só há uma necessidade (um fatum): a do significante nas suas relações com o significado.

[11]

Se, por um lado, como afirma Pierre Clastres, não somos capazes de pensar as sociedades sem o Estado, por outro é o império da narrativa da palavra que se organiza como instância de exercício do poder: “falar é antes de mais deter o poder de falar ou, por outras palavras, o exercício do poder assegura o domínio da palavra falada.”[12] A amplitude da língua como mecanismo de dominação através do qual opera o gosto autorizado e legitimado como mais-valia.[13] Enquanto imperativo que silencia ou afasta, o Estado recorre à palavra e à escrita, fixando-se como assinatura principal de conivência, apesar de ele mesmo ser “profundamente analfabeto” para usar as palavras de Deleuze sobre o capitalismo.

A burocracia, enquanto arcaísmo do Estado, confere-lhe o lugar do significante axiomático indiferente à possibilidade de quaisquer outras bifurcações e modos de subjectivar os quais tenta, de facto, anular. As instituições que produzem e reproduzem a cultura administrada do Estado e o gosto do regime — através de mecanismos mais ou menos subtis e da intensa panóplia configurada em princípios que se revestem da segurança acrítica, adestrada, sem risco e/ou assistencialista que as técnicas administrativas e estatais disseminam — actuam em conformidade com os efeitos sociais, políticos e simbólicos de normalização, assim garantindo comportamentos organizados e regulados que objectivam as relações de sujeição:

Voltamos sempre ao mesmo paradoxo monstruoso: o Estado é o desejo que passa da cabeça do déspota para o coração dos sujeitos e da lei intelectual para todo o sistema físico que se despende ou liberta dela. Desejo do Estado, a mais fantástica máquina de repressão é ainda desejo, sujeito que deseja e objecto de desejo.[14]

A política do gosto que o Estado dissemina de maneira expansionista torna-se prática hegemónica e integra a tecnologia reguladora da existência. Assim se constitui como modelo de dominação, entrando, de forma permanente, no circuito dos instrumentos de controle cultural de longa duração. Esta teia de ligações e alianças entre pequenos microfascismos que reflecte a própria vida material, exprime os processos de uniformização do poder organizado. O nosso tempo, marcado pela dissimulação do gosto estatal, transforma qualquer tentativa crítica num programa subordinado aos interesses difusos de redacções, gabinetes, directores, administradores e outras modalidades de sobrevivência. Problemas de regime que, apesar do empenho na modalidade do recato e do comedimento, nem sempre é capaz de ocultar os sinais de luta pela auto-preservação.

No texto “L’excès-l’usine” ou l´infini morcelé, [15] Maurice Blanchot retoma a questão enunciada por Leslie Kaplan: “Onde está o gosto?”  Como na fábrica, vivemos e morremos triturados pelo Estado. Carne morta. Sem gosto. Apenas odores: “o tempo está lá fora, nas coisas.”[16] Se Blanchot reconheceu que o poder encontra sempre cúmplices na cultura, escreveu também Castoriadis, a propósito da arte moderna:

mesmo que seja aceite com dificuldade pelos seus destinatários, mesmo que não corresponda ao “gosto popular“, não deixa de ser democrática, quer dizer, libertadora; e é democrática mesmo que os seus representantes possam ser politicamente reaccionários, como o foram Chateaubriand, Balzac, Doistoievski, Degas e tantos outros.[17]

O gosto do Estado quer-se como salvaguarda da ordem do mundo e instaura-se como território de aplicação da biopolítica. Como no filme de Ingmar Bergman — A hora do Lobo —  talvez um dia, entre a meia-noite e a aurora, o aparelho torne visíveis as suas memórias mais tenebrosas e interrogue os limites da razão — um filme de terror. E de medo. Nele encontraremos a vontade de sair daqui. Um golpe de Estado.

 

 

Eduarda Neves. Professora, ensaísta e curadora independente. A sua actividade de investigação e de curadoria articula os domínios da arte, filosofia e política.

 

A autora escreve segundo o anterior acordo ortográfico.

 

 

Imagem: Ingmar Bergman, Vargtimmen (A Hora do Lobo), 1968, Suécia. 


Notas:

 

[1] Friedrich Nietzsche — A genealogia da moral. Lisboa: Guimarães Editores, 1976, p. 81.

[2] Sobre concursos, regulamentos e júris que integram representantes com funções administrativas no aparelho do Estado, retomamos a posição de Theodor Adorno: “os especialistas são obrigados a exercer a sua autoridade em domínios onde não podem ter as qualificações profissionais requeridas, sendo embora necessária a sua aptidão particular para as abstractas técnicas administrativas, a fim de que a engrenagem funcione e se mantenha em atividade”, in Sobre a indústria da cultura. Coimbra: Angelus Novus, 2003, p. 113.

[3] Escrevem argutamente os Critical Art Ensemble que “as obras de arte que dependem da burocracia para alcançar a fruição são demasiado bem geridas para que possam ter qualquer poder contestatário. No fundo, são actos de obediência que apenas reafirmam a hierarquia e a ordem racional.” Critical Art Ensemble — Desobediência Civil electrónica e outras ideias impopulares. Lisboa: Editora Barco Bêbado, 2022, p. 87.

[4] Pierre Bourdieu — Sobre o Estado (Cursos no Collège de France (1989-92). S. Paulo:  Editora Schwarcz S.A., 2012, p. 47.

[5] “O Estado é essa ilusão bem fundamentada, esse lugar que existe essencialmente porque se acredita que ele existe. Essa realidade ilusória, mas coletivamente validada pelo consenso”, in Pierre Bourdieu — Sobre o Estado (Cursos no Collège de France (1989-92)… p. 45.

[6] Pierre Bourdieu — Sobre o Estado (Cursos no Collège de France (1989-92)… p. 39.

[7] Pierre Bourdieu — Sobre o Estado (Cursos no Collège de France (1989-92)… p. 44.

[8] Como argumentam Deleuze e Guattari “o sábio, enquanto tal, não tem qualquer poder revolucionário, ele é o primeiro agente integrado da integração, refúgio da má consciência, destruidor forçado da sua própria criatividade.(...) Em relação ao Estado capitalista os Estados socialistas são crianças (e crianças que ensinaram algumas coisas ao pai sobre o papel axiomatizante do Estado.” in, Gilles Deleuze, Félix Guattari — O Anti-Édipo. Capitalismo e Esquizofrenia 1...pp. 245-246.

[9] “Somente a serena voz do Estado do bem-estar (um sistema que apenas se preocupa com o benefício dos seus cidadãos) sussurra gentilmente no reino do monumento”, in Critical Art Ensemble — Desobediência Civil electrónica e outras ideias impopulares... p. 87.

[10] Critical Art Ensemble — Desobediência Civil electrónica e outras ideias impopulares...p. 87.

[11] Gilles Deleuze, Félix Guattari — O Anti-Édipo. Capitalismo e Esquizofrenia 1. Lisboa: Editora Assírio e Alvim, 2004, p. 221.

[12] Pierre Clastres — A sociedade contra o Estado. Porto: Edições Afrontamento, 1979, p. 149.

[13] Sobre o poder da linguagem legítima escreveu Pierre Bourdieu que “uma linguagem legítima é uma linguagem com formas fonológicas e sintáticas legítimas, isto é, uma linguagem que responde aos critérios habituais de gramaticalidade, e uma linguagem que além daquilo que diz, diz constantemente que o diz bem. E através disso, deixa crer que aquilo que diz é verdadeiro; o que é uma das maneiras fundamentais de fazer o falso passar pelo verdadeiro. Entre os efeitos políticos da linguagem dominante existe esse: ‘Ele o diz bem e, portanto, é possível que seja verdade’ —'O que falar quer dizer’”, in Questões de Sociologia. Rio de Janeiro: Marco Zero,1983, p. 9.

[14] Gilles Deleuze, Félix Guattari — O Anti-Édipo. Capitalismo e Esquizofrenia 1...p. 230.

[15] Artigo de Maurice Blanchot no qual reflecte sobre o livro de Leslie Kaplan, L’excès- L’usine, in Écrits politiques(1953-1993). Paris: Gallimard, 2008, p. 235.

[16] Leslie Kaplan — L’excès-L’usine. Paris: P.O.L. éditeur, 1994, p.13.

[17]Cornelius Castoriadis — A ascensão da insignificância. Lisboa: Editorial Bizâncio,1998, p. 233.

 

Voltar ao topo