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Jorge Queiroz: Alka-Seltzer 

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José Marmeleira

 

Imagem (pintada) em movimento, tecido, desenho e cor formam um corpo que se desdobra, sem princípio ou fim, pelo espaço. Um corpo que se revelará em passagens, pequenos lugares, clareiras, aberturas, intervalos. Não impositivo, suspenso, delicado, lânguido.

 

 

 

 

 

Acontecem duas coisas na exposição Alka-Seltzer de Jorge Queiroz no espaço Rialto6 —na qual o artista contou com a colaboração do músico e amigo David Maranha. A primeira é a coexistência, no mesmo espaço, da experiência do white cube e da black box. Sem qualquer separação, pudemos ver, no interior da mesma arquitectura, desenhos fixos numa parede e imagens em movimento projectadas. Convém, contudo, ser rigoroso. Este white cube está longe ser um espaço pristino, do mesmo modo que esta black box não é uma sala escura, mas uma área escurecida, permeada por discretos focos de luz, que podemos e devemos percorrer. Seja como for, é de facto com imagens que se agitam (e das quais escutamos sons) e com desenhos — nos quais se insinuam as cores e as manchas da pintura — que Alka-Seltzer se faz (e se desfaz)Seguindo este raciocínio, não será impertinente acrescentar que, ao entrarmos na exposição, entramos — quase fisicamente, enquanto corpos e pessoas — no desenho de Jorge Queiroz; ou, se se quiser, dentro do pensamento (do desenho) de Jorge Queiroz.

Obviamente, este exercício não pretende ser outra coisa que uma analogia. Alka-Seltzer não é uma materialização espacial do desenho e do universo pictórico do artista. Na verdade, o que vemos e ouvimos procede de uma intervenção que o artista realizara e que incluíra uma composição sonora, numa instalação, e a projeção de um vídeo sobre tecido. E, no entanto, Alka-Seltzer não deixa de tornar tangível uma expansão háptica, e sonora de um universo, surgindo na condição de proposta pouco comum no interior da produção de Jorge Queiroz. O modo como os trabalhos são apresentados sempre foi um aspecto de que o artista não prescindiu, mas talvez isso nunca tenha ficado tão evidente como nesta exposição. Sob o pensamento, a intuição e o olhar prévio de Jorge Queiroz, as radiações, os vórtices, as efervescências (literais) do(s) seus desenhos(s) aparecem sublimados na arquitectura.

Comecemos pela peça central que representaria a forma de um polvo. Sobre pregas de tecido, suspensa por fios, vemos imagens projectadas, imagens que, por sua vez, dão a ouvir sons, um dos quais é, precisamente, o de dissolução na água de um alka-seltzer.  Mas permaneçamos nas imagens. À medida que avançamos entre e à volta da peça, vamos encontrando as do medicamento anti-ácido a desfazer-se, bem como as de acções mínimas e precisas do artista: vemo-lo, por exemplo, a colocar (ou será antes, a colar?) desenhos sobre o comprimido, desenhos que também se dissolverão. Observamos, também, imagens, aparentemente miniaturais, de uma misteriosa construção arquitectónica de ramos e flores, que não sabemos se são verdadeiras ou falsas. 

Como nos seus desenhos ou pinturas, Jorge Queiroz não se preocupa em explicar ou identificar. Depreendemos — ou imaginamos apenas — que algo, porventura de excêntrico, ou alquímico, está a acontecer. O que sabemos é o que ouvimos e vemos: a efervescência no líquido, a dissolução de algo, o chilreio de pássaros que se junta ao som da água (o natural reúne-se assim ao químico). E, em simultâneo, o aparecimento de cores que se derramam (imaterialmente) sobre os panos. Algumas são de superfícies filmadas pelo artista, outras são dos desenhos dissolvidos. Todas imprimem à peça um carácter que é lúdico e, dir-se-ia até, lírico. A habitual “acidez” do desenho de Jorge Queiroz — e a desorientação óptica e perceptiva que lhe associamos — suaviza-se num encontro com as cores, na experiência das formas e das sombras que essas formas pintam nas superfícies. Na sua imaterialidade, o filme pinta. Imagem (pintada) em movimento, tecido, desenho e cor formam um corpo que se desdobra, sem princípio ou fim, pelo espaço. Um corpo que se revelará em passagens, pequenos lugares, clareiras, aberturas, intervalos. Não impositivo, suspenso, delicado, lânguido.

Em 2022, sobre o desenho de Jorge Queiroz havíamos escrito: “Há efeitos desconcertantes que ora animam, ora ofuscam o desenho, reflexos e refluxos, sobreposições e repetições, distorções e ampliações, evocações da colagem, desenhos que aparecem sobre desenhos, luzes e sombras sobre o desenho. Pressente-se a emergência de uma dessacralização lúdica da prática do desenho que a música, em aparições subtis e súbitas, vai fomentando. É como se nos fosse dado a vislumbrar, neste vídeo, um desconcertante processo alquímico, quase amador, ousar-se-ia dizer, pré-moderno do desenho”.

Esta é uma descrição que podia assentar a Alka-Seltzer, com a diferença que, neste caso, o desenho se desmaterializa, dá-se a uma experiência multissensorial e corpórea. Indo mais longe deixa de ser desenho — no sentido convencional do termo — para ser uma experiência cromática, musical e física do e no espaço. Mas Alka-Seltzer inclui desenhos sobre papel. São desenhos que partindo de um postal holográfico — que podemos ver à entrada da sala — se distribuem pelos dois espaços da exposição: vemo-los nas paredes que delimitam a peça central, bem como na sala menos escurecida. Todas replicam a imagem do postal holográfico, entretanto ampliada e serigrafada: a de dois pássaros sobre cujas cabeças o artista pintou uma mancha. É esta “cena” que vemos reproduzida e repetida e foi sobre ela e à volta dela que Jorge Queiroz desenhou com lápis de cor, grafite e carimbos. 

Os desenhos na sua relação com a imagem preexistente formam uma espécie de díptico interno que nunca é o mesmo, mas uma sequência de variações onde voltamos a reentrar no jogo que Jorge Queiroz propõe à nossa memória, à nossa percepção visual, e à nossa interpretação. A diferença é, que desta vez, ele parece participar mais intensamente desse jogo, estará menos distante ou deslocado. Imaginamo-lo diante da imobilidade daquela imagem, procurando expandi-la, atravessá-la, transformá-la. Em resumo, libertando-a para o espaço com o desenho da tela. E desse gesto, deixando-nos num estado de perpétuo e perplexo deslumbramento. 

 

Jorge Queiroz

Rialto6

 

José Marmeleira é Mestre em Comunicação, Cultura e Tecnologias da Informação [ISCTE], é bolseiro da Fundação para a Ciência e Tecnologia [FCT] e doutorando no Programa Doutoral em Filosofia da Ciência, Tecnologia, Arte e Sociedade da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, no âmbito do qual prepara uma dissertação em torno do pensar que Hannah Arendt consagrou à arte e à cultura. Desenvolve, também, a actividade de jornalista e crítico cultural independente em várias publicações [Ípsilon, suplemento do jornal Público, Contemporânea e Ler].

 

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.

 

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Jorge Queiroz: Alka-Seltzer. Vistas da exposição no espaço Rialto6. Fotos: Vasco Stocker Vilhena. Cortesia do artista e Rialto6. 

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