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Gabriel Abrantes: Nobody Nowhere

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Susana Ventura

 

Pintar, ainda

 

 

Uma questão derradeira impõe-se a partir do conjunto de pinturas de Gabriel Abrantes, actualmente, em exposição na Galeria Francisco Fino: por que é que o pintor pinta [ou continua a pintar]? Se recordarmos as respostas de John Berger no seu ensaio Steps Toward A Small Theory of the Visible [for Yves], estas, curiosamente, colocam-nos um novo conjunto de enigmas perante as telas de Abrantes, ao mesmo tempo que nos permitem desvelar uma possível resposta à nossa pergunta [assim o desejamos]. Refere Berger que: a pintura é, em primeiro lugar, uma afirmação do visível que nos rodeia e que continuamente aparece e desaparece. Possivelmente, sem desaparição não existiria impulso para pintar, pois então o próprio visível possuiria a garantia [a permanência] que a pintura luta por encontrar. Mais directamente do que qualquer outra arte, a pintura é uma afirmação do existente, do mundo físico no qual a humanidade foi lançada.1

Para Berger, o que une toda a pintura, desde o paleolítico até aos dias de hoje, advém de uma experiência do visível pelo pintor, uma experiência que produz uma imagem que anuncia eu vi isto. O mesmo sucede, inclusivamente, com a arte não figurativa. Como exemplifica ainda este autor: uma tela tardia de Rothko representa uma iluminação ou um brilho colorido derivado da experiência do visível pelo pintor.2

Berger não refere o exemplo da pintura surrealista, mas imaginamos que, mesmo para esta, o espanto proporcionado pelo visível seja capaz de despertar as mais loucas visões irreais [o visível não é, por certo, sinónimo de real, nem oposto de surreal ou de fantasmático].

 

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Gabriel Abrantes - Nobody Nowhere 11
Gabriel Abrantes - Nobody Nowhere 12

 

Recuemos ao processo criativo ou ao método, que está na origem deste conjunto de telas, como o próprio pintor descreve o processo ou como o explica à OpenAI’s Artificial Intelligence GPT-3 num diálogo reproduzido na folha de sala da exposição. Abrantes recorre a um software de modelação 3D [Maya], commumente utilizado em filmes de animação ou jogos de vídeo, devido às suas ferramentas avançadas, não só de modelação, como também de renderização, animação, composição de efeitos especiais, entre outras, permitindo criar, digitalmente, soluções de elevada complexidade com uma qualidade de definição estrutural superior àquela que o nosso próprio olho, por exemplo, consegue apreender.

 

A razão de ser do visível é o olho; o olho evoluiu e desenvolveu-se onde havia luz suficiente para que as formas de vida visíveis se tornassem cada vez mais complexas e variadas. As flores silvestres, por exemplo, têm as cores que têm para serem vistas. O facto de um céu vazio parecer azul deve-se à estrutura dos nossos olhos e à natureza do sistema solar.3

 

Este paradoxo é um dos principais enigmas das pinturas de Abrantes. O artista deseja fixar — seguindo a própria tradição pictórica dos mestres da história da pintura — a transitoriedade dos elementos naturais, como as torrentes de água, os reflexos da luz, ou as [semi-]transparências criadas pela utilização de véus [da família estética da maresia, do nevoeiro, das nuvens, etc.], de que Ghost Projectionist é um dos mais belos exemplos. Contudo, a luz é artificial, manipulada a favor de um plano e de um enquadramento, que poderemos designar de, cinematográficos, notando-se as interferências4 entre as práticas artísticas distintas de Abrantes, e os ambientes são mais subterrâneos do que aéreos. Estamos, constantemente, a desafiar e a questionar as semelhanças, pois é nesse espaço que se inscreve o paradoxo que sustém o espanto e o mistério destas pinturas.

Avançando um pouco mais no nosso enigma, Marcel Duchamp refere, por exemplo, que no acto criador, que vai da intenção à realização, o artista passa por uma cadeia de reacções e decisões subjectivas e, raramente, conscientes [pelo menos no plano estético], acrescentando ainda que na cadeia de reacções que acompanha o acto criador há um elo que falta. A cisão que representa a inabilidade do artista para expressar completamente a sua intenção; essa diferença, entre aquilo que ele projectou realizar e o que realizou, é o «coeficiente artístico» pessoal contido na obra. Por outras palavras, o «coeficiente artístico» pessoal é como uma relação aritmética entre o intencionado que permaneceu inexprimível e aquilo que se exprimiu inintencionalmente”.5 Se pensarmos que o processo de criação da  imagem [i.e. as decisões que a delimitam esteticamente] ocorre, inteiramente, no software, que [idealmente] reduz, drasticamente, este coeficiente, quando é que a imagem criada passa a existir como obra de arte?

Mais do que uma curiosidade, que o método de Abrantes possa despertar, nomeadamente, em relação à intervenção da tecnologia na imagem final, a tecnologia entra no processo criativo como um instrumento — qual tubo de tinta ou ready-made6 — ainda que permita obter uma imagem final de difícil realização [senão mesmo impossível] através do recurso às técnicas tradicionais da pintura, as que o artista irá utilizar, depois, na passagem da imagem virtual à tela física, inventando e combinando cores a óleo, manuseando pincéis e espátulas.

Todavia encontramos outra hipótese no texto de Berger, que reclama para o acto de pintar duas ideias basilares [ao mesmo tempo que destrói uma ideia predefinida sobre o acto criador]. O impulso de pintar não procede da observação nem da alma [que provavelmente é cega], mas de um encontro: o encontro entre o pintor e o modelo, seja este uma montanha ou uma prateleira de medicamentos vazios.7

Este encontro só é possível quando existe uma colaboração, que se define pela aproximação conseguida, o que implica eliminar as convenções, a reputação, a razão, as hierarquias e o eu, e, simultaneamente, bordejar a incoerência e a loucura [pois pode suceder, se se aproximar demasiado, a colaboração se desfazer e o pintor se dissolver no modelo]. Toda a pintura autêntica demonstra uma colaboração. […] O pincel, dizia Shitao, o grande paisagista chinês do século XVII, «serve para salvar as coisas do caos»8.

A ideia de colaboração, como Berger a pensa e que nasce, sobretudo, do desejo, do medo, da raiva, da saudade [da cadeia de reacções e decisões subjectivas], desfaz a ilusão moderna em relação à pintura [que o pós-modernismo nada fez para corrigir] […] que o artista é um criador. Em vez disso, ele é um receptor. O que parece uma criação não é senão o acto de dar forma ao que se recebeu.9

 

 

O modelo de Abrantes é a própria inteligência artificial, e não os fantasmas que vemos pintados. Ainda que os fantasmas sejam um desdobramento de um qualquer artista [e não necessariamente de Abrantes, apenas], nascidos de uma fenda no tempo [passado ou futuro? — as torrentes de água parecem remeter tanto para os dilúvios míticos do início do tempo, como para o apocalipse climático iminente] e representem a condição imaterial da inteligência artificial, é desta que o artista se aproxima, sem preconceito, eliminando hierarquias, sendo receptivo à própria cadeia de acções e reacções digitais. Esta aproximação não é, contudo, completamente alheia às condições subjectivas que guiam, [in]conscientemente, o artista, porque na imagem vemos constantemente a ambivalência entre desejo e medo, entre aparição [todas as actividades às quais os fantasmas se dedicam correspondem a uma luta por fixar a permanência] e desaparição, entre materialidade e imaterialidade… O fantasma sem corpo adquire na imagem um corpo, ainda que este corpo só se torne carne num beijo [Ghosts Kissing10], mas é  sempre desejo. O fantasma vazio e oco [que flutua ou se dissolve na água enquanto dorme] desenha, pinta, filma, compõe música. E, nas paredes da galeria, vemos obras de arte criadas pelo Dall-E, onde reconhecemos traços de artistas do passado [Miró, Van Gogh, entre outros…]. Mas tudo isto acontece e é válido no domínio da imagem digital. Será necessária a passagem da imagem à pintura para se dar a transmutação [a transformação de matéria inerte em obra de arte e, neste caso, da inteligência artificial em matéria viva — de que fala Duchamp — ocorrendo, primeiro, no artista e, depois, no espectador. Berger termina o seu ensaio, escrevendo: Pintar hoje é um acto de resistência que responde a uma necessidade generalizada e pode instigar a esperança.11Na era da inteligência artificial, continua a sê-lo, como as pinturas de Abrantes tão bem o demonstram.

 

 

 

 

 

Gabriel Abrantes

 

 

 

 

Galeria Francisco Fino

 

 

 

 

 

Susana Ventura [Coimbra, 1978] Arquitecta de formação [darq-FCTUC, 2003], contudo prefere dedicar-se à curadoria, à escrita e à investigação, cruzando diferentes áreas do conhecimento. Gosta de pensar sobre arte, arquitectura, fotografia, cinema e dança, e ensaiar, ora em textos, ora em exposições, outras possibilidades de pensamento. [Por isso, também, doutorou-se em Filosofia, na especialidade de Estética, FCSH-UNL, 2013, sob orientação científica de José Gil]. Foi co-curadora de Utopia/Distopia, no Museu de Arte, Arquitectura e Tecnologia de Lisboa [MAAT]. Recentemente, foi curadora  da exposição Corpo Radial de Mariana Caló e Francisco Queimadela na Galeria da Boavista, em Lisboa.

 

A autora escreve de acordo com a antiga ortografia.

 

 

 


 

Notas:

 

 

 

1Tradução livre da autora a partir de: “Painting is, first, an affirmation of the visible which surrounds us and which continually 1 appears and disappears. Without the disappearing, there would perhaps be no impulse to paint, for then the visible itself would possess the surety [the permanence] which painting strives to find. More directly than any other art, painting is an affirmation of the existant, of the physical world into which mankind has been thrown,” John Berger, “Steps Toward A Small Theory of the Visible [for Yves]”.

 

2Tradução livre da autora a partir de: “A late canvas by Rothko represents an illumination or a coloured glow which derived from the 2 painter’s experience of the visible,” John Berger, “Steps Toward A Small Theory of the Visible [for Yves]”.

 

3The raison d’être of the visible is the eye; the eye evolved and developed where there was enough light for the visible forms of life 3 to become more and more complex and varied. Wild flowers, for example, are the colours they are in order to be seen. That an empty sky appears blue is due to the structure of our eyes and the nature of the solar system.

 

4Aqui utilizada num sentido deleuziano.

 

5Marcel Duchamp, O acto criador. Lisboa: Sr. Teste Edições - Colecção Imagem e Semelhança [trad. Ana Mata], 2022.

 

6“Comme les tubes de peinture utilisés par l’artiste sont des produits manufacturés et tous faits, nous devons conclure que toutes 6 les toiles du monde sont des ready-mades aidés et des travaux d’assemblage,” assim justificava Marcel Duchamp a utilização de objectos quotidianos nas suas obras de arte. Marcel DUCHAMP, “À propos des ready-mades” [discurso de Marcel Duchamp no Museu de Arte Moderna de Nova Iorque, em 1961, e reproduzido em Duchamp du signe, Paris, Flammarion, 1994].

 

7Tradução livre da autora a partir de: “The impulse to paint comes neither from observation nor from the soul [which is probably blind] but from an encounter: the encounter between painter and model -- even if the model is a mountain or a shelf of empty medicine bottles,” John Berger, “Steps Toward A Small Theory of the Visible [for Yves]”.

 

8Tradução livre da autora a partir de: “Every authentic painting demonstrates a collaboration.[…] «The brush,» wrote Shitao, the great 17th century Chinese landscape painter, «is for saving things from chaos»,” John Berger, “Steps Toward A Small Theory of the Visible [for Yves]”.

 

9Tradução livre da autora a partir de: “The collaboration which sometimes follows is seldom based on good will: more usually on 9 desire, rage, fear, pity or longing. The modern illusion concerning painting [which post-modernism has done nothing to correct] is that the artist is a creator. Rather he is a receiver. What seems like creation is the act of giving form to what he has received,” John Berger, “Steps Toward A Small Theory of the Visible [for Yves]”.

 

10É de notar que o artista coloca esta pintura num espaço intercalar, procurando resolver, também, o que é uma dificuldade no espaço da galeria [unir os dois espaços sem criar hierarquia].

 

11Tradução livre da autora a partir de: “To paint now is an act of resistance which answers a widespread need and may instigate hope,” John Berger, “Steps Toward A Small Theory of the Visible [for Yves]”.

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